Alma desdobrada, cap. 113, 114, 115, 116 e 117.

Alma desdobrada, capítulos 113, 114, 115, 116 e 117.

 

113.

          depois que rodeei por três vezes a zona, sem ter tido coragem de lá entrar, desisti da idéia de trepar com uma prostituta. daria para dizer que, de certa forma, eu me resignara à condição de casto, virgem, puro. desistira de tentar, de medo da derrota.

          então, apareceu B…, minha vizinha. ela entrava e saía de nossa casa com muita liberdade – eu morava com milinha, márcia e carlinhos. eu percebi nela um certo interesse em estar junto de mim. numa noite, em que íamos sair, ela pediu que eu pintasse seus olhos. quando minha mão estava junto a seus lábios, ela a beijou. olhamo-nos. eu antevi alguma possibilidade de redenção. mas meu coração estava ligeiramente indiferente.

 

114.

          é tão confuso escrever. para quem escrevo? para mim, ou para o mundo? não seria honesto eu afirmar que escrevo só para mim. passa pela minha cabeça que eu seja lido um dia e alguém diga: que vida incrível!, esta. e que capacidade extremada de dar expressão exata a tanta difusa experiência! por outro lado, não me interessam opiniões a respeito do que faço. penso que escrevo para tentar traduzir o profundo do que sou.

 

 115.

          na hora em que ele deveria nascer, eu esperava. estava cheio de tensão, não mais com perfeição ou parto sem problemas. me preocupava tão somente com o existência, o viver, o chegar, o bater à porta da vida e se transformar em gente e ao mesmo tempo em filho. A… já foi para a sala de parto e zé geraldo me leva ao quarto onde ficaríamos, para que eu esperasse por ela. eu caio na cama e um sono violento me derruba imediatamente. súbito acordo numa fração de segundo. tenho às vezes este tipo de acordar. levanto-me e chego à porta. um homem de branco passa no corredor, entra numa sala, percebe meu barulho e se volta. é zé geraldo. me olha com os olhos brilhantes e um sorriso discreto. nasceu? nasceu! tudo bem? tudo joia, jorge. vem cá pra vê-lo. eu o acompanho e vejo, vejo do outro lado do vidro algo que dizem ser meu filho. um corpinho enrugado e magro, quantos séculos de idade?, mexendo-se desordenadamente. uma voz grita no mais fundo de dentro de mim: é eu, e eu vou ter que começar tudo de novo. corro ao quarto e começo a chorar.

 

116.

          aos dezoito anos, já apaixonado pela música que ouvia sempre na rádio ministério da educação, no rio, eu compro um álbum de discos, de seleções reader’s digest. não tenho, todavia, eletrola. curto os discos tatilmente, visualmente, leio suas etiquetas, leio os textos explicativos. uma ou outra música eu já conheço de ouvir pelo rádio. aos vinte anos, terezinha ribeiro, amiga da neuza, diz: jorge, vou viajar um tempo, quer ficar com minha vitrolinha? então, a partir daí, ouço música de manhã e à noite e durante todo o fim de semana, alucinadamente. algumas vezes, ouço zumbidos que nunca mais acabam e sons insistentes martelam minha cabeça. eu não conseguia me livrar das frases musicais, tamborilo ritmos, enlouqueço. estou escravizado à mais violentamente doce de todas as torturas.

 

117.

          você amou V… como um adolescente que vira adulto. você cresceu, aceitou este tipo de paixão, relutando porém em aceitar que tanta emoção convivesse com algum desejo físico. o amor por V… era para ser como o amor wagner-lizt ou o amor wagner-nietzsche, uma paixão apenas platônica. aprendi muito com aquele menino. daria pra dizer que ele me deu bergman e eu dei a ele dostoievski.

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