apolo e jacinto, 0.
Este livro é dedicado a todo aquele que esconde sua voluptuosa face de pedofilia atrás de sua voluptuosa máscara de castidade.
Seu arco na mãao as aves ferir,
a las que cantavan leixa-las guarir,
a las aves meu amigo.
Seu arco na mãao as aves tirar,
a las que cantavan non nas quer matar,
a las aves meu amigo.
(Cantiga d’amigo. Fernando Esguio).
Meu pensamento me leva por seus caminhos. É um senhor absoluto, meu pensamento.
Vai, dominador, por seus caminhos, e arrasta, atrás de si, à força, o meu desejo.
Meu pensamento não me pertence. Eu é que pertenço a ele.
apolo e jacinto, 1.
desde a manhã, o castelo explodia em risos e canções. primeiro, a senhora havia presenteado com uma medalha de ouro o chefe das duas guarnições que aprisionaram os sete. a seguir, cavaleiros empenharam-se no torneio, caindo, quase todos, com estrépito de metais que se batem. o último deles, invicto, recebeu de todas as jovens casadoiras, sorrisos e vivas. e, finalmente, o banquete. os dentes trincavam as carnes mal cozidas das caças abatidas, ainda cheias de um sangue aguado. o vinho escorria pela barba dos nobres e um alaúde acompanhava o canto de um garoto, de roupas coloridas, muito bonito e tímido.
o vencedor dos torneios, levantando sua taça, gritou alto:
aos capitães, que aprisionaram os sete!
todos gritaram em coro. foi nesse momento que o senhor do castelo observou a falta de hans von bayern, seu velho conselheiro. cochichou no ouvido de alio, seu criado particular, e este saiu. o jovem já volta com a notícia de que o velho estava no terraço e o senhor sai a procurá-lo. algum guarda pretendeu segui-lo.
fica aqui. sairei sozinho.
e principiou a subir a escadaria de pedra. súbito sua mão tocou num anel de ferro. parou, disparou-se-lhe o coração, olhou para os lados, para certificar-se de que ninguém estaria vendo, puxou rápido o anel, que fez abrir ao lado um bloco de madeira. entrou e, do lado de dentro, comprimiu o mecanismo, que se fechou.
não entendeu o porquê daqueles sobressaltos. seus pés tatearam a escuridão, mas as pernas tremiam descontroladas. aos poucos o olhar se foi acostumando e já dava para divisar os degraus que subiam e desciam, paralelos à escada exterior. apenas ele e hans sabiam daquelas escadarias. para elas davam acesso cinco portas camufladas, espalhadas estrategicamente pelo castelo. ninguém jamais se perguntara por que cinco dos anéis eram de ferro e não de bronze, como todo o resto. nem se sabe mesmo se alguém os notara, os fechos misteriosos: bastava puxá-los um pouco para cima e no lado se abria uma passagem de quase um metro de largura.
Há muito não entro aqui. Tinha esquecido este mundo de trevas. Seguramente não visitei estes labirintos nos últimos cinco anos. Era novo, não tinha casado ainda e me esquecia de mim, rondando na escuridão, ouvindo as conversas veladas e arrebentadas, como palavras avulsas num roto pergaminho.
Na verdade, nunca entendi direito por que vinha aqui nem por que parei de vir. hans diria: impulsos da mocidade. Acho que não conseguirei falar com ele, não sei por que tremo tanto. Não voltarei à festa. De repente me envolveu uma estranha atmosfera esquecida de mofo, escuridão e pensamentos loucos. Tenho medo disto tudo. Há um abutre vigiando meu coração, pronto para arrancar dele um pedaço vital à minha tranqüilidade.
trêmulo e assustado, ele subiu uns cinco degraus e vislumbrou as curvas da escadaria que subia tortuosa até o alto da torre, onde um pequenino furo na parede permitia que se divisasse um pedaço da praia e o mar sem fim. não, não era o mar sem fim que ele queria ver. desceu alguns degraus e algo arrebentou de súbito, dentro dele, um horror, uma lembrança indefinida. subiu apressado, ouviu pela fresta, silêncio, comprimiu a mola e saiu pela abertura, respirando fundo, os olhos desacostumados da luz das tochas oleosas.
subiu à biblioteca, abriu um livro empoeirado, com poemas à virgem, sabia-os de cor, deitou-se no leito sujo, abelhas negras e maléficas voejavam em torno, Para onde fugiu minha serenidade?
pulou da cama, desceu, alio, o criado, estava parado à porta do quarto,
suba e limpe a biblioteca,
Lá tem uma saída secreta, tinha me esquecido,
e foi dormir uma confusa noite de visões e vozes.
no dia seguinte, mandou que preparassem furacão. alio, o criado de olhar macio, se afastou, ele desceu em seguida, cavalgou sozinho e se perdeu no bosque cheio de sombra. queria entender o que sentia, mas só percebia que havia um zumbido difuso a persegui-lo.
depois da janta, ele disse que ia fazer uma inspeção nos terraços. mandou que o criado fosse dormir, depois que soube que a biblioteca estava limpa. subiu e desceu escadas, até que percebeu estar sozinho, sem soldados a vigiar. abriu o mecanismo e entrou novamente no mundo das vertigens.
principiou a descer a escada secreta. a pesada porta que encontrou, quando chegou ao fundo, começou a ranger muito alto. abriu apenas uma fresta, por onde entrou apertado. era uma câmara enorme, com clarabóias no chão, feitas de grades de ferro: o teto da prisão. lá embaixo, uma tocha quase apagada e um sentinela dormindo. continuou andando e procurando, olhando através de cada uma das grades, até que atingiu a cela dos sete prisioneiros.
estes malditos ratos! não se preocupe! enquanto tiverem comida, não nos atacarão! nem terão tempo. amanhã seremos, no mínimo, enforcados! não fale assim, porra! já que estamos fudidos, não precisa ficar repetindo! você já viu um enforcado? já, seu puto! meu pai! nem sei por que não nos mataram lá mesmo. acho que adquirimos certa fama e o rei quer nos mostrar pros camponeses. ah, o imbecil! fama! e depois, não é rei, veado, é um reles castelão. é tudo a mesma merda! é tudo a mesma cambada de filhos da puta!
o senhor voltou-se apressado e subiu em direção à biblioteca. estava apavorado. tremia, confuso, bêbado. os palavrões iam e vinham, o aspecto de tudo era repugnante. fechava os olhos e as imagens dançavam. ora pareciam ser uns trinta prisioneiros, ora apenas um. Não, de dois eu me lembro, são magérrimos. Os outros parecem irmãos, são iguais, barbudos, cabeludos, imundos. Um deles tinha as mãos dentro das calças e não parava de movimentá-la, sôfrego. Os outros… não, dos outros não me lembro direito…
dos outros não se lembrou direito. comprimiu rápido a mola do bloco que dava para a biblioteca e entrou, sentando-se. esteve um tempo sem se mover, os olhos arregalados para o vazio. É possível ficar algum tempo sem pensar? Acho que não! aquela mão movendo-se dentro da calça não desaparecia.
tentou dormir. o zumbido estranho estava mais forte. ouviu passos subindo as escadas. levantou-se, rápido, pegou um livro ao acaso, abriu-o. a mulher entrou silenciosa, enquanto, junto à porta, parou um criado segurando uma tocha.
não sabia para onde você tinha ido. não se sente bem?
estou bem. fechou o livro. vamos descer. dormirei aqui algumas noites. descobri alguns livros com dialetos antigos e quero estudá-los um pouco.
desceram. ela logo adormeceu. ele levantou-se, foi até a biblioteca, trancou-se por dentro. abriu a porta camuflada, encontrou-se novamente nas escadarias secretas.
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