Alma desdobrada, cap. 70, 71, 72, 73, 74 e 75.

Alma desdobrada, capítulos 70, 71, 72, 73, 74 e 75.

 

070.

          a sessão de terapia continua… procuro minha mãe, gostaria de saber onde está ela. eu reconheço nela a mulher cabisbaixa que tentava puxar a cadeira com o ídolo aprisionado. ela também é impotente. olha para mim e se afasta. continuo sabendo de minha orfandade. não tenho raiva deles. o ambiente diminui, eu me agiganto. devo falar com eles, insiste brunetti. eu levanto o rosto, ainda de olhos fechados, ainda com as mãos no rosto. então eu despeço meu pai, dizendo que gostava dele. despeço minha mãe, dizendo que eu contaria apenas comigo.

 

  

  071.

          que cânticos cantava minha alma?, que visões celestiais feriam meus olhos?, que fulgurações cintilavam dentro de mim?, quando eu tomava o ônibus para JJ… e ia ver W…? hoje tudo aquilo me parece pálido e meio silencioso, se comparo aquele amor com o amor por Z…. mas assim era: descomunal, absurdamente grande. aquilo era tudo que já não cabia em mim. eu cresci, cresceu a dimensão de minhas paixões.

         eu te amei muito, pequenino. sonhava, sonhava, sonhava! delirava depois de um olhar, uma palavra esvoaçante. eu era daquele tamanho, daquele tamanho era o meu sentimento.

         lembro de nós dois passeando pelas colinas que levavam ao campo de aviação. muito de vez em quando, a gente se dava a mão.

         lembro de nós dois deitados na varanda, você com o rosto sobre minha barriga. num momento você chegou os lábios no meu ventre. não dá pra dizer que foi um beijo, porque você apenas encostou a boca em mim. mas a sensação daquele toque não se apagou jamais.

         não precisava que fosse beijo. bastava que fosse como foi, você e eu.

  

072.

          a sessão continua… agora, neuza passeia em volta de mim, com um chicote na mão. falo com ela, repito que não gosto dela, que viverei a vida que eu quero viver, de homem ou mulher, minha, não importa, minha vida com minha moral. com música, com desenhos, com sensibilidade. ela não me atemoriza mais. bastaria levantar a mão e fazê-la cair sobre sua imagem. não o faço, porém, porque ela surge deitada à minha frente, pequenina, magra, doente, branca, cheia de sofrimento. o que me dói, então, é não poder brigar com ela, porque ela está doente. falo isto alto. falo que não era agradável que eles estivessem mortos, porque eu não podia jogar-lhes na cara um puta que pariu ou eu gosto de você ou eu sinto saudades. mas isto não era problema deles, era problema meu, eu saberia me virar sozinho.

  

073.

          foi depois que tudo aconteceu, que percebi que tinha acontecido. eu me sentava na primeira fila, ele estava na terceira. não sabia do que estava por acontecer. duas ou três aulas depois, eu subi e me sentei perto de onde ele devia estar. e percebi, frustrado, que ele estava onde eu estivera. voltei ao meu lugar no dia seguinte e sentamo-nos juntos, V…, a partir daí, até o fim do terceiro ano. dois anos inteiros de uma alucinada dedicação. amigo meu, quanta coisa de você, de mim, de nós, quanta coisa de nós dois eu tenho presas no coração… se eu tivesse de me lembrar agora da mais fulminante, não saberia. deixarei que elas subam à sua ordem. como pássaros independentes que queiram levantar vôo; o vôo deles, não o meu.

  

074.

          meu vôo já foi levantado. eu flutuo nesse mar de memórias.

  

075.

          Z…, eu te amo.

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