apolo e jacinto, 19.
o quê? o que você disse?
não houve resposta imediata. apenas a respiração que se acelerou, o corpo que amoleceu, o soluço que começou a abrir caminho, violentando a coragem de teófilo. sentiu-se aflito, nervoso, lutando angustiado contra algum inseto invisível de ferrão profundo e mortal.
não sei. não sei, alio. está tudo confuso… não sei o que se passa. eu… eu não quero me arrepender. não quero chorar mais. não entendo o que sinto.
vamos sair daqui. eu também tenho medo. alio moveu-se.
alio! não me abandone. eu preciso de você. meu corpo estremece, meu coração se abala, sinto a ameaça de um desencadear de horrores, mas eu vou resistir. eu quero resistir. eu preciso.
sentou-se na cama de repente e segurou alio pelos ombros, com violência. alio assustou-se, tentou acariciá-lo nas mãos…
eu não vou me arrepender. eu não vou me arrepender! tenho que me acostumar, tenho que entender isto. acontece! acontece!
ao perceber que os olhos de alio se perturbavam, que sua luz agonizava, teófilo sentiu algo rebentar dentro dele.
desculpe, alio. você também sofre. desculpe.
não sei como vai entender o que direi. mas vou dizer. não estou bem, sinto algum aperto, algum esmagamento. mas eu estou feliz.
alio, eu preciso de você. você me assegurou uma conquista imensa.
alio tentou não sorrir. não conseguiu. o sorriso veio, como um passarinho que pousasse em seus lábios, para entoar a canção da felicidade daquelas três últimas noites.
quero que me entenda direito. não é uma conquista da sua pessoa. não é você que eu conquistei. é minha própria covardia! é minha covardia, que eu domei, aprisionei e destruí. não quero ter mais medo. é uma vitória, isto, você entende?
alio baixou os olhos.
não vou mais ter medo. está confuso agora; depois, acho que passa. acho que sei, por que está tudo tão confuso.
alio levantou o rosto. teófilo o fitou, cheio de desolação. os lábios de alio reexplodiram o balão:
luis?
um oceano começou a tragar teófilo. não um oceano, uma areia movediça.
é. luis. sua voz baixou. por que falou esse nome?
você acabou de falar isto quando dormia. jacinto! luis!
teófilo deixou cair o corpo novamente. tentou respirar mais devagar. o balão tinha se rompido, era preciso explicar os seus vestígios, pedaços de cores e de dúvidas que voavam em torno dele.
sinto algo voando em torno de mim, alio. ou como se eu estivesse à beira de um abismo. É só dar o passo fatal. alio… Vou te entregar um cofre com um segredo. vou te entregar um cofre com um segredo, alio. você se apossará de um tesouro. se levar a outros o meu segredo, fará em minha vida uma tal devastação… que não me adiantaria matá-lo. vou confiar meu segredo. não sei se desconfia, não sei o que pensa, não sei o que já descobriu. eu amo aquele menino… desesperadamente… não quero entender nada! no princípio, eu me afligia com tudo que estava acontecendo. agora, não. foi tudo extraordinariamente rápido. eu sei que o amo. quero amá-lo. sou feliz por que o amo.
alio, silencioso e atento, não se movia. ao perceber que teófilo o fitava, quem sabe, à espera de alguma reação, para continuar, para parar, para gritar ou para chorar, levou a mão no seu rosto e lhe fez um carinho.
você sabe que ele vinha conosco. e eu tinha tramado um plano, pra que você voltasse pro castelo e nos deixasse sós. dá pra entender, agora, o meu desespero? o que aconteceu… não sei… o que aconteceu poderia ter acontecido entre eu e ele e eu não ia suportar as fúrias a dar ferroadas em minha alma, clamando por arrependimento. eu seria inteiramente o responsável. e eu não estou em condições. eu não tenho direito. eu não tenho esse direito. também não sei se eu teria coragem. provavelmente, não. é quase certo que não. mas o pensar na possibilidade é apavorante!
teófilo oscilava ofegante, ondulava, vacilava… virou-se lentamente e deitou-se de bruços. puxou sobre si um cobertor. sua voz vinha de muito fundo…
veja a que fiquei reduzido. eu, o senhor do castelo. seis homens foram enforcados. um homem foi poupado. eu… o senhor do castelo… tremo como folha ao vento. bastaria que o vento ficasse mais forte pra me desmanchar por inteiro…
alio o abraçou suavemente, aconchegou-se, colocou sobre suas nádegas o peso de sua coxa.
com você, é mais fácil. com você, na prestação de contas exigida por minha consciência vigilante, com você eu divido a culpa, eu partilho o pecado. não… nada de culpa nem de pecado… entenda bem, alio. preciso que entenda isto: não é por que você é meu criado. você entende? não é por que você é meu criado. não quero que fique magoado. isto de senhor e criado… não é por isso. é porque você é adulto.
alio estreitou-o mais, esfregou a perna com força, enfiou a mão debaixo da barriga de teófilo, amassou com a palma da mão o bosque espesso, sabia que naquele momento a serpente não se agitaria para castigar algum intruso.
não é pecado! não é pecado! não pode ser pecado!
eu também acho que não é pecado, alio. mas não encontro outra palavra.
Como pensar em pecado?, agora!, quando o tenho tão junto de mim e meu corpo principia a se transformar numa harpa seráfica, que estremece e geme, ansiosa por que principiem os cânticos!
pensou uma voz de anjo, nas profundezas do coração de alio, o jovem de olhos de seda.
teófilo se virou e o abraçou forte mas, quando seus lábios se tocaram, fendeu-se algo dentro dos peitos e manou a fonte fecunda e interminável de um choro caudaloso. amaram-se em meio a uma convulsão de lágrimas que banharam rostos e mãos e sexos de ambos e a fonte daquele pranto de origem desconhecida, que parecia brotar tão só de seus desejos selvagens, a fonte só cessou depois que os derradeiros estremecimentos se desmancharam no meio da neblina.
duas horas depois, teófilo desceu e pediu que providenciassem o carroção. pretendia ir ao mosteiro das tílias, não poderia esperar mais.
estavam terminando de fechar as últimas bolsas de couro, quando o casal veio chamá-los. teófilo deu a cada um deles um saquinho com moedas de prata. seus olhos faiscaram ouro, diante do dinheiro. despediram-se. entraram. estava escuro, porque a lona fechava tudo, espessa. algo se sacudiu, sentaram-se num canto, a carroça começou a andar e um chuveiro barulhento desencadeou-se, o céu inteiro se rasgando.
iam devagar, eis que, amarrados nos lados do carroção, seguiam furacão e os dois cavalos levados por alio.
não trocaram uma palavra durante muito tempo. o barulho diminuía. a chuva, pesada e vertical, virou pozinho de água. teófilo desamarrou a lona que dava pro cocheiro.
não está molhado?
não, senhor. me cobri com um manto grosso e pesado. querem parar?
está longe?
mais uma hora.
então, vamos continuar.
fecharam a cortina e abriram a lona do fundo da carroça. a estrada escorregava lenta para longe. as pedras diminuíam de tamanho. as poças foram rareando. o céu mostrava pedacinhos de azul.
alio. fale alguma coisa dele.
alio o olhou firme. não é tão inocente como pensa.
por que diz isto?
naquele dia em que desmaiou…
era você que estava lá? sim!, sim!, agora me lembro. você foi pegar uma esponja e…
não sei o que aconteceu, então. mas, quando o virei na cama… ele estava… todo… molhado. tinha gozado…
eu tinha medo de minha coragem, mas a dele me assustava mais ainda. não sei como será depois. apertou a outra mão. acho que, com você, por perto, será mais fácil amá-lo. quero ser livre, sem ser molesto! eu vou ser livre, sem ser molesto!
a estrada continuou escorregando para longe. as pedras d’agora também deslizavam lentamente para longe, continuavam diminuindo de tamanho pouco a pouco. e o céu, cada vez com pedaços maiores de azul.
alio. você se sente como uma vítima… uma espécie de minha vítima?
não! não, não. e depois de um silêncio: seríamos vítimas da mesma divindade implacável. sorrindo.
acredita nisso de divindade?, de deus?, retribuindo o sorriso: um sorriso pássaro, um pássaro triste, um sorriso pássaro de canto triste.
não.
eu diria que foi um por-acaso feliz. um por-acaso mais feliz.
a carroça parou. vozes, alguém abriu um portão. novo sacolejar e o caminho que agora escorregava para longe era ladeado de flores coloridas, limpas e brilhantes.
chegou a ler passagens da guerra de tróia?
li para seu tio algumas traduções.
o carroção parou.
você será meu pátroclo!
aquiles!
outra voz e quebrou-se o encantamento e extinguiram-se as labaredas que tinham feito uma ponte entre seus olhares.
durante o resto do dia instalaram-se, lavaram-se, visitaram o mosteiro, alio conheceu a biblioteca, tão familiar a teófilo, examinaram livros. à tardinha, um irmão os levou a conhecer os trigais e o pomar. a chuva voltou, porém. munidos de alguns manuscritos, esconderam-se do mundo, numa cela pequenina, com dois leitos altíssimos. abandonaram os livros pelo chão e se amaram desesperadamente até pouco antes da madrugada.
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