Alma desdobrada, cap. 227, 228, 229, 230 e 231.

Alma desdobrada, capítulos 227, 228, 229, 230 e 231.

 

227.

incesto

 

menino, seja agora meu filho,

que eu quero ser seu pai.

ou seja então meu pai

que me faço teu filho…

 

não tenha vergonha de tua fraqueza!

estou aqui, agora, ao teu lado.

pra te alimentar,

fazer cafuné nos teus cabelos.

colocar baixinho a voz de bob dylan,

a chorar nosso mundo insano e cruel,

e te cobrir depois, só depois,

que você adormecer.

 

então, serei um pacotinho de filho

a procurar abrigo na gruta do teu abraço

e também um pedaço de pai

a vestir tuas pernas com as minhas.

e, na intenção feiticeira de te dar forças,

segurarei tua mão e mexerei em teus dedos

com cócegas lentas

e doces unhadas,

fingindo estar brincando com você.

mas o que vou querer mesmo

é acordar o teu desejo.

então, você se mexerá um pouco,

e agora,

nem pai nem filho,

nem eu nem você,

somos nós,

unhas e dentes e o tamanho descomunal

da aflição

que só termina com o orgasmo incontido.

 

e, se depois de outros sonos,

seja eu o inseguro e medroso e fraco,

serei então o filho

a procurar o ninho do teu abraço;

sem vergonha nenhuma.

você será meu pai

até a hora imprecisa em que desaparecem

pai e filho.

 

haverá um momento, quem sabe?,

em que não mais trocaremos de papel.

pai e filho, eu;

você, pai e filho.

tentando, nós dois, resolver carências

por tudo o que nos foi negado.

com nossos beijos,

com nossos gozos,

nossos olhares de sono

e nosso adormecer sem culpa.

 

228.

          A…, seja esta a última vez que falarei de você.

          nada mais temos a ajustar.

          casamo-nos no auge daquilo que me era amor. cuidamos um tanto de nossos filhos. você os levou de mim, julgando que eu iria atrás deles e, consequentemente, atrás de você. não fui. tentei ser amigo da mãe de leo e bruno. você, com sua desesperada vigilância, cria ódios sobressalentes dentro do meu coração.

          você condena atualmente, com toda a fúria do seu medo à vida, a minha sexualidade. no meu entender, esta sua agressividade é patológica.

          você me ameaçou a vida, recentemente. disse três vezes seguidas que se eu comentasse com leo e bruno coisas a respeito de meu modo de viver – Y… e Z… – você “acabaria com a minha vida”.

          não hoje, não amanhã, mas depois de amanhã, leo e bruno saberão de minha vida; de meus ódios, meus medos, meus crescimentos dolorosos e aquilo que amplia o tamanho de todas as minhas atitudes: meus amores.

          não hoje, não amanhã, mas depois de amanhã, falarei a leo e a bruno de Z… e de Y… e de X… e meus encontros silenciosos e cheios de uma alegria condenada.

          não quero viver no meio de suas mentiras, nem no meio de suas caras, que não chegam à metade das caras do que pode vir a ser projeto de gente.

          renego isto a que você chama uma vida conservadora, oferecendo aos meninos uma lata prisão para que eles, sardinhas, se encolham, se aquietem e se condenem ante teus olhos aprovadores da morte morta.

          quero dizer a eles de liberdade. não tenho certeza se o que eu encontro é liberdade. sei que é o que busco. se não é o que acho, continuo a procura desvairada.

          que esta busca está na ação, não na conserva.

          você tem medo de viver e me ameaça a vida. não tenho medo de sua ameaça. eu me defendo de você.

          os meninos aprenderão a também se defender.

          de você. e de mim, naquilo em que eu possa pretender aprisioná-los.

 

229.

          bruno, falarei já já com você. não agora, quando, há tão pouco, incluí você nessa pretensa discussão com tua mãe.

          falarei de teus bichos ainda uma vez. de teu jeito de rir, de tuas perguntas sem resposta fácil e, principalmente, de teu sono cheio de chuva miúda, sereno, brisa, abelhas sem ferrão e beija-flores.

 

230.

          escrevo a novelinha interplanetária (acho que nunca a terminarei) e nela enumero os meus heróis: zaratustra, hamlet, quixote e ivan karamázof. adotei-os como minhas prediletas fantasias. daria para incluir, noutra hora, jeremias, o chorão. não tão já. por hoje, fico com os quatro.

          estou jantando com Z…, meio bêbado, e ele me pede para falar de zaratustra. principia um choro em mim. não quero falar de zaratustra, porque o homem que o escreveu morreu louco. não me conformo com isso; até onde se pode ir, sem se correr o risco maior? qual é realmente a penúltima loucura? já expliquei aqui o que é, para mim, a penúltima loucura?

          digo que não falarei de zaratustra, mas de outro qualquer herói. então, passa pela minha cabeça um relâmpago, que decreta: todos os meus heróis são loucos. entende isso?, Z…. todos os quatro são loucos! cada um à sua maneira: zaratustra, trazendo aos homens uma alucinada nova verdade com uma moral perigosa; o quixote, com sua mais lírica loucura, de levar porrada do mundo, enquanto pretende defender viúvas e órfãos; hamlet, com suas desequilibradas atitudes, simulando o que acaba sendo; ivan, que conversa com o diabo, ao mesmo tempo em que desenvolve sua diabólica lucidez.

          isto assusta um pouco.

          não quero me assustar mais do que o tanto que agora me assusta.

          às vezes, surge no fundo do meu abismo a suspeita de que eu corro o risco da loucura; às vezes, surge, percorrendo o mesmo trajeto, que minha loucura depende de mim.

 

231.

          tenho vinte e um anos e lilian me propõe um teste: escrever durante três minutos palavras avulsas, separando-as por minuto: eis o resultado:

          caneta parede caderno eu jorge dostoievski tolstoi bach lápis livro luz deus eternidade liberdade kant armário menino criatura sentimento amor xícara responsabilidade

          alemão russo estudo inglês mórmon passeio ônibus dinheiro trabalho boca olhar verde mar atena brilhante homero teatro grego irene papas electra glória absurdo gênio genialidade estupidez ign

          ignorância negrura alma céu inferno catolicismo grande inquisidor brahms mozart tanhauser wagner lohengrin alemanha angela portugal viagem carta lápis escrever fim morte estranho

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