Viagem ao céu
Capítulos 7, 8 e 9
7 – Coisas da Lua
— Quem é você, criaturinha? — perguntou São Jorge parando diante dela.
— Eu sou a Emília, antiga Marquesa de Rabicó, sua criada — respondeu a boneca, muito lampeira e lambeta.
O santo ficou na mesma. E ainda estava na mesma, sem compreender coisa nenhuma, quando viu aparecerem Pedrinho e Narizinho com Tia Nastácia atrás, de mãos postas, rezando atropeladamente quantas orações sabia.
— Como conseguiram chegar até aqui? — perguntou ele. Isto me parece a maravilha das maravilhas.
— Foi o pó de pirlimpimpim que nos trouxe — respondeu Pedrinho — e dessa vez São Jorge ficou na mesmíssima.
— Não conheço semelhante droga — disse ele — mas deve ser das mais enérgicas, porque a distância da Terra à Lua é de 64.000 léguas — um bom pedaço!
Pedrinho riu-se e respondeu numa gíria que o santo não podia entender:
— Para o nosso pó essa distância é a canja das canjas. Num pisco devoramos essas 64.000 léguas como se fossem uns biscoitinhos de polvilho dos que derretem na boca.
O santo admirou-se da maravilha e disse:
— Estimo muito, mas saiba que inúmeros homens têm tentado vir à Lua e bem poucos o conseguiram. O último veio dentro duma bala de canhão, num tiro mal calculado. A bala passou por cima da Lua e ficou rodando em redor dela. Não sei quem foi esse maluco.
— Eu sei! — gritou Pedrinho. — Foi um personagem de Júlio Verne, no romance Da Terra à Lua. Vovó já nos leu isso.
São Jorge estava ali desde o reinado do Imperador Diocleciano sem outra companhia a não ser o dragão, de modo que ficava muito alegre quando alguém aparecia por lá. Mas como era raro! Um dos “lueiros” mais interessantes foi um tal Cyrano de Bergerac, que por lá andou e escreveu a respeito uma obra célebre. E agora apareciam aquelas criaturas — duas crianças, uma negra velha, uma bonequinha… Foi com imenso prazer que o santo começou a indagar de tudo — quem eram, como se chamavam, onde moravam, e que negra tão esquisita era aquela.
— E o senhor? — quis saber Emília depois que tudo foi explicado. — Agora que sabe a nossa história, conte-nos a sua.
São Jorge contou que nascera príncipe da Capadócia e tivera no mundo vida muito agitada. A sua luta contra o poderosíssimo mágico Atanásio ficou histórica. Por fim fez-se cristão e em virtude disso padeceu morte cruel numa das matanças de cristãos ordenadas pelo Imperador Diocleciano. Depois da morte veio morar na Lua.
— E sabe que é hoje o patrono da Inglaterra? — lembrou Narizinho. — Vovó diz que o senhor é o santo mais graúdo de todos, porque dá o nome a muitas ordens de cavalaria e tem aparecido até em moedas de ouro.
São Jorge não sabia nada daquilo, nem sequer que era santo, porque só depois de sua morte é que começou a virar tanta coisa. Também não sabia o que era ser “patrono da Inglaterra”, nem o que significava isto de “ordens de cavalaria”. Os meninos tiveram de dar-lhe uma lição de tudo.
— Mas não posso compreender donde vem a minha importância, o meu “graudismo”… — declarou ele com toda a modéstia, pensativamente.
— Eu sei! — berrou Emília. — É por causa do dragão e dessa tremenda e bonita armadura de guerreiro. Santos de camisolão e porretinho podem ser muito milagrosos, mas não impressionam. Diga-me uma coisa: onde é que descobriu esse dragão?
O santo contou que era um monstro que ele havia matado certa vez em que o encontrou prestes a devorar a filha do rei da Líbia.
— Mas se o matou, como é que o dragão está vivinho aqui?
— Mistérios deste mundo de mistérios, gentil bonequinha. Eu também fui morto e no entanto todos lá da Terra (segundo vocês dizem) me veem aqui nesta Lua, a cavalo, de lança erguida contra o dragão. Mistérios deste mundo de mistérios.
Enquanto as crianças se entretinham com São Jorge, Tia Nastácia o espiava de longe, fazendo volta e meia um trêmulo pelo-sinal. A pobre negra não entendia coisa nenhuma do que estava se passando.
Pedrinho começou a fazer perguntas sobre a Lua, que São Jorge respondia com verdadeira paciência de santo.
— Pois isto aqui, meus meninos, é o satélite da nossa querida Terra. Satélite vocês devem saber o que é…
— Eu sei! — gritou Emília. — É como um cachorro que segue o dono!…
São Jorge riu-se.
— Sim. Satélite é uma coisa que segue outra, e na linguagem astronômica é um planeta que gira em redor de outro.
— Eu também sei o que é planeta -— disse Emília com todo o oferecimento (parecia até que estava namorando São Jorge). — É um astro que gira em redor do Sol, e é também o nome duns arados que Dona Benta tem lá no sítio…
— Muito bem — aprovou o santo. — O planeta gira em redor do Sol e o satélite gira em redor do planeta. A Lua é o satélite da Terra; é uma filha da Terra, hoje mais velha que a mãe.
Os meninos admiraram-se.
— Mais velha como? — indagou Pedrinho. — De que modo uma filha pode ser mais velha que a mãe?
— Há filhas que envelhecem mais depressa que as mães — respondeu o santo — e Emília confirmou essa idéia com a citação do caso duma Nhá Viça que morava perto da casinha do Tio Barnabé. — “A Nhá Viça é filha da Nhá Tuca e está dez vezes mais velha que a mãe por causa dum tal reumatismo.”
São Jorge riu-se e explicou:
— A velhice dos astros não se mede pelos anos que eles têm e sim pelo grau de resfriamento a que chegaram. O Sol, por exemplo, é o pai de todos os planetas e no entanto mostra-se muito mais jovem que esses filhos. Por quê? Porque está custando muito a resfriar.
— Eu sei a razão — declarou Pedrinho. — É por causa do tamanho. Já fiz a experiência lá em casa. Esquentei no fogão uma bola de ferro grande e uma pequenininha. A grande levou muitíssimo mais tempo para esfriar.
— Exatamente — aprovou o santo. — O Sol também há de acabar tão resfriado quanto esta Lua, mas isto só daqui a milhões de séculos. O Sol, que é muitíssimas vezes maior que a Terra, levará muito mais tempo para resfriar. A Lua sendo 49 vezes menor que a Terra tinha de resfriar-se muito mais depressa.
— E não há vida por aqui? — indagou Pedrinho. — A opinião geral entre os homens é que a Lua é um astro totalmente morto, sem vida humana.
— Eu também julguei que assim fosse — disse São Jorge. — mas ao vir para cá verifiquei o contrário. Ainda há alguma vida na Lua. Acontece, porém, que a vida está muito mais adiantada na Terra, de modo que nós nem reconhecemos os animais e as plantas daqui. São diferentíssimos. Também o ar é muito rarefeito, de modo que os animais e as plantas tiveram de adaptar-se a essa situação.
— Então o ar da Lua é rarefeito assim? — perguntou Pedrinho, já com um começo de falta de ar — e quando soube que era várias vezes mais rarefeito que o ar da Terra, ficou numa grande aflição, a respirar precipitadamente — e todos fizeram o mesmo. Emília chegou a dar escândalos com a sua falta de ar…
Depois São Jorge contou que a Lua gasta um mês para dar uma volta em redor da Terra; mas como gira sobre si mesma no mesmo espaço de tempo, está sempre com a mesma face voltada para a Terra.
— Isso eu sei — gritou Emília — porque desde que vim ao mundo sempre vi a Lua com a mesma cara. E é por isso que gosto da Lua. Tenho ódio às criaturas de duas caras…
São Jorge explicou que pelo fato de a Lua gastar um mês para dar uma volta em redor da Terra, os dias ali eram compridíssimos e as noites também.
— Cada dia aqui equivale a quatorze dias lá da Terra; e cada noite equivale a quatorze noites de lá. E por causa disso só há duas estações: verão e inverno. O verão é o dia; o inverno é a noite. O dia é quentíssimo e a noite é geladíssima.
— Nesse caso, quantos dias de 24 horas tem o ano aqui? — perguntou Narizinho.
— Tem doze dias — cada dia correspondendo a um mês lá da Terra.
Todos se admiraram.
— Quer dizer então — lembrou a menina — que se eu fosse nascida na Lua teria apenas 120 dias de idade — quatro meses?
— Exatamente. Se lá na Terra você tem dez anos, aqui teria quatro meses. Seria uma nenezinha…
— Que graça! — exclamou Emília. — E Dona Benta? Que idade teria Dona Benta, se fosse lunática?
— Dois anos e quatro meses — mas “lunático” quer dizer “maluco” e não “habitante da lua”. Os habitantes da Lua chamam-se “selenitas”.
— Por quê?
— Porque em grego o nome da Lua é “Selene”. Selenita e uma palavra derivada do grego.
Pedrinho quis saber das montanhas e mares da Lua, e contou que num livro de Flammarion vira um mapa da Lua cheio de nomes de mares e montanhas. E com grande admiração do santo foi dizendo os nomes daqueles mares e montes. Falou no mar da Serenidade, no mar dos Humores, no mar das Chuvas, no mar das Nuvens, no mar do Néctar…
— Esse eu quero conhecer! — berrou Emília. — Tomar banho no mar do Néctar deve ser batatal!…
São Jorge franziu a testa. “Batatal?” Nem batata ele sabia o que era, quanto mais batatal! Pedrinho teve primeiro de contar a história da batata, que apareceu no mundo depois da descoberta da América, para depois explicar o que Emília queria dizer com o tal “batatal”.
— Quando uma coisa é muito boa, mas boa mesmo de verdade, Emília vem sempre com esse “batatal”…
Em seguida Pedrinho desfiou o nome das montanhas da Lua que havia visto no mapa do Flammarion.
— Há inúmeras montanhas — disse ele — batizadas com o nome de astrônomos e sábios célebres. Há a montanha de Fabrício, a de Clávio, a de Plínio, a de Platão, a de Aristóteles, a de Copérnico… Vovó diz que a Lua é o cemitério dos astrônomos. A ciência os vai enterrando nestas montanhas aqui.
São Jorge admirou-se daquilo e contou que a montanha que dali avistavam era a mais alta da Lua. “Então deve ser o monte Leibniz, com 7.610 metros de altura, o mais alto de todos”, explicou Pedrinho.
São Jorge achou muito interessante a ideia que os homens faziam da Lua, mas declarou que havia erros.
— Os mares, por exemplo, parecem mares vistos lá da Terra; mas não são mares, sim imensas florestas das plantas que existem aqui.
— E que plantas são essas? — quis saber Pedrinho.
— São as plantas que a nossa Terra vai ter quando ficar velhinha como a Lua. Hoje você olha e nem entende essas plantas. Como também não entende os animais daqui, de tão diferentes que são dos da Terra. Isso de quatorze em quatorze dias a Lua passar dum terrível verão para um terrível inverno fez das plantas e dos animais lunares umas coisas que nem entendemos. E também muito influiu a rarefação do ar. Os animais tiveram que tornar-se quase que só pulmões. São verdadeiros “pulmões animalizados”. A Emília há pouco manifestou vontade de ver um gatinho e um cachorrinho da Lua — mas se os visse nem sequer os reconheceria. São mais pulmões-bichanos do que gatos…
— Eu quero ver um pulmão-bichano! — berrou Emília. — Eu quero ver um pulmão-totó!…
— É difícil — informou o santo. — Além de serem raros, esses animais andam muito bem ocultos no fundo dessas crateras, onde ainda há uns restos de água.
— Por falar em cratera, como há disso por aqui! — observou Pedrinho. — Parece que antigamente a Lua não fazia outra coisa senão brincar de vulcão.
— Realmente — concordou o santo. — O número de crateras na Lua é prodigioso, mas estas crateras não são de vulcões. São de bolhas que arrebentaram, quando isto aqui era tudo pedra derretida.
— Como bolhas de sabão de cinza no tacho — exemplificou Emília.
8 – A Terra vista da Lua
— Mas o mais bonito da Lua — disse depois São Jorge — é a Terra, a nossa Terra que daqui vemos perpetuamente no céu, girando sobre si mesma. Olhe como está linda!
Parece incrível, mas só naquele momento os meninos ergueram os olhos para o céu e lá viram a Terra. Tão entretidos desde a chegada estiveram com as coisas do chão, que só naquele instante deram com o espetáculo mais belo da Lua — a Terra vista de lá.
— Que beleza! — exclamou Narizinho. — Só para ver este espetáculo vale a pena vir à Lua…
A Terra é a lua da Lua. Mora permanentemente no céu da Lua, sempre girando sobre si mesma e a mostrar os seus continentes e mares. Um verdadeiro relógio. Quem quer saber das horas é só olhar para a Terra em seu giro sem fim e ver que continentes vão aparecendo.
Naquele momento a face que a Terra exibia estava completamente escura, porque era dia de eclipse do Sol. Mas depois de findo o eclipse, quando o Sol voltou a iluminar a Terra, os meninos se regalaram. Lá estava bem visível, como num mapa, o continente americano, composto de dois grandes “VV”, um em cima do outro. No alto do V de cima aparecia uma brancura vivíssima — as terras de gelo do polo norte; e igual brancura aparecia embaixo do segundo V — as terras de gelo do polo sul. E apareciam umas imensidades escuras — os oceanos. E também grandes zonas de verdura.
— Aquela verdura enorme — disse Pedrinho — é o Brasil e os países que ficam perto dele — Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru, Bolívia, etc. Está vendo aquelas minhocas que varam o continente de ponta a ponta, com brancura em certos trechos do dorso? Pois são os Andes, a grande cordilheira cheia de picos de neves eternas, e a cordilheira do México e as montanhas Rochosas. E lá em cima estão o Canadá, os Estados Unidos, o México e a América Central… Aqueles pontinhos de outra cor na imensidão do mar são as ilhas — Cuba e tantas outras…
São Jorge não estava entendendo coisa nenhuma, porque todos aqueles nomes lhe eram novidade.
— Meu Deus! — exclamou em certo momento. — Será possível que haja no mundo tantos países novos que eu não conheça?
— Se há! — exclamou Pedrinho. — Isso de países é como broto de árvore. Uns secam, apodrecem e caem — e surgem brotos novos. Quais eram os países do seu tempo?
São Jorge suspirou.
— Ah, no meu tempo o mundo era bem menor. Havia Roma, a grande Roma, cabeça do Império Romano — e o Império Romano era tudo. Quase todos os povos da Europa estavam dominados pelos romanos — como a Espanha, a Aquitânia, a Bretanha, a Macedônia, a Grécia, a Trácia, a Panônia, a Arábia Petréia, a Galácia, a Cilícia, a Mauritânia lá na costa da África…
— E a tal Capadócia onde o senhor nasceu? — perguntou a menina.
— A minha Capadócia ficava entre um país de nome Ponto e outro de nome Cilícia — junto da Mesopotâmia.
Pedrinho contou que estava tudo muito mudado. O tal Império Romano já não existia; em vez dele surgira o Império Britânico, cuja cabeça era a Grã-Bretanha.
Ao ouvir falar em Grã-Bretanha São Jorge arregalou os olhos. Percebeu que era a mesma Bretanha do seu tempo, um país que na era dos romanos não valia nada. E também muito se admirou quando Pedrinho se referiu à Rússia como o maior país do mundo, e à China, e à índia e ao Japão.
— Onde fica a tal Rússia? — perguntou ele.
Pedrinho explicou como pôde, e por fim São Jorge descobriu que a famosa Rússia devia ser numas terras muito desconhecidas dos romanos e às quais vagamente eles chamavam Sarmácia. Da China e do Japão o santo não tinha a mais leve ideia.
— Como tudo está mudado! — exclamou ele. — Se eu voltar à Terra, não reconhecerei coisa nenhuma.
— Também acho — concordou Pedrinho. — Há continentes inteiros que no seu tempo eram totalmente ignorados, como as Américas e o continente australiano. As Américas foram descobertas mais ou menos ali em redor do ano 1.500, e a Austrália em redor do ano 1.800.
— Onde fica essa Austrália?
— Nos confins do Judas! — berrou Emília. — Nem queira saber. Existem lá uns tais cangurus que carregam os filhotes numa bolsa da barriga. E há o boomerang, que a gente joga e ele volta para cima da gente.
A ignorância de São Jorge era natural, visto como vivera no tempo de Diocleciano, cujo reinado fora entre os anos 284 e 313. De modo que fez muitas perguntas a Pedrinho, grandemente se assombrando com as respostas.
Emília estava com cara de quem quer dizer uma coisa, mas não se atreve. Por fim afastou-se de Narizinho (para evitar o beliscão) e de repente disse:
— Santo, desculpe o meu intrometimento — mas lá no sítio, quando alguém quer dizer que um gajo não presta, e é vadio ou malandro, sabe como diz? Diz que é um capadócio!…
Narizinho fuzilou-a com os olhos, mas São Jorge não se zangou, até sorriu, e foi suspirando que explicou:
— Meus patrícios lá da Capadócia sempre tiveram má fama — e fama exatamente disso, de mandriões, de fanfarrões, de mentirosos. Mas o que admira é que apesar de tantos séculos, a palavra “capadócio” ainda esteja em uso até num país que nem existia no meu tempo…
— Pois existe — continuou Emília sempre com o olho em Narizinho — e acho que o senhor não deve andar dizendo que é um capadócio, porque não há o que desmoralize mais…
— Emília!… — gritou a menina ameaçando-a com um tapa. Mas São Jorge acalmou-a e, chamando Emília para o seu colo, alisou-lhe a cabeça.
— Vou seguir o seu conselho, bonequinha. Não contarei nem ao dragão que sou um capadócio…
9 – Tia Nastácia
Enquanto conversavam, Tia Nastácia, sempre à distância, rezava, e volta e meia fazia um pelo-sinal.
— Como deram com ela aqui? — perguntou São Jorge, pondo os olhos na pobre negra.
Foi Emília quem respondeu.
— Ah, santo, Tia Nastácia é a rainha das bobas. Veio conosco enganada. Cheirou o pirlimpimpim pensando que era rapé…
São Jorge quis saber o que era rapé e pirlimpimpim, e muito se admirou das prodigiosas virtudes do pó mágico. Depois fez sinal à Tia Nastácia para que se aproximasse.
— Venha, boba! — animou Emília. -— Ele não espeta você com lança. É um santo.
Tia Nastácia fez três pelo-sinais todos errados, e foi se aproximando, trêmula e ressabiada. Estava ainda completamente tonta de tantas coisas maravilhosas que vinham acontecendo. O dragão, o sumiço que levaram o Visconde e o burro, aquele prodigioso santo vestido de armadura de ferro, com capacete na cabeça, escudo no braço e “espeto” em punho — e lá no céu aquela enorme “lua” quatro vezes do tamanho do Sol — tudo isso era mais que bastante para transtornar a sua cabeça pelo resto da vida.
Mesmo assim veio toda a tremer, com os beiços pálidos como de defunto.
— Não tenha medo — disse-lhe Narizinho. — São Jorge não come gente. É um grande amigo nosso e muito boa pessoa.
Tia Nastácia afinal chegou-se — mas embaraçadíssima. Tinha as mãos cruzadas no peito e os olhos baixos, sem coragem de erguê-los para o santo. Estar diante dum santo daqueles, tão majestoso na sua armadura de ferro, era coisa que a punha fora de si.
— Não tenha medo de mim — disse São Jorge sorrindo. — Diga-me: está gostando deste passeio à Lua?
O tom bondoso da pergunta fez que a pobre negra se animasse a falar.
— São Jorge me perdoe — disse ela com a voz atrapalhada. — Sou uma pobre negra que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta e estes seus netos, que são as crianças mais reinadeiras do mundo. Eles me enganaram com uma história de rapé do Coronel Teodorico, o compadre lá de Sinhá Benta, e me fizeram cheirar um pó que mais parece arte do canhoto. Agora a pobre de mim está aqui nesta Lua tão perigosa, sem saber o que fazer nem o que pensar. Minha cabeça está que nem roda de moinho, virando, virando. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se minhas humildes respostas não forem da competência e da fisolustria dum santo da corte celeste de tanta prepotência…
Todos riram-se. A pobre preta achava que diante dos poderosos era de bom-tom “falar difícil”, e sempre que queria falar difícil vinha com aquelas três palavras, “competência”, “prepotência” e “fisolustria”. Ela ignorava o significado dessas coisas, mas considerava-as uns enfeites obrigatórios na “linguagem difícil”, como a cartola e as luvas de pelica que os homens importantes usam em certas solenidades.
— Fale simples, como se você estivesse na cozinha lá de casa — disse Narizinho. — Do contrário encrenca, e São Jorge até pode pensar que você lhe está dizendo desaforos…
— Credo, sinhazinha! — exclamou Tia Nastácia benzendo-se com a mão esquerda. — Quem é a pobre de mim para dizer algum desaforo a um ente da corte celeste? Até de pensar nisso meu coração já esfria…
São Jorge teve dó dela. Viu que se tratava duma criatura excelente, mas muito ignorante — e deu-lhe umas palmadinhas no ombro.
— Sossegue, minha boa velha. Não se constranja comigo. Vejo que sua profissão na vida tem sido uma só — cuidar do estômago de sua patroa e dos netos dela. Quer ficar aqui na Lua cozinhando para mim?
Aquela inesperada proposta atrapalhou completamente a pobre negra. Ficar na Lua ela não queria por coisa nenhuma do mundo, não só de medo do dragão como de dó de Dona Benta, que não sabia comer comidas feitas por outra cozinheira. Mas recusar um convite feito por um santo ela não podia, porque onde se viu uma simples negra velha recusar um convite feito por um ente da corte celeste? E Tia Nastácia gaguejou na resposta.
Vendo aquela atrapalhação, Narizinho respondeu em seu nome.
— Tia Nastácia fica, São Jorge — mas só por uns tempos. Nosso plano não é passear apenas na Lua. A viagem vai ser também pelas outras terras do céu. Queremos conhecer alguns planetas, como Marte, Vênus, Netuno, Saturno, Júpiter, e também dar um pulo à Via-láctea. Em vista disso, acho que podemos fazer uma combinação. Tia Nastácia fica cozinhando para o senhor enquanto durar a nossa viagem. Quando tivermos de voltar para a Terra, portaremos de novo aqui e a levaremos. Não fica bem assim?
— Ótimo! — exclamou o santo. — Está tudo assentado. Durante o passeio que vocês pretendem fazer, Tia Nastácia ficará sob minha guarda, cozinhando para mim. Quanto ao dragão, ela que descanse. O meu dragão está muito velho e inofensivo. Lá na Terra comia até filhas de reis — mas aqui vive só de brisas. Não haverá perigo de nada.
Depois de tudo bem assentado, São Jorge foi mostrar à pobre preta onde era a cozinha, deixando-a lá com as panelas. E foi desse modo que à medrosa Tia Nastácia aconteceu a aventura mais prodigiosa do mundo: ficar como cozinheira dum grande santo, lá no fundo duma cratera da Lua…