apolo e jacinto, 11.
a noite foi confusa. um corredor comprido, povoado de fantasmas, como os das histórias orientais. eram gritos, murmúrios medonhos, estalos, faíscas. eram vultos que flutuavam vaporosos, ora sedutores, ora terríveis. luis se arrependia até o fundo da alma por ter pedido ao avô para viajar. tinha medo, um medo terrível. já a seguir, porém, se consolava, dizendo que não aconteceria o pior, que apenas ele venceria e era como se o vampiro agarrado às suas veias já não sugasse mais o sangue e sim beijasse com furor a sua carne trêmula. parecia ter febre, sentia arrepios, todo o corpo mergulhava numa convulsão sem fim e mesmo nas horas em que ele se entregava novamente ao medo, o vampiro a sugar o sangue de sua tranquilidade, mesmo nessas horas, ele era sacudido, como se a fúria o tivesse dominado. as imagens iam e vinham; ou o dente a cavar fundo ou o corpo dourado brilhando à sua frente, entregue à sua mão, a seus movimentos, a seu sexo que penetrava violento, uma vez, mil vezes, Eu preciso me levantar se não fico louco.
o frio da noite expulsou o morcego e o corpo dourado de seu amigo. luis sentiu alfinetes correndo dentro do corpo, tentando acompanhar a corrida sem freios de seu sangue. pegou o alaúde, Ele disse outro dia que ia me ensinar cítara. tirou um som qualquer. deitou a cabeça sobre os braços. as pernas batiam uma contra a outra, uma dor intensa nos testículos. luis saiu silencioso, o corpo iluminado, sonâmbulo, zumbi carregado de alta tensão, escondeu-se no pátio, lembrou-se das forcas, entrou num corredor escuro, o sentinela dormia lá longe, e sua mão buscou aflita a imitação de uma caverna e o vulcão se sacudiu e o fruto intumesceu e o túnel apertou-se e Ele vai acabar deixando porque vou beijá-lo na boca como no meu sonho ele se deitará debaixo de mim e afastarei suas coxas e entrarei devagar porque enquanto demorar será muito gostoso e só você pode me dar este prazer tão grande e não vou machucá-lo porque ainda sou pequeno, não sou homem ainda, vou morder seu ombro, eu mordo seu ombro eu mordo seu ombro e o túnel entra em espasmos e o vulcão entra em erupção e Você morde meu ombro, pode morder meu amiguinho, pode morder e pode continuar com força que você ainda não é muito grande e não me machuca e eu sinto como se fosse invadido pela espada sagrada e seus dentes marcam na minha carne a extrema felicidade e agora você se fixa no meu pescoço como um vampirinho amado e suga meu sangue para cobrar a parcela de sêmen que você deixou em mim e minhas pernas deixam de tremer e toda essa calma que me invade é porque eu o amo de verdade, luis, meu amigo, e acho que ela não acordou.
teófilo levantou-se, pegou a cítara, quis tirar um som mas pensou que poderia acordar a mulher e percebeu também que os dedos estavam molhados. limpou as mãos e o membro, ainda inflado, ainda carregado de eletricidade, como se larvas derretidas se aquietassem lentas para o sono temporário. o medo passou. aquele corredor de vultos e ruídos dissipou-se. Ainda bem que fiz isto. Não ia aguentar aquilo por muito tempo. foi à janela. lá longe um pequeno clarão se insinuava atrás do monte. Acho que está ficando de manhã, vou descer e ficar brincando com meu punhal. Daqui a pouco virão chamar-me para a viagem, não deixarei que ele me toque. passarinhos madrugadores já acordavam e aqueciam as gargantinhas com entusiasmo. Não consegui dormir direito. Vou subir até a biblioteca e direi que estava arrumando os papéis que quero levar. Só depois da refeição mandarei que o chamem, não gostaria de acordá-lo muito cedo, ainda é um menino. Penso, tenho certeza que conseguirei me dominar e resistir ao desejo. subiu um cheiro de gordura, algum criado preparava a carne para a viagem. a mulher levantou-se, penteou-se lenta. Por que será que ele está tão entusiasmado com estes dialetos? Que interesse há em estudar versos que nem se entende direito? Já acenderam o fogo, tomara não me queimem aquele pernil. E levará aquele guri falador, aliás, anda muito calado ultimamente. Dizem que ando muito calado ultimamente e falam que é da idade. Todos que falam isto têm um risinho malicioso, será que desconfiam que naquela noite eu subi escondido? Acho que não; se não, teriam contado pro meu avô. Tenho medo de que descubram e contem pro avô dele. Hans nunca me perdoaria. Não sei com que cara enfrentaria a todos se descobrissem. Aliás, meu medo maior é que soubessem que ele subiu àquela noite até a biblioteca. Mas se me perguntassem o que fiquei fazendo lá em cima com ele poderei dizer que ele me ensinava cítara. Ou que ficamos conversando sobre aventuras. É! Acho que terei que falar que conversamos sobre aventuras, porque ele não aprendeu nada de cítara e não poderá dizer que eu ensinei. Bobagem, estas preocupações. Ninguém desconfia de nada. desceu lento com a grande bolsa de couro, com algumas roupas. alio subia. traga-me as bolsas menores com os textos e os estiletes. sim, senhor. Diabos, por que não escondi a bolsa com os estiletes? Agora não posso fazer nada. Este criado vai atrapalhar. Aquele criado vai atrapalhar. Ele viu que naquele dia em que desmaiei eu estava todo esporrado, ele deve estar desconfiado de que houve alguma coisa. Não sei, não sei. Vamos ver o que acontecerá. e começou a atirar para o alto o punhal, agarrando-o no cabo, quando ele caia de ponta para o chão. cada vez mais alto… cada vez mais alto…
os passarinhos já não poupavam os pulmões, os homens principiavam a murmurar contra mais um dia, tão igual a todos os outros, com certeza pesado e cheio de aflições. e o murmúrio virou conversa e a conversa virou gritaria e quando teófilo percebeu que já estavam acordados, que blasfemavam no pátio, que os criados se xingavam e se perseguiam, que mães já nervosas surravam os filhos, quando viu que o dia entregava o mundo à sua normalidade, resolveu descer para a refeição matinal.
a mulher silenciosa ia e vinha. carne, leite de cabra, queijo, frutas. o mingau quente.
onde está o criado?
à espera, lá em baixo, com os cavalos.
ele sentou-se e se pôs a comer.
vai ser um dia e tanto. preciso comer bastante. compraremos alguma coisa pra você, os padres do mosteiro são ourives fabulosos. onde está luis?
hans foi acordá-lo. já deviam estar aqui.
ela também sentou-se.
há muito tempo não te vejo tão entusiasmado. tentou um sorriso. não sabia mais.
estes estudos me deixam agitado. quero compor um pequeno manuscrito com algumas anotações. luis vai me ajudar.
ela levantou a cabeça e o olhou.
Por que esse olhar? Será que desconfia? Não, não é possível, não é possível. o que acha da idéia?
a cabeça pendeu novamente.
eu perguntei o que acha da idéia!
an? ah!, eu não percebi. estava pensando que este teu entusiasmo, esta inquietação, este brilho no teu olhar, só o encontrei antes quando nós nos casamos.
foi a cabeça dele que pendeu dessa vez. Que conversa desagradável!
fizeram um barulho lá fora. Tomara que sejam eles. mas apenas hans entrou na cozinha, com as mãos sujas de sangue. teófilo levantou-se bruscamente.
o que houve?
luis feriu-se. cortou a mão com o punhal.
está em perigo?
não, acho que não. sai muito sangue mas não foi profundo. vou lavar e colocar pomada. só penso que vocês irão sem ele.
posso adiar a viagem.
não vale a pena. na próxima lua deverão começar as chuvas. é melhor resolver tudo já.
onde está ele? e saiu rápido, com o coração cheio de aflição. desejava segurar a mãozinha ferida, beijá-la, limpá-la, vigiar o sono febril do pequeno doente. não tinha sonhado com isto tantas vezes?, naquela rápida e perturbadora semana! luis estava deitado, a mão caída fora da cama, enrolada e empapada. um criado perto. no rosto, uma contração imensa, não queria deixar transparecer a dor que sentia.
o que aconteceu?
agarrei antes da hora.
está doendo?
está. e, depois de um silêncio: já estão indo? baixando o olhar, fechando os olhos, mordendo o lábio e deixando cair uma lágrima. eu queria ir também, mas não vai dar.
está tudo pronto lá embaixo!, gritou hans da janela.
Do jeito em que estão as coisas, não dá pra voltar atrás. É foda! hans se aproximava, teófilo levantou-se. quando voltar, você já estará bom. aí, aprenderá a copiar porque faremos um livro juntos. trago-te um presente. o quê?
se for um punhal!… apontou a mão enrolada.
não, não vai ser um punhal. uma cítara. a minha não está boa, há muito não a pego. vou escolher uma que seja a melhor da região.
hans abriu os braços, teófilo entregou-se à despedida do velho conselheiro. ia sair. virou-se. os olhos arderam, O que preciso fazer pra disfarçar esse desespero filho da puta? curvou-se sobre o leito.
vou escolher a mais bela cítara da região. procurarei uma que tenha vindo do norte, são exímios fabricantes. e beijou-o na face, quase no canto dos lábios. adeus, rapaz.
luis fechou os olhos, desesperado, uma máscara terrível desenhou-se implacável.
o que houve?, luis. hans também curvado. está doendo muito?
está. está doendo muito. está doendo muito agora. e virou pro travesseiro o rosto contraído e banhado de lágrimas.
teófilo precipitou-se porta afora. entrou na cozinha, beijou a testa da mulher, rápido, nervoso,
luis me atrasou. não posso permitir que a noite me encontre no bosque. adeus.
o pátio. o criado silencioso. o cavalo. Furacão, que farei sem meu amigo? Puta que pariu! Puta que pariu! o portão, a ponte, o caminho, a estrada. o corpo trêmulo. virou o rosto lentamente e encontrou os olhos enormes de alio, que já piscaram e buscaram o chão. Por que ele sempre tem este olhar triste? Era luis que devia estar aí, no seu lugar. Maldição!
o chicote, o estalo. o empinar aflito de furacão, crinas revoltas, o galopar. voltou o rosto, Corra!, filho da puta!, corra! mas o outro diminuía de tamanho, aflito, querendo acompanhá-lo, segurando as tiras que conduziam o terceiro cavalo, carregado de bolsas de couro. É covardia. Ele tem o cavalo com a carga. mas o chicote vibrou novamente, a espora feriu o ventre limpo e escovado de furacão.
teófilo sorriu. o vento gelou-lhe o rosto, fez ferver o sangue, o caminho começou a voar por debaixo dele, galhos passavam, uma canção rápida, vertiginosa, saía do chão, cascalhos que voavam, pedras que surgiam e era um salto belo de animal adestrado e a canção acelerou, o chicote, o estalo, as esporas, o mundo deslizava cada vez mais e ele fechou os olhos e abraçou-se com furacão e deixou que o cavalo voasse enquanto quisesse e a crina era quente mas os saltos do animal faziam doer as coxas porque, de olhos fechados, ele não estava prevenido para os pulos. empinou-se, estalou o chicote, meteu as esporas e pensou que lá longe estaria à sua espera uma mãozinha sangrando e como que furacão voava em direção ao horizonte.
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