apolo e jacinto, 17.
quando teófilo abriu os olhos, uma luz forte o cegava. a janela estava aberta. não chovia mais. procurou alio. estava sentado à mesa. aproximou-se, enrolado.
você saiu da cama…
alio sorriu. não estava com sono.
teófilo enfiou a mão dentro do cobertor, acariciou os pelos do peito de alio.
de repente, parou de chover.
podemos passear por aí.
alio, sabia que… nunca… tinha acontecido antes?
não, não… eu sempre pensei que… os senhores…
fossem todos uns veados, não é?
não quis dizer isto, não gosto dessa palavra.
desculpe. eu também não. é uma ovelha negra que escapuliu.
ah! sorriu.
o que foi?
você falou em ovelhas negras, quando estava bêbado.
teófilo sorriu. abraçou-o. beijou-o na testa.
estou sentindo uma estranha tristeza… não compreendo. na verdade, estou muito assustado com o que aconteceu…
alio nada falou.
minha roupa está seca. pedirei a roupa que dei pra arrumarem pra você.
vestiu-se. vou descer e trazer suas roupas. sairemos por aí. a pé. estou morto de fome. desceu.
alio se enrolou um pouco mais. não sabia que sensação era aquela, Algum aviso distante, não sei o que é. colocou-se à janela e se esqueceu, perdido no meio da paisagem clara e azul. teófilo voltou.
vista-se.
alio desnudou-se. ao levantar o olhar, deu com os olhos de teófilo. baixou a cabeça.
o que acontece?
não sei.
está chateado.
não, não… acho… acho que estou. não sei por quê.
eu também. não sei por quê. alio, eu não entendo nada. não entendo nada, estou perdido no meio de uma porção de pensamentos que me perseguem como um pesadelo.
um longo silêncio.
mas não estou arrependido, alio. se tivesse que… fazer novamente…eu teria coragem…
um beijo demorado e, ao perceberem que os ninhos estremeciam, separaram-se e desceram.
alio parou na escada.
quero fazer uma pergunta.
teófilo fitou-o.
sou seu criado, agora?
não. nem agora, nem depois. não faria o que fiz por um criado. é como se eu passasse a viver, a partir de ontem, num mundo onde não existem senhores, mas seres humanos. não existe religião, mas um viver sem culpa. esta tristeza que sinto… deve passar! estou confuso… mas, com certeza, você é um igual.
dois degraus abaixo, teófilo parou.
sabe por que esta tristeza vai passar? a gente não está acostumado a ser livre. tem que se acostumar, nem que seja na base da porrada… vamos.
desceram e contemplaram o mundo pequenino, eles se curvavam e sorriam. sentaram-se. vieram frutas e pão e queijo e leite e doces. comeram e saíram e se perderam por ali e alio contou histórias e teófilo contou caçadas e quando começou a esfriar foi que voltaram à taberna. os aldeões os olhavam curiosos, indagando quem seria aquele príncipe disfarçado, de olhar tão macio como os olhos das virgens. anoiteceram na taberna, cantando e bebendo e soltando gargalhadas com as caretas dos camponeses e todos diziam que senhor algum jamais se dignara beber com os pobres. sentindo que o vinho o deixara excitado, que o canto o deixara fervente, que a gritaria o tonteara, teófilo procurou os olhos do amigo. ele estava entretido, sorria, gargalhava, um cavalo que ganhara a liberdade. ao perceber o olhar do senhor, alio se fez sério. encarou-o. deixou brotar um sorriso. bocejou. aproximou-se.
subiram as escadas, trêmulos e iluminados.
o ritual da noite anterior durou até a madrugada. depois, mergulharam na escuridão de um sono profundo.
teófilo acordou com dor no corpo. alio, já vestido, estava diante dele.
por que está sorrindo?
está chovendo.
hm… se continuar, não poderemos partir. estranho, que ontem tenha parado.
teria dado pra voltar.
quer voltar?
alio apenas balançou a cabeça, negativo. muito sério.
alio, quero te fazer umas perguntas. no princípio, você sempre baixava os olhos. tinha medo de mim?
tinha. mas eu também sempre fui muito tímido.
medo de que?
sempre falam que os senhores…quer dizer…
pode falar!
eu tinha medo que acontecesse o contrário do que aconteceu.
baseado em quê?, esse medo.
é o que sempre acontece. à noite, quando nos reuníamos no pátio, atrás da cozinha, riam e zombavam daqueles que se julgava terem sido…
comidos…
pelos senhores…
quer dizer, que no meu castelo também acontece isto?
sim!
e eu nunca suspeitei de nada. aliás, ouvi isto alguma vez, mas não pensei em procurar saber se era verdade. e com você?, alio.
estou a seu serviço há muito tempo. quando eu era mais novo…
sim…
quer dizer… quando a gente é rapazinho, como luis…
Luis! um oceano o afogou. alio silenciou de repente. teófilo levantou-se, foi até a janela fechada, voltou lentamente. sim! o que acontecia?
a gente costumava brincar um com o outro, atrás dos muros, ficar se roçando, até…
gozar!
é!
agora eu me lembro. já fiz isto, também.
e depois de um silêncio:
algum de meus homens tentou alguma coisa com você?
não! acho que não teriam coragem.
e as mulheres?, alio. como vocês fazem com as mulheres?
nas festas das aldeias, todas elas ficam loucas pra dormir com os que moram no castelo.
você… já… você…
alio baixou os olhos.
nunca?
eu sempre tive medo.
medo? de quê?
quando eu era menino, os grandes diziam que elas cortam a gente e ficam com tudo lá dentro…
teófilo franziu a testa. sorriu. que bobagem! que bobagem sem pé nem cabeça!
eu sempre tive medo, mesmo depois que aprendi que…
chegou a tentar?
uma vez. fomos ao bosque… não queria falar… não queria falar sobre isto…
alio suava.
não conseguiu?
não.
teófilo se afastou. alio se deitou, encolhido.
alio! puxou a cadeira e se sentou junto à cama do outro. enfiou a mão por dentro da camisa de alio. fechou os olhos.
alio, eu não entendo isto que acontece comigo. não quero entender, também. não sei o que será de nós. não sei, quando voltarmos ao castelo, o que acontecerá. não sei de nada. mas queria consolar você. não é difícil com mulher. um roçar de pernas e já fica duro e enfia e pronto. não tem nada de difícil. você entende? não há o que temer.
eu… não…
não é difícil. por que não tentar?
eu não quero… não quero falar…
alio quase chorava.
alio, não sei até onde devo falar com você. preciso confiar em tudo, mas tenho medo. comigo sempre foi tudo tão fácil! nunca fui desses homens que se gabam por ter comido esta ou aquela. achava que era minha fidelidade. minha mulher nunca me deixou embriagado, eu metia, gozava e dormia. ela nunca recusou e nunca pediu. descobri, de repente, que cada vez a procurava menos. sempre pensei que o casamento fosse assim mesmo. as intrigas amorosas nunca me interessaram, queria ficar lendo o tempo todo, alguns textos antigos me levam ao delírio, eu os copio e os recopio, desenho em torno deles frisos detalhados… se for pra ser bem honesto… não gosto da companhia das pessoas… há alguns dias me aconteceu algo estranho… aqueles presos… aqueles enforcados…
os do desfiladeiro?
eles. só seis foram enforcados… vi um deles nu… ele se masturbava… depois, eu vi os soldados currando todos eles, não sei… não sei… na hora eu pensei que estava possuído pelo demônio, logo percebi, porém, que o que aconteceu foi a descoberta de uma situação que sempre tinha existido… não sei se me entende… está difícil de falar, não quero mais falar…
teófilo se levantou, jogou-se na outra cama. alio foi até ele.
não entendo isto. na hora, eu acho bom, nunca me senti tão feliz, mas agora me sobe este choro e esse desespero e eu me pergunto se vale a pena me arrepender.
alio quis falar alguma coisa mas não conseguiu. engoliu em seco e respirava de boca aberta.
alio, você poderia ser normal… se eu não tivesse começado… não sei, você poderia ser normal…
mas eu já era diferente, antes de ter vindo com você. nunca tinha acontecido nada, mas isto não faz nenhuma diferença. eu sei de mim.
as lágrimas tentavam aquietar-se mas algo ameaçava impeli-las para fora.
eu sabia que ia me arrepender…
soluços escaparam violentos e convulsos.
não chore, por favor. não quero me sentir culpado.
foi por isso que eu me entreguei. se eu exigisse de você o papel que fiz…
não chore, por favor. não chore.
alio tentava enxugar o rosto de teófilo.
alio, alio, foi por isso que eu me entreguei. quis ficar com a parte mais difícil. eu… não sei o que dizer…
podemos não fazer mais nada…
não!, não! não quis dizer isto… não quero parar…
alio deitou-se junto e lágrimas estouraram nos olhos dos dois, cada vez mais livres. aconchegaram-se um dentro do outro e permitiram que aquele leve torpor do cansaço que os dominava, os abraçasse por dentro e por fora e assim, quietos e silenciosos, estiveram longo tempo, sem se olhar, apenas se sentindo, enquanto a respiração de ambos, pouco a pouco, voltava ao normal. tranquilos, agora, dormiam o sono de um temporário apaziguamento.
bateram à porta. os dois se olharam.
alio sussurrou, finja que dorme. eu abro.
um momento!
abriu. não, vamos comer aqui. está chovendo e não vamos sair por enquanto. vou deixar a porta aberta.
e sentou-se à mesa, folheando papéis. já voltou o taberneiro com uma bandeja com comida. alio e ele organizaram, no meio dos textos, um espaço para a bandeja e os pratos. teófilo olhou-os por um momento e sentiu prazer, vendo alio simular que lia os papéis…
A mentira sempre é necessária…
o homem se foi, alio fechou a porta. chegou-se novamente junto a teófilo.
quer que eu faça você dormir de novo?
esboçou-se um sorriso luminoso no olhar de teófilo. alio continuou:
vamos ficar aqui até acabar a chuva. depois, você resolve. eu farei tudo como você quiser. sim? tudo… eu também estou disposto…
escapuliu o sorriso luminoso dos lábios de teófilo.
vou me levantar, alio. estou melhor.
conversaram futilidades. teófilo mostrava textos, separava alguns. jogaram dados. comeram a comida fria. conversaram mais. eram dois meninos perdidos. sorriam. se beliscavam. liam poemas. se beijavam. brincavam inquietos. liam mais poemas. num momento qualquer, antes do escurecer total, alio abriu a janela. a chuva continuava, agora, com uma violência inesperada. os dois ficaram a olhá-la.
um dia, alio, eu li, num texto antigo, mais ou menos isto: meu pensamento vai pelos seus caminhos e arrasta, atrás de si, à força, o meu desejo. acho que o texto está errado. devia ser: meu desejo vai pelos seus caminhos e arrasta, atrás de si, à força, o meu pensamento.
tendo ouvido isto, o medo de teófilo aproveitou a janela aberta e precipitou-se para fora, num vôo suicida, sendo imediatamente pulverizado pelo turbilhão, em meio à voragem das águas da chuva.
desceram. conversaram com o taberneiro e sua mulher. só poderemos partir quando cessarem as chuvas. não!, não iremos de carroça, prefiro o meu animal. eles estão bem?, os cavalos? acho que vamos vê-los.
escureceu e muitos aldeões vieram à taberna, apesar da chuva. todos queriam conversar com aqueles senhores que sorriam e pagavam a bebida. teófilo perseguia discretamente o seu amigo que sorria, cantava, conversava. quis prolongar ao máxima aquela liberdade, aquela alegria, aquela preparação à noite. lá ficaram longo tempo, os camponeses começaram a partir. os últimos, os solteiros, blasfemavam, cantavam indecências e alio fazia coro, vermelho, com os olhos ardentes. custou a esfriar o ambiente. ao perceberem que não resistiam um minuto mais ao desejo louco, eles se despediram dos heróis retardatários que já quase dormiam sobre os bancos. entraram no quarto, abraçaram-se, beijaram-se e se deitaram na mesma cama, quietos, mudos, calmos, um só corpo. quando a vela terminou, alio principiou a desabotoar a camisa do outro.
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