Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21

 

15 – A assembleia dos ratos

         Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer tal destroço na rataria de uma casa velha que os sobreviventes, sem ânimo de sair das tocas, estavam a ponto de morrer de fome.

         Tornando-se muito sério o caso, resolveram reunir-se em assembleia para o estudo da questão. Aguardaram para isso certa noite em que Faro-Fino andava aos mios pelo telhado, fazendo sonetos à Lua.

         – Acho – disse um deles – que o meio de nos defendermos de Faro-Fino é lhe atarmos um guizo ao pescoço. Assim que ele se aproxime, o guizo o denuncia e pomo-nos ao fresco a tempo.

         Palmas e bravos saudaram a luminosa ideia. O projeto foi aprovado com delírio. Só votou contra um rato casmurro, que pediu a palavra e disse:

         – Está tudo muito direito. Mas quem vai amarrar o guizo no pescoço de Faro-Fino?

         Silêncio geral. Um desculpou-se por não saber dar nó. Outro, porque não era tolo. Todos, porque não tinham coragem. E a assembleia dissolveu-se no meio de geral consternação.

         Dizer é fácil; fazer é que são elas!

                                                           *****

            – Que história essa de gato “fazendo sonetos à Lua”? – interpelou a menina. – A senhora está ficando muito “literária” vovó…

            Dona Benta riu-se. – Sim, minha filha. Apesar do meu desamor pela “literatura”, às vezes faço alguma. Isso aí é uma “imagem literária”. A Lua é um astro poético, e quando um gatinho anda miando pelo telhado, um poeta pode dizer que ele está fazendo sonetos à Lua. É uma bobagenzinha poética.

            – “Desamor pela literatura”, vovó? – estranhou Pedrinho. – Então a senhora desama a literatura?

            Dona Benta suspirou.

            – Meu filho, há duas espécies de literatura, uma entre aspas e outra sem aspas. Eu gosto desta e detesto aquela. A literatura sem aspas é a dos grandes livros; e a com aspas é a dos livros que não valem nada. Se eu digo: “Estava uma linda manhã de céu azul”, estou fazendo literatura sem aspas, da boa. Mas se eu digo: “Estava uma gloriosa manhã de céu americanamente azul”, eu faço “literatura” da aspada – da que merece pau.

            – Compreendo, vovó – disse a menina –, e sei de um exemplo ainda melhor. No dia dos anos da Candoca o jornal da vila trouxe uma notícia assim: “Colhe hoje mais uma violeta no jardim da sua preciosa existência a gentil senhorita Candoca de Moura, ebúrneo ornamento da sociedade itaoquense”. Isso me parece literatura com dez aspas.

            – E é, minha filha. É da que pede pau…

 

16 – O galo que logrou a raposa

         Um velho galo matreiro, percebendo a aproximação da raposa, empoleirou-se numa árvore. A raposa, desapontada, murmurou consigo: “Deixe estar, seu malandro, que já te curo!…”. E em voz alta:

         – Amigo, venho contar uma grande novidade: acabou-se a guerra entre os animais. Lobo e cordeiro, gavião e pinto, onça e veado, raposa e galinhas, todos os bichos andam agora aos beijos, como namorados. Desça desse poleiro e venha receber o meu abraço de paz e amor.

         – Muito bem! – exclamou o galo. – Não imagina como tal notícia me alegra! Que beleza vai ficar o mundo, limpo de guerras, crueldades e traições! Vou já descer para abraçar a amiga raposa, mas… como lá vêm vindo três cachorros, acho bom esperá-los, para que também eles tomem parte na confraternização.

         Ao ouvir falar em cachorro, Dona Raposa não quis saber de histórias e tratou de pôr-se ao fresco, dizendo:

         – Infelizmente, amigo Có-ri-có-có, tenho pressa e não posso esperar pelos amigos cães. Fica para outra vez a festa, sim? Até logo.

         E raspou-se.

         Contra esperteza, esperteza e meia.

                                                           *****

            – Pilhei a senhora num erro! – gritou Narizinho. – A senhora disse: “Deixe estar que já te curo!”. Começou com o “você” e acabou com o “tu”, coisa que os gramáticos não admitem. O “te” é do “tu”, não é do “você”…

            – E como queria que eu dissesse, minha filha?

            – Para estar bem com a gramática, a senhora devia dizer: “Deixa estar que eu já te curo”.

            – Muito bem. Gramaticalmente é assim, mas na prática não é. Quando falamos naturalmente, o que nos sai da boca é ora o “você”, ora o “tu” – e as frases ficam muito mais jeitosinhas quando há essa combinação do “você” e do “tu”. Não acha?

            – Acho, sim, vovó, e é como falo. Mas a gramática…

            – A gramática, minha filha, é uma criada da língua, e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo – e a gramática o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar. Quem manda é o uso geral, e não a gramática. Se todos nós começarmos a usar o “tu” e o “você” misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer…

            – Eu sei o que é que ela tem a fazer, vovó! – gritou Pedrinho. – É pôr o rabo entre as pernas e murchar as orelhas…

            Dona Benta aprovou.

 

17 – Os dois viajantes na Macacolândia

         Dois viajantes, transviados no sertão, depois de muito andar alcançam o reino dos macacos. Ai deles! Guardas surgem na fronteira, guardas ferozes que os prendem, que os amarram e os levam à presença de Sua Majestade Simão III.

         El-rei examina-os detidamente, com macacal curiosidade, e em seguida os interroga:

         – Que tal acham isto por aqui?

         Um dos viajantes, diplomata de profissão, responde sem vacilar:

         – Acho que este reino é a oitava maravilha do mundo. Sou viajadíssimo, já andei por Ceca e Meca, mas, palavra de honra, nunca vi gente mais formosa, corte mais brilhante, nem rei de mais nobre porte do que Vossa Majestade.

         Simão lambeu-se todo de contentamento e disse para os guardas:

         – Soltem-no e deem-lhe um palácio para morar e a mais gentil donzela para esposa. E lavrem incontinênti o decreto de sua nomeação para cavaleiro da mui augusta Ordem da Banana de Ouro.

         Assim se fez e, enquanto o faziam, El-rei Simão, risonho ainda, dirigiu a palavra ao segundo viajante:

         – E você? Que acha do meu reino? Este segundo viajante era um homem neurastênico, azedo, amigo da verdade a todo o transe. Tão amigo da verdade que replicou sem demora:

         – O que acho? É boa! Acho o que é!…

         – E que é que é? – interpelou Simão, fechando o sobrecenho.

         – Não é nada. Uma macacalha… Macaco praqui, macaco prali, macaco no trono, macaco no pau…

         – Pau nele! – berra furioso o rei, gesticulando como um possesso. – Pau de rachar nesse miserável caluniador…

         E o viajante neurastênico, arrastado dali por cem munhecas, entrou numa roda de lenha que o deixou moído por uma semana.

         Quem for amigo da verdade, use couraça ao lombo.

                                                           *****

            – Também concordo – disse Pedrinho. – A verdade a gente deve dizer com muita cautela e só nas ocasiões próprias. Aquela sova que o Quim da botica tomou outro dia, por que foi? Porque o bobo disse na cara do Coronel Teodorico o que toda gente pensa dele pelas costas. O bobo do Quim disse o que pensava e levou um pé-de-ouvido que o deixou surdo por três dias. É o que ainda acaba acontecendo para Emília. Vai dizendo as verdades mais duras na cara de toda gente e um dia estrepa-se. Lembra-se, vovó, do que ela disse para Dom Quixote, naquela vez em que o herói montou no Conselheiro por engano e ao perceber isso pôs-se a insultar o nosso burro? E se Dom Quixote a espetasse com a lança?

            – Emília sabe o que faz – observou Dona Benta. – A esperteza chegou ali e parou. Ela sabia muito bem que o Cavaleiro da Mancha era incapaz de ofender uma “dama” e por isso abusou…

            Emília rebolou-se toda ao ouvir-se classificada de dama…

 

18 – A menina do leite

         Laurinha, no seu vestido novo de pintas vermelhas, chinelos de bezerro, treque, treque, treque, lá ia para o mercado com uma lata de leite à cabeça – o primeiro leite da sua vaquinha mocha. Ia contente da vida, rindo-se e falando sozinha.

         – Vendo o leite – dizia – e compro uma dúzia de ovos. Choco os ovos e antes de um mês já tenho uma dúzia de pintos. Morrem… dois, que seja, e crescem dez – cinco frangas e cinco frangos. Vendo os frangos e crio as frangas, que crescem, viram ótimas botadeiras de duzentos ovos por ano cada uma. Cinco mil ovos! Choco tudo e lá me vêm quinhentos galos e mais outro tanto de galinhas. Vendo os galos. A 2 cruzeiros cada um – 2 vezes 5, 10… 1.000 cruzeiros!… Posso então comprar doze porcas de cria e mais uma cabrita. As porcas dão-me, cada uma, seis leitões. Seis vezes 12…

         Estava a menina neste ponto quando tropeçou, perdeu o equilíbrio e, com lata e tudo, caiu um grande tombo no chão.

         Pobre Laurinha!

         Ergueu-se chorosa, com um ardor de esfoladura no joelho; e enquanto espanejava as roupas sujas de pó viu sumir-se, embebido pela terra seca, o primeiro leite da sua vaquinha mocha e com ele os doze ovos, as cinco botadeiras, os quinhentos galos, as doze porcas de cria, a cabritinha – todos os belos sonhos da sua ardente imaginação…

                                                           *****

            Emília bateu palmas. – Viva! Viva a Laurinha!… No nosso passeio ao País das Fábulas tivemos ocasião de ver essa história formar-se – mas o fim foi diferente. Laurinha estava esperta e não derrubou o pote de leite, porque não carregava o leite em pote nenhum, e sim numa lata de metal bem fechada. Lembra-se, Narizinho?

            A menina lembrava-se.

            – Sim – disse ela. – Lembro-me muito bem. A Laurinha não derramou o leite e deixou a fábula errada. O certo é como vovó acaba de contar.

            – Está claro, minha filha – concordou Dona Benta. – É preciso que Laurinha derrame o leite para que possamos extrair uma moralidade da história.

            – Que é moralidade, vovó?

            – É a lição moral da história. Nesta fábula da menina do leite a moralidade é que não devemos contar com uma coisa antes de a termos conseguido…

 

19 – A rã sábia

         Como a onça estivesse para casar-se, os animais todos andavam aos pulos, radiantes, com olho na festa prometida. Só uma velha rã sabidona torcia o nariz àquilo.

         O marreco observou-lhe o trejeito e disse:

         – Grande enjoada! Que cara feia é essa, quando todos nós pinoteamos alegres no antegozo do festão?

         – Por um motivo muito simples – respondeu a rã. – Porque nós, como vivemos quietas, a filosofar, sabemos muito da vida e enxergamos mais longe do que vocês. Responda-me a isto: se o sol se casasse e em vez de torrar o mundo sozinho o fizesse ajudado por dona sol e por mais vários sóis filhotes? Que aconteceria?

         – Secavam-se todas as águas, está claro.

         – Isso mesmo. Secavam-se as águas e nós, rãs e peixes, levaríamos a breca. Pois calamidade semelhante vai cair sobre vocês. Casa-se a onça, e já de começo será ela e mais o marido a perseguirem os animais. Depois aparecem as oncinhas – e os animais terão de aguentar com a fome de toda a família. Ora, se um só apetite já nos faz tanto mal, que será quando forem três, quatro e cinco?

         O marreco refletiu e concordou:

         – É isso mesmo…

          Pior que um inimigo, dois; pior que dois, três…

                                                           *****

            – Esta fábula nos mostra – disse Dona Benta – que quem só enxerga um palmo adiante do nariz está desgraçado. As criaturas verdadeiramente sábias olham longe. Antes de fazer uma coisa, refletem sobre todas as consequências futuras de seu ato.

            – Eu enxergo cem metros adiante do meu nariz! – gabou-se Emília.

            Narizinho fez um muxoxo.

            – Gabola! Vovó já disse que louvor em boca própria é vitupério.

            – Mas é verdade! – insistiu Emília. – Naquele caso da compra das fazendas para aumentar o Sítio do Picapau Amarelo, quem viu mais longe? Dona Benta, Pedrinho ou eu? Eu…

            – Perfeitamente, não nego – disse a menina. – Mas o feio é andar se gabando. Espere que os outros te gabem. Posso dizer assim, vovó – “Espere que os outros te gabem?”.

            Dona Benta riu-se.

            – Pode, minha filha, porque não há nenhuma gramática por perto…

 

20 – O veado e a moita

         Perseguido pelos caçadores, um pobre veado escondeu-se bem quietinho dentro de cerrada moita. O abrigo era seguro, e tanto que por ele passaram os cães sem perceberem coisa nenhuma. Salvou-se o veado; mas, ingrato e imprudente, logo que ouviu latir ao longe o perigo, esqueceu o benefício e pastou a benfeitora – comeu toda a folhagem que tão bem o escondera.

         Fez e pagou.

         Dias depois voltaram novamente os caçadores. O veado correu em procura da moita – mas a pobre moita, sem folhas, reduzida a varas, não pôde mais escondê-lo, e o triste animalzinho acabou estraçalhado pelos dentes dos cães impiedosos.

                                                           *****

            – Bravos, vovó! – aplaudiu Narizinho. – A senhora botou nesta fábula duas belezas bem lindinhas.

            – Quais, minha filha?

            – Aquele “ouviu latir ao longe o perigo”, em vez de “ouviu latir ao longe os cães”; e aquele “pastou a benfeitora”, em vez de “pastou a moita”. Se Tia Nastácia estivesse aqui, dava à senhora uma cocada.

            Dona Benta riu-se.

            – Pois essas “belezinhas” são uma figura de retórica que os gramáticos xingam de sinédoque…

            – Eu sei o que é isso – berrou Emília. – É “sem” com um pedaço de bodoque.

            Ninguém entendeu. Emília explicou

             – “Sine” quer dizer “sem”. Quando o Visconde quer dizer “sem dia marcado”, ele diz sine die. É latim. E “doque” é um pedaço de bodoque…

            – Parece que é assim, mas não é, Emília – explicou Dona Benta. – Sinédoque é a synedoche dos gregos, e quer dizer “compreensão”.

            – E que tem a compreensão com as duas belezinhas? – quis saber a menina.

            – Tem que, falando em “perigo” em vez de “cães”, e em “benfeitora” em vez de “moita”, toda a gente compreende a troca das palavras – e fica a tal belezinha que você achou. A sinédoque troca a parte pelo todo, como quando dizemos “velas” em vez de “navios”; ou troca o gênero pela espécie, como quando dizemos “os mortais” em vez de “os homens”; ou troca uma coisa pela qualidade da coisa, como quando dizemos “perigo” em vez de “cães” e “benfeitora” em vez de “moita”.

            – E para que serve isso? – perguntou Narizinho.

            – Para enfeitar o estilo.

            – Mas a senhora mesma não disse que o estilo muito enfeitado, muito floreado, é feio?

            – Sim. Quando é muito enfeitado fica feio e de mau gosto, mas se aparece discretamente enfeitado fica bem bonitinho. Se você vai à vila com uma flor no peito, fica linda como uma sinédoque. Mas se se enfeitar demais, fica apalhaçada e revela mau gosto. Tudo na vida depende da justa medida; nem mais, nem menos; antes menos do que mais.

            – Então é o tal usar e não abusar – lembrou a menina.

            – Isso mesmo. Discrição é isso.

            Narizinho, que era uma menina muito discreta, compreendeu perfeitamente.

 

21 – O sabiá e o urubu

         Era à tardinha. Morria o sol no horizonte enquanto as sombras se alongavam na terra. Um sabiá cantava tão lindo que até as laranjeiras pareciam absortas à escuta.

         Estorce-se de inveja o urubu e queixa-se:

         – Mal abre o bico esse passarinho e o mundo se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com repugnância… Se ele chega, tudo se alegra; se eu me aproximo, todos recuam… Ele, dizem, traz felicidade; eu, mau agouro… A natureza foi injusta e cruel para comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo me livro da raiva que seus gorjeios me provocam.

         Pensando assim, aproximou-se do sabiá, que ao vê-lo armou as asas para a fuga.

         – Não tenha medo, amigo! Venho para mais perto a fim de melhor gozar as delícias do canto. Julga que por ser urubu não dou valor às obras-primas da arte? Vamos lá, cante! Cante ao pé de mim aquela melodia com que há pouco você extasiava a natureza.

         O ingênuo sabiá deu crédito àqueles mentirosos grasnos e permitiu que dele se aproximasse o traiçoeiro urubu. Mas este, logo que o pilhou ao alcance, deu-lhe tamanha bicada que o fez cair moribundo.

         Arquejante, com os olhos já envidrados, geme o passarinho:

         – Que mal fiz eu para merecer tanta ferocidade?

         – Que mal fez? É boa! Cantou!… Cantou divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar. Ter talento: eis o grande crime!…

         A inveja não admite o mérito.

                                                           *****

            Dona Benta suspirou e disse:

            – Está aqui outra fábula muito dolorosa, meus filhos. Põe em foco a inveja – o sentimento pior que existe. A maior parte das desgraças do mundo vem da inveja, e creio que não há sentimento mais generalizado. A inveja não admite o mérito – e difama, calunia, procura destruir a criatura invejada. Felizmente é coisa que não vejo aqui por casa.

            – Engano seu, Dona Benta! – berrou Emília. – Às vezes bem que me invejam…

            – Quem inveja você, bobinha?

            – Gentes… – respondeu Emília fazendo um muxoxo de indireta…

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