Alma desdobrada, cap. 76, 77, 78, 79, 80 e 81.

Alma desdobrada, capítulos 76, 77, 78, 79, 80 e 81.

 076.

           como é bom, como está sendo bom escrever destas coisas. com a minha lucidez de agora, com a minha tranquilidade de hoje. é bom lembrar disto tudo, sinto-me me refazendo aos poucos, a partir de pedaços. tudo isso sou eu. alguém duvida? o que está por vir ainda? enquanto lembro, não sinto dores fortes. é tão somente comovedor. tudo que sou, vai subindo aos poucos. minha maior comoção, todavia, é o momento que estou vivendo: minha paixão pelo meu amigo, minha terapia, o me sentir produzindo coisas.

  

077.

           eu saberia me virar sozinho. eu continuo falando com eles, a sessão de terapia ainda não acabou.

          eu vou aprender a ser órfão. vou aprender que devo crescer sozinho. contarei comigo mesmo, de agora. eu não fui inteiramente destruído, amarrado. dentro de mim, escondida, esteve à espera uma vidinha qualquer. ela vai crescer e tomar conta do resto daquilo que sou. ou é bem uma pequena chama que vai aumentando. não tenho mais medo de vocês. vocês são fantasmas apagados que desaparecem e diminuem por fora do que sou. quase não os sinto mais, são como presenças passadas. eu, nascido de novo, vou criar meu jeito de ser feliz. falta apenas, me falta apenas, agora, abrir os olhos. não é difícil abrir os olhos. difícil é ser parido, parir-se a si mesmo. agora, posso abrir os olhos quando quiser.

          no entanto, é com extrema dificuldade que abro os olhos e, em silêncio, saio do tablado do psicodrama.

  

 078.

           estou no alto de uma torre, em verona, não me lembro mais que torre era aquela. o dia adormece, desmaia, morre. tenho ao meu lado eugenio. eugenio, que coisas teria eu a descobrir em você? contemplamos lá do alto a cidade cheia de pequenas luzes. estou comovido pra burro. é que a itália foi demais, verona me perturbou e eugenio ultrapassou minhas esperanças. conhecemo-nos em segundos, na estação, você dirigiu-se a mim enquanto eu e você esperávamos que a máquina de fotos devolvesse nossas fotografias. começamos a conversar e daí a dez minutos passeávamos no meio da neve. neve nella italia? perché no! com seus olhos imensos e seus cabelos pretos e densos mas, sobretudo, com o seu jeito tranquilo de falar e seus gestos cheios de ternura. algo muito suave flutua ao redor de nós dois. às vezes eu o toco rapidamente no ombro, nos cabelos. sinto crescer em mim o desejo de abraçá-lo. caminhamos junto ao peitoril diversas vezes, dentro de um pesado silêncio, cheio de tensão. percebemos, os dois, que queremos parar o tempo. não queremos descer tão já, ainda não é a hora de descer. é apenas a hora da decisão, há um abraço apertado e comovido para ser dado, precisamos, os dois, decidir que é chegado o momento. mas é a indecisão quem vence. olhamo-nos com nossos olhos cheios de fogo, mas uma força descomunal impede que eu estenda os braços.

          então, eis que ele está de costas e eu estou do outro lado do terraço. vou resoluto até ele, está na hora do abraço. eugenio me vê chegando perto, meu coração está querendo explodir, seus olhos se enchem de luz. mas eu me debruço no peitoril e fico olhando para o vazio. sem nada ver.

          não foi grande a minha coragem. não foi nenhuma. não o abracei como queria. por quê? por que não o abracei como desejava?

  

079.

           caminho perdido pelas ruas do rio. tenho uma pasta com envelopes cheios de duplicatas, recibos, faturas e cartas. as pessoas me assustam. imagino um mundo sem tanta gente. geralmente acabo caminhando na rua, próximo do meio fio. as calçadas me irritam, sinto-as formigueiros humanos. quantas vezes eu esqueço para onde vou e fico pasmo, pateta, procurando me encontrar. entro em todas as livrarias. conheço-as em detalhes. duas coisas me impressionam muito. os livros de arte e os clássicos. folheio com vagar os livros de arte. eu tenho todo o tempo do mundo. e procuro nos clássicos os nomes que já conheço de estudos e referências: homero, dante, shakespeare, camões. eles me assustam muito. eu penso que eles são como o teatro: coisa para ricos. naqueles dias, para ir ao teatro, precisava estar de paletó e gravata. nós, os pobres, não ousávamos sonhar com teatro. e, para mim, aqueles nomes nos livros, carregados de admiração, eram coisa de gente rica.

  

080.

           depois que nasceu leonardo, eu e A… descobrimos um livro que ensinava a programar, sem certeza absoluta, claro!, o sexo do filho. lemos, concordamos com tentar uma menina. antes do leonardo, eu pensava e falava em quatro filhos e ela concordava. após leonardo, concordamos com que fossem dois. um casal. um casalzinho. então, como da vez anterior, ela suspendeu as pílulas. passou um tempo de férias em belo horizonte, com leonardo. eu cheguei para buscá-los. alegria e festa, leonardo, quando sabia de minha chegada, passava o dia sentadinho no portão do prédio onde a vó morava. à noite, deitados, cheios de carinho, permiti que crescessem minha ternura e o meu desejo. a A… alertava, não, não, vamos esperar o prazo. eu dizia que íamos esperar e não estávamos correndo risco ainda. cresceu meu desejo e eu não o interrompi, não, não, e me deixei levar até o fim do caminho um só caminho, não, não, no meio do meu tremor eu pensava que não haveria fecundação, não, não, e ainda que houvesse, seria o filho ou a filha um filho, alguém mais na nossa vida, inteiro, completo, vivo.

          eu descansei e dormi feliz com a minha arte.

  

081.

           como saber da vulgaridade, sem se deixar tocar por ela? houve um tempo em que eu desculpava certos atos meus, dizendo que, enquanto fossem experiências, eu estaria enriquecendo minhas vivências. pairava no ar de meu projeto de vida algo assim como afirmar que toda e qualquer experiência haveria de aprofundar a minha literatura. então, se eu fizesse sexo com pessoas diferentes e com frequência, estaria tão só aumentando o meu leque de possibilidades narrativas. isto não é verdade. meu livro apolo e jacinto, que contém detalhadas cenas de sexo entre dois homens, foi escrito numa época em que eu ainda não tinha feito nenhuma experiência do tipo.

          se me deixo envolver pela vulgaridade é porque ela me atrai. porque não vejo imoralidade no que faço. sei que há situações arriscadas, assumo algum risco com alguma maior prudência, pelo gosto do prazer. me deixo envolver pela vulgaridade porque não a considero vulgar. vulgar é não ler, ouvir música que não é música.

          quantas vezes tomo um jovem no carro, sob o pretexto de dar carona, toco seus genitais e o convido para trepar comigo? muitas e muitas.

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