Viagem ao céu
Capítulos 10, 11 e 12
10 – Mais vistas da Terra
Horas depois a vista daquela enorme Terra pendurada no céu já estava completamente mudada, e Pedrinho retomou as suas lições de geografia a São Jorge.
— Lá está o continente europeu! — disse ele. — Aquelas ilhas naquele ponto (e apontava) são as ilhas Britânicas, ou Grã-Bretanha — a tal Bretanha sem nenhuma importância no tempo do seu amigo Diocleciano. Mais adiante temos a Noruega com os seus fiordes…
— E suas sardinhas também — acrescentou Emília. — As sardinhas da Noruega viajam pelo mundo inteiro nuns barquinhos, chamados “latas”.
São Jorge não entendeu, porque no seu tempo não havia latas. Pedrinho continuou:
— A tal Rússia, que o senhor queria saber onde ficava, lá está — aquele país grandão. É a terra dos russos barbudos, dos cossacos, do caviar, das danças lindas e dos sovietes. Foi onde Napoleão levou a breca.
— Quem é esse leão? — perguntou o santo.
— Um grande matador de gente — explicou Pedrinho. — Depois de matar milhões de criaturas na Europa, resolveu matar russos, e invadiu a Rússia com um exército de 600.000 homens. Chegou até Moscou, que era a capital. Mas sabe o que os russos fizeram? Assim que Napoleão foi se aproximando, tocaram fogo nas casas e retiraram-se — e o pobre Napoleão, em vez de conquistar uma cidade, conquistou uma fogueira.
— Bem feito! — exclamou Emília.
— Em vista disso -— continuou Pedrinho — o conquistador não teve outro remédio senão voltar para a França com o seu exército. Essa França era a Aquitânia do tempo de Diocleciano. Mas o inverno russo estava bravo; e os dois, o inverno russo e o exército russo, caíram em cima dos franceses, fazendo uma horrorosa matança. Só vinte e tantos mil homens, dos 600.000, conseguiram atravessar a fronteira, imagine! Vovó conta a história de Napoleão na Rússia dum modo que até arrepia os cabelos da gente.
São Jorge sacudia a cabeça, pensativo. Tudo lhe eram novidades.
— E lá aquela bota, Pedrinho? — perguntou Emília, apontando.
— Pois é a Itália dos italianos. Lá é que ficava a tal Roma do tal Diocleciano, amigo cá do nosso São Jorge. Repare que a bota italiana está dando um pontapé numa ilha — a Sicília.
— Bem feito! — exclamou a boneca.
— E aquelas duas ilhas perto do cano da bota? — perguntou Narizinho.
— A maior é a ilha da Sardenha ou Sardinha, e a menor é a ilha da Córsega, onde nasceu o tal Napoleão.
— Que desaforo, a ilha da Sardinha ser maior que a de Napoleão! — exclamou Emília. — Para que quer uma sardinha uma ilha tão grande assim? Eu, se fosse fazer o mundo…
— Já sei — interrompeu a menina — dava a ilha maior a Napoleão e a menor à sardinha, não é isso?
— Não! — gritou a boneca. — Dava as duas para Napoleão e à sardinha dava uma lata. As sardinhas precisam muito mais de latas do que de ilhas.
Todos riram-se, menos São Jorge, que não entendeu aquele negócio de latas.
— E aquela terra grandalhona embaixo da Europa? — perguntou Narizinho, apontando.
— Pois lá é a África, não vê? Dentro fica o deserto do Saara, com os seus oásis tão lindos, as caravanas de camelos, as palmeiras que dão tâmaras gostosas.
— E a terra dos bôeres que fizeram guerra aos ingleses? Onde fica?
— Essa é bem no fim da África, naquela pontinha. Lá existe a Cidade do Cabo, que é a capital.
Emília deu uma risada gostosa.
— Um cabo que tem cidade, ora vejam! — exclamou. — E depois dizem que a asneirenta sou eu… Onde se viu um cabo com cidade na ponta?
— É um modo de dizer — explicou Pedrinho. — Chama-se Cidade do Cabo porque fica perto do famoso cabo da Boa Esperança, que o navegador português Vasco da Gama dobrou pela primeira vez.
Emília abriu a torneirinha.
— Que danado! — exclamou arregalando os olhos. — Dobrar sem mais nem menos um cabo assim deve ser coisa difícil. Esse Vasco, ou tinha a força de dois elefantes ou o tal cabo era como o daquela caçarola de alumínio de Dona Benta, tão mole que até eu dobro quando quero.
Narizinho cochichou ao ouvido de São Jorge que Emília estava com a torneirinha aberta. “Que torneirinha?”, perguntou o santo. “A torneirinha de asneiras que ela tem no cérebro. Quando Emília abre essa torneirinha, ninguém pode com a sua vida.”
Depois que Emília parou de asneirar São Jorge pôs-se a dizer onde ficavam as terras conquistadas pelos romanos do seu tempo. Mostrou tudo, até o lugarzinho onde era a sua Capadócia e o ponto onde existiu Cartago, a república africana rival de Roma e por esta destruída depois de várias guerras. E contou tantas histórias do tempo de Diocleciano que as crianças, já cansadas, adormeceram.
11 – Continua a viagem
Depois de algumas horas de bem-dormido sono, Pedrinho acordou e viu no relógio Terra, suspenso no céu da Lua, que o continente americano vinha de novo aparecendo — sinal de seis horas da manhã lá no sítio. Pedrinho foi ter com São Jorge, que estava longe dali dando ordens ao dragão. Era um dragão verde, escamudo, com dois tocos de asas nas costas. O gosto dele era enrolar a cauda como saca-rolha, com a ponta de flecha erguida para cima. Volta e meia punha de fora a língua cor de tomate, também com ponta de flecha.
Pedrinho explicou ao santo que iam continuar a viagem pelos domínios celestes, não só porque tinham vindo com esse fim como porque era indispensável descobrirem o paradeiro do Doutor Livingstone e salvarem o Burro Falante, que com certeza andava enroscado na cauda de algum cometa.
— Não sei se poderão salvar o Doutor Livingstone — observou São Jorge. — Se ele foi projetado da Lua pela força do tal pó maravilhoso, o mais certo é estar transformado em satélite da Lua.
— Já pensei nisso — tornou Pedrinho apreensivo. — Vovó diz que a força de atração dos astros puxa todos os corpos para o centro deles. Quando a gente joga para o ar uma laranja, a laranja sobe até certa altura e depois volta. Que é que a faz voltar? Justamente a força de atração que puxa todos os corpos para o centro deles. Enquanto a força que jogou a laranja é maior que a força de atração que puxa a laranja, a laranja sobe; quando a força de atração se torna maior, a laranja cai.
São Jorge admirou-se dos conhecimentos de mecânica daquele menino.
— O pó de pirlimpimpim que o Visconde cheirou — prosseguiu Pedrinho — era muito pouco, não dava nem para levá-lo até à Terra. E como ele não caiu de novo sobre a Lua e não podia ter chegado à Terra, o certo é estar parado na zona em que a força de atração da Terra empata com a força de atração da Lua — e nesse caso não sobe nem desce — fica toda vida girando em redor da Lua como um satélite. Acho que foi o que sucedeu — concluiu Pedrinho com a maior gravidade.
— Também acho — disse Emília.
Pedrinho riu-se com ar desdenhoso.
— A boba! “Também acho!…” Eu acho com base, mas que base tem você para achar?
— Eu acho com base no meu desejo de achar — respondeu Emília.
— Deseja, então, pestinha, que o Visconde fique toda vida como satélite da Lua?
— Desejo, sim. Ando me implicando com esse Doutor Livingstone. É sério demais. Não brinca. Não faz o que eu mando. Está mesmo bom para satélite da Lua. Quando voltarmos à Terra, vou pedir a Tia Nastácia para fazer um Visconde igualzinho ao antigo. Aquele é que era o bom — era o “legímaco”.
Emília não dizia “legítimo”, dizia “legímaco”. Pedrinho e Narizinho também andavam a implicar-se com o Doutor Livingstone, de modo que deram razão à boneca e resolveram deixá-lo como satélite da Lua. Mas o Burro Falante precisava ser salvo.
— Esse, sim — concordou Emília. — Temos de virar de cabo a rabo os mundos celestes até descobri-lo, porque Dona Benta ficará furiosa se o deixarmos enroscado nalguma cauda de cometa. Sabe, São Jorge, que ele é o único burro falante que existe na Terra?
— Burros falantes de dois pés — respondeu o santo — conheci numerosos em minha vida terrena, mas de quatro jamais ouvi falar de algum. Mas se esse precioso burro estiver enganchado num rabo de cometa, como vão fazer vocês para alcançar esse cometa?
Pedrinho embatucou. Não havia pensado naquilo. Mas Emília veio com uma daquelas ideias do tamanho de bondes.
— Nada mais fácil — disse ela. — Basta arranjarmos um cometa mais veloz que o do burro; montamos nele e o tocamos a chicote e espora atrás do cometa do burro.
— Isso é perigoso — declarou São Jorge. — Tudo no espaço está muito bem regulado. Cada astro segue o seu caminho certo, sempre na mesma velocidade. Se um deles se apressasse demais ou diminuísse a marcha, a “harmonia universal” estaria destruída.
— Para nós não há impossíveis — afirmou Pedrinho com orgulho. — Quem tem no bolso este pó mágico, zomba das leis da natureza. Sabe o que podemos fazer? Montar num cometa e esfregar no nariz dele um pouco de pirlimpimpim — e juro que ele alcança o outro num instantinho! Ah, São Jorge, o senhor não faz idéia do que é o pó de pirlimpimpim!…
O santo ficou atrapalhado. Realmente não conhecia o tal pó, mas o fato de o pirlimpimpim ter trazido aquelas crianças à Lua queria dizer que era na verdade o mais mágico de todos os pós existentes, e capaz de outras coisas assombrosas. Por isso não duvidou da possibilidade de caçarem um cometa montados em outro. Apenas insistiu num ponto: que se eles fizessem isso, o mais certo seria atrapalharem a “harmonia universal”, causando os mais sérios transtornos no universo.
— Admito a hipótese — respondeu Pedrinho com a importância dum Bonaparte diante das pirâmides — mas acha então que devemos perder o nosso Burro Falante? A tal “harmonia universal” que me perdoe. Entre ela e o nosso burro, não tenho o direito de escolher.
— Ela que se fomente! — interveio Emília.
São Jorge meditou uns instantes e depois disse:
— Bom, façam lá como quiserem, mas muito receio que por causa desse burro venha a estragar-se o maravilhoso equilíbrio celeste a que chamo “harmonia universal”, e existe desde os começos do mundo. Meu conselho é um só: prudência, prudência e mais prudência.
Pedrinho ficou um tanto abalado com aquelas altíssimas palavras, e Emília de novo meteu o bedelho.
— Senhor capadócio, para nós esse burro vale mais que todas as harmonias do mundo e se o universo ficar atrapalhado, pior para ele. Havemos de pegar o burro, haja o que houver.
São Jorge ainda lembrou uma coisa. Lembrou que como o espaço é infinito, e os cometas não são inúmeros, ninguém vai pegando um cometa com a facilidade com que se pega um animal no pasto.
A discussão estava se prolongando. Por fim Narizinho veio com uma proposta que foi aceita.
— Sabem do que mais? — disse ela. — O verdadeiro é deixarmos isso para depois. Se em nossa viagem pelo espaço encontrarmos algum cometa que sirva, então pularemos nele e sairemos em procura do burro. Se não encontrarmos cometa nenhum, daremos outro jeito qualquer. Agora estou com vontade de ir ao planeta Marte, para ver se realmente existem aqueles canais de que os astrônomos tanto falam. Marte me parece um planeta muito simpático.
Todos aceitaram a idéia e imediatamente começaram os preparativos da viagem. Narizinho foi à cozinha da cratera despedir-se de Tia Nastácia. Encontrou-a de nariz muito comprido, fungando e resmungando enquanto fritava uns bolinhos para São Jorge. A pobre negra nem ânimo de falar tinha. Só suspirava — uns suspiros vindos lá do fundo das crateras de seu coração.
— Pois é, Tia Nastácia — foi dizendo a menina. — Vamos partir para o planeta Marte e você comporte-se, hein? Perigo não há nenhum. São Jorge já levou o dragão para longe daqui, de modo que nem os seus bufos você ouvirá. E não se esqueça de que a maior honra para uma cozinheira como você é ficar fazendo bolinhos para um santo de tanta importância.
— Eu sei, eu sei — soluçou Tia Nastácia. — Vou fazer tudo direitinho. Mas ninguém pode governar o coração — e o meu coração está que é uma pontada atrás da outra. Vai demorar muito essa viagem?
— Não — respondeu a menina. — Vamos apenas dar um pulo até Marte e outros planetas. Quero muito conhecer os anéis de Saturno.
Tia Nastácia benzeu-se.
— Pois até anel esse diabo tem? É algum dragão?
Narizinho, com preguiça de explicar à pobre negra o que era, prometeu contar tudo na volta.
— E agora, adeus! Se você fizer cara triste, isso até ofende ao santo. Mostre-se alegre e de boa vontade. Não desmoralize o Sítio do Pica-Pau Amarelo…
Tia Nastácia arrancou um profundo suspiro; prometeu que sim e voltou à frigideira enquanto a menina saía correndo, leve como pluma, ao encontro dos outros.
— Tudo pronto? — perguntou.
— Sim — respondeu Pedrinho. — Já dividi o pó em pitadas. Tome a sua — e deu-lhe uma pitadinha de pirlimpimpim, dizendo: — Temos todos de aspirá-lo ao mesmo tempo, quando eu disser três. Vamos agora nos despedir de São Jorge.
As despedidas foram quase comoventes. Emília chegou a armar cara de choro, e ao beijar a mão do santo prometeu trazer-lhe um presente lá das regiões estelares.
— Que poderá ser? — indagou São Jorge.
— Um fio da Cabeleira de Berenice serve?
São Jorge, comovido, deu-lhe um beijo na testa. Terminados os adeuses, Pedrinho começou a contar:
— Um… dois… e três! …
O fiunnn foi agudíssimo — e lá se sumiram todos na imensidão do espaço.
- O planeta Marte
O que lá no sítio Pedrinho ouvira de Dona Benta a respeito de Marte estava bem fresco em sua lembrança.
— Marte é um planeta de volume seis vezes menor que o da Terra — havia dito a boa senhora. — No dia em que houver facilidades de comunicação entre os mundos, Marte há de ser uma estação balneária da Terra. Os homens irão passar lá férias ou temporadas. É pertíssimo.
— A que distância fica?
— A 56 milhões de quilômetros.
— Só? — admirou-se Pedrinho, que já andava tonto com as tremendíssimas distâncias entre a Terra e as estrelas. — Esses 56 milhões de quilômetros a luz vence em 2 minutos e 6 segundos. Sabe, vovó, que a velocidade do nosso pó de pirlimpimpim é a mesma da luz? A Emília até diz que o pirlimpimpim é luz em pó…
Dona Benta riu-se da asneirinha e continuou a falar de Marte.
— As estações lá — disse ela — correspondem às daqui, com as mesmas temperaturas. As condições de Marte assemelham-se muito às nossas, mas o ano de lá tem 687 dias.
— Que “anão”! — exclamou Pedrinho admirado. — E o peso?
— Menor que aqui. Um quilo nosso pesa 374 gramas em Marte.
— Ótimo! Quem vai para Marte deve sentir-se leve como rolha. Para corridas e pulos deve ser o planeta ideal.
Houve um ponto em que Dona Benta muito insistiu: os canais que através dos telescópios os astrônomos enxergam nesse planeta. E disse:
— Os astrônomos distinguem em Marte uma verdadeira rede de canais, em linhas retas e curvas, ligando mares; mas não são coisas naturais — parecem artificiais, ou feitas pelos homens de lá.
— Como sabem? — duvidou Pedrinho.
— Porque parecem traçados a compasso e régua, que são invenções dos homens. A natureza tem o bom gosto de não usar esses instrumentos. Já reparou que ela nada faz perfeitamente reto ou perfeitamente curvo, como as linhas e círculos traçados pela régua e o compasso?
— Isso não, vovó! — contestou o menino. — Certas palmeiras têm o tronco em linha reta, e o maracujá e outras frutas são bem redondinhos.
— Se com a régua e o compasso você conferir a linha reta duma palmeira ou o redondo de qualquer fruta, verificará que são mais ou menos — nunca exatamente. A natureza tem horror à precisão da régua e do compasso.
— Eu sei — disse Pedrinho pensativo. — O instrumento que a natureza usa é o mesmo daquele Zé Caolho que esteve consertando a casa do Elias Turco: o olhômetro! O Zé Caolho mede tudo com aquele olho torto, a que Emília deu o nome de “olhômetro”. Ele não usa régua, nem compasso, nem trena, nem nível, nem prumo. É tudo ali na “batata do olhômetro”, como diz a Emília.
— Pois a natureza é assim, meu filho. Parece que tem horror à geometria. Faz tudo mais ou menos — e por isso são tão belas as coisas naturais. Se você mandar a geometria fazer uma árvore, ela faz uma árvore toda cheia de linhas retas e curvas, de elipses, espirais e triângulos, tudo de uma “precisão geométrica” — e fica a feiúra das feiúras. Mas com o seu olhômetro a natureza produz belezas como aquela — e apontou para o cedrão do pasto. — Veja. Não há naquela árvore nenhuma regularidade geométrica, e vem daí a beleza do nosso velho cedro. Pois os canais de Marte são assim — são duma regularidade que não é própria da natureza. Ora, se não são naturais, são artificiais.
Pedrinho admirava-se duma coisa — que os canais de Marte fossem avistados da Terra.
— Graças a Galileu, meu filho. Graças ao telescópio, filho da luneta que Galileu inventou, nós daqui enxergamos até os canais de Marte, uma coisa que está a 56 milhões de quilômetros de distância… Não é maravilhoso?
— Que quer dizer telescópio, vovó?
— Tele em grego é “longe” e skopeo é “eu examino”. Telescópio quer dizer “eu examino ao longe”.
— Que beleza o grego, hein, vovó? É batatal… Dona Benta estranhou aquele “batatal” que volta e meia vinha à boca de seu neto.
— Que história é essa de batata pra aqui, batata pra ali, que vocês vivem usando agora? Eu já ando abatatada de tanta batata que rola por esta casa.
— É a Emília, vovó — explicou Pedrinho. — Ela inventou a coisa e nós, sem querer, pegamos na mania. Eu bem não quero falar assim, mas sai. Emília inventou até um tal “batatalífero” que é batatal. E também usa o “batatalino”.
— Mas donde veio isso?
— Não sei, vovó. Essas coisas vêm do ar, como os resfriados. Parece que a gente enjoa das velhas palavras e precisa de novas — e vai inventando. Batatal quer dizer ótimo, otimíssimo, bis-ótimo. Mas se a gente diz “isto é ótimo” fica sem força. Parece que essa palavra está muito gasta. E Emília então diz: “Isto é batatal ou batatalino” e a gente arregala o olho.
Dona Benta filosofou sobre o pitoresco da gíria e depois voltou ao planeta Marte.
— O diâmetro de Marte é de 6.870 quilômetros. E o da Terra? Vamos ver se não esqueceu.
— É quase o dobro, vovó.
— Isso mesmo. E a circunferência de Marte também é mais ou menos metade da da Terra. Qual a circunferência da Terra, Senhor Flammarionzinho?
— Quarenta mil quilômetros! — berrou o menino — e Dona Benta deu-lhe grau 10 pela boa memória.
Em seguida contou que Marte era mais velho que a Terra.
— Esse planeta destacou-se do Sol milhões de séculos antes da Terra, de modo que tudo está lá muito mais evoluído que aqui. A vida em Marte deve ser como vai ser a daqui no futuro. Nós nem podemos fazer idéia dos animais de Marte, e muito menos do homem de Marte — o marciano.
— Marciano quer dizer habitante de Marte?
— Sim. E esses marcianos têm o gosto de ver em seu céu duas luas, em vez duma só, como nós aqui.
— Duas luas? Que engraçado…
— Dois satélites, sim, meu filho, aos quais os astrônomos deram os nomes de Deimos (Terror) e Fobos (Medo).
— Por quê? Que é que o Terror e o Medo têm a ver com dois astros do céu?
— Ah, isso é uma recordação duns versos de Homero na llíada. Existe nesse poema um pedacinho assim: Ao Terror e ao Medo ele ordena que atrelem meus corcéis Enquanto de suas cintilantes armas vai se vestindo.
— Mas que têm esses versos com as luas de Marte?
— Nada, meu filho. O astrônomo que deu esses nomes às luas de Marte devia ter lido na véspera a llíada de Homero e estava com as palavras Deimos e Fobos na cabeça. Só isso.
— E essas luas aparecem no céu de Marte do tamanho da nossa Lua aqui?
-— São muito menores. Deimos tem apenas 12 quilômetros de diâmetro.
— Só 12? — admirou-se o menino. — Isso é do tamanho duma cidade como Paris, Buenos Aires, São Paulo…
— Exatamente; mas como Deimos está apenas a 6.000 quilômetros de Marte, aparece grandinho no céu — assim da quarta parte do tamanho da nossa Lua.
— E Fobos?
— Esse está a 20.000 quilômetros de distância e é várias vezes menor que Deimos.
Isso era tudo quanto Pedrinho sabia do planeta Marte, segundo as informações recebidas de sua avó no sítio. Agora que voava para Marte levado pelo pó de pirlimpimpim iria ter ocasião de verificar se aquilo estava certo ou não. O caso dos canais de Marte e dos marcianos era o que mais o interessava.
Logo que chegaram e abriram os olhos, os três aventureiros celestes sentiram-se desnorteados. Tudo muito diferente do que tinham visto na Lua e do que era na Terra. Canais não viram nenhum, porque coisas grandes como canais só são avistáveis de longe. É como quem está dentro duma floresta: só vê galharada e folharada, não vê a floresta em seu conjunto. Eles puseram-se a prestar atenção às coisas próximas — mas não as entendiam.
— Isto aqui devem ser plantas — disse Narizinho. — Só que estou estranhando as formas e a cor.
— Pelo que disse vovó — informou Pedrinho — as plantas daqui são evoluidíssimas — são como vão ser as plantas da Terra daqui a milhões de anos.
Era uma vegetação amarela e avermelhada. Não havia verdes, e as formas não lembravam as plantas da Terra.
— E gente? E bichos? — indagou a menina. — Não vejo nada mexer-se. Será que Marte é desabitado?
Pedrinho também desapontou. Por mais que olhasse e reolhasse, não percebia traço de vida animal. E estavam caminhando por ali, a olharem para a direita e a esquerda, quando Emília os agarrou pelas mãos e os puxou para um lado com toda a força.
— Que há? — perguntaram os dois meninos assustados. A boneca respondeu levando o dedinho à boca em sinal de “bico calado!” e fez que ambos se escondessem atrás duma pedra.
— Agachem-se e não se mexam. Depois explico.
Emília olhava como se estivesse vendo coisas e mais coisas. E assim esteve muito atenta e quietinha, imóvel atrás da pedra, até que afinal desembuchou.
— Uff! Que susto!… — exclamou ela erguendo-se. — Acabamos de passar por um grande perigo. Este astro é mais que habitado — é habitadíssimo. Aquele puxão que dei em vocês foi porque um grupo de marcianos vinha vindo em nossa direção.
Os habitantes de Marte eram invisíveis para os olhos dos meninos, mas visibilíssimos para os olhos da Emília. Ela os tinha decorado e passou a descrevê-los.
— São esquisitíssimos! Parecem grandes morcegos brancos. Em vez de caminharem com dois pés, como nós, deslizam pelo chão e erguem-se nos ares quando querem. O corpo é oval e cheio de crocotós, isto é, de coisas esquisitas que não entendo bem. Parecem ter uma porção de braços e mãos, maiores e menores; e no lugar em que devia ser a cara, há mais crocotós — tudo muito diferente das criaturas da Terra. Nós temos olhos, nariz, boca e orelhas — eles devem ter tudo isso, mas de formas diferentes. São uns seres absurdos…
— E falam?
— Devem falar, mas sem sons, sem palavras, dum modo muito diverso do nosso. Bem no meio da tal coisa que deve ser a cara existe um chicotinho flexível que eles manejam com grande rapidez.
— Antenas, como nos insetos?
— Talvez. É com os movimentos desses chicotinhos no ar que eles se entendem.
Pedrinho e Narizinho ficaram apavorados com a descrição e ansiosos por fugirem daquele misterioso planeta. Pelo que informava a Emília, os marcianos não tinham dado pela presença deles ali. Era provável que não pudessem vê-los. Mas seria realmente assim? Às vezes uma coisa parece, mas não é. Tornava-se indispensável verificar esse ponto — mas como? Emília tomou uma resolução.
— Vou tirar a limpo esse ponto — disse ela. — Se me acontecer qualquer coisa, se eles me pegarem e me comerem, não faz mal. Não sinto dor, sou boneca — e, além disso, Tia Nastácia faz outra ainda melhor que eu… Fiquem caladinhos aqui atrás da pedra. Não se mexam até que eu volte — e foi tirar a limpo aquele ponto.