apolo e jacinto, 20.
dois cavaleiros brotaram no horizonte. um deles segura as rédeas de um terceiro animal, carregado com bolsas de couro, balançando. dentro das bolsas, pergaminhos e papéis com trechos desconhecidos, trocados com os monges por outros textos, copiados anteriormente por teófilo. cavalgam lentos. o caminho está úmido. a folhagem cresceu de repente. há grande quantidade de brotos novos. a chuva caíra sem cessar durante uma semana, contra a previsão dos mais novos e descrentes, que preferiam banir as superstições de seus mundos, mas garantindo as opiniões dos mais velhos, que acreditavam nos avisos misteriosos da mãe natureza.
ambos blasfemam e cantam. não. no começo, ambos blasfemavam e cantavam. depois, o vermezinho da dor penetrou de mansinho no coração do mais novo. e se apagou, aos poucos, o brilho de seu olhar, o riso fugiu e seu coração foi embrulhado num cobertor negro e triste. não adiantava o cantarolar das águas próximas. não bastava o desvairado canto dos pássaros coloridos que iam e vinham e iam, incansáveis, saltitantes, alegres e despreocupados. não. aquela luz, aquelas cintilações da natureza em absoluta exuberância, aquele azul estupendo, nada daquilo era suficiente. nem mesmo as gargalhadas de teófilo, quando atingia as partes mais obscenas das cantigas que descobrira nos manuscritos recém chegados ao mosteiro, misturadas a sacratíssimos e solenes hinos em honra de todos os santos conhecidos e outros de improvável existência. o olhar de alio era uma flor pendida, sem perfume e sem cor. borboletas não se arriscariam, abelhas não ousariam, nenhuma dessas pequeninas jóias aladas, joaninhas e besouros de faiscante metal, nenhuma, viria contornar sua cabeça pendida para entoar o zumbido da bem-aventurança.
teófilo, num repente, percebeu. freou o animal, procurou aflito uma árvore copada, virou o animal, Vamos ali!, e gritou, vamos ali!
alio desceu, deixou-se tombar mole e, ao se sentir seguro pelos braços do outro, fez cair a cabeça sobre seus ombros.
alio!, alio. o que houve? estava tudo tão bonito e alegre! o que houve?
nada… nada… nada! pesou-me de repente o universo inteiro sobre as costas.
o que está acontecendo?, alio. não queria ter voltado?
eu preciso entender isto. falta pouco, agora. não sei o que é. não faz mal. não vou atrapalhar nada. desculpe.
não!, não!, alio… não quero que me abandone. se eu não tenho você comigo… ele… não sei se me entende… não quero correr… nenhum risco… acho que você entende… eu gosto dele… eu gosto de você… eu amo luis! eu te amo!
não me dói o fato de você amá-lo tanto. acho que vou me acostumar.
não devia ter enfiado você nesta história!
não!, não!, não! alio sobressaltou-se. não sei o que me deu. ou… acho que sei. está confuso, está complicado, não sei como explicar. vou gaguejar, talvez… tentarei… eu… eu era, eu sou seu criado!
você não é mais meu criado! será o professor de todas as crianças!
eu não sei se me entende! é preciso que entenda! eu não quero que as coisas mudem dentro do castelo. é muito complicado pra mim, chegar com estas roupas, sua mulher, hans, todos os outros… eu não vou conseguir. eu quero continuar seu criado.
alio, isto é um absurdo! todos querem escapulir da gente, adquirir liberdade, estas coisas! eu não entendo!
eu queria que você me colocasse isolado, a seu serviço, longe deles. eu podia ficar na biblioteca, copiando…
A biblioteca!
o que foi?
nada! por quê?
você estremeceu e ficou arrepiado. não sei se é uma idéia maluca. queria que me entendesse. eu não quero encontrar os outros criados e me sentir melhor que eles. também não quero estar em pé de igualdade com os senhores.
por quê?, alio.
não gosto de nenhum deles. você entende isto? não gosto de nenhum.
não é difícil entender. sempre mal tratado, sempre ordens, sempre má vontade…
não sou dos que sofrem mais. afinal, eu aprendi a ler. mas… ainda assim…
teófilo silenciou um momento. você os odeia a todos?, alio.
sem exceção.
a mim também!, não é? gostaria que fosse sincero… suava, a voz falhara, um laço se armara em torno de seu pescoço e ele estava prestes a tombar no vazio.
os olhos de alio aveludaram-se mais ainda e seus longos cílios negros estremeceram de emoção.
eu odiava você de um modo estranho… até aquela noite em que… você perguntou se tinha febre… colocou minha mão na sua barriga… tudo desmoronou dentro de mim, naquela hora. minha mão se desligou de minha alma, ela vivia sem mim, ela parecia me dizer não preciso de suas ordens, sei onde anda o prazer que busco…
um longo silêncio.
eu não sei o que sentia antes. sempre tive medo de que nalguma noite você me puxasse pra sua cama e me fizesse algum carinho, dando a entender que estava na hora de começar. sempre acreditei que acabaria por acontecer alguma coisa e… pensava que eu ia ter raiva de você pro resto dos tempos. agora eu entendo direito o que sentia, era mais desejo que medo. e depois de tudo que aconteceu agora, eu comecei a me lembrar de sonhos antigos…
você sonhou comigo?
nunca tive lembrança de nenhum sonho, até estas nossas últimas noites. não entendo isso. é complicado. parece que as lembranças dos sonhos estavam mortas dentro de mim e acordaram depois que descobriram que não precisavam mais se esconder. não sei, não sei… o fato é que me lembrei da quantidade de vezes em que tinha sonhado com…
calou-se, de repente. levantou os olhos, duas lanças pontiagudas, mas cheias de ternura, como se prestes a se dissolverem ao tocar o objetivo.
eu já disse que te amo.
teófilo parou o olhar no vácuo. o laço desaparecera, mas levara o chão junto e ele se sentia flutuando no meio de uma música confusa. afastou-se. sentou-se na raiz de uma grande árvore.
de repente, tudo fica tão serio!, alio. eu cantava e ria, despreocupado, e era como se asas suspendessem meu corpo. agora, como você disse, parece que o peso do mundo acomodou-se em cima da gente.
alio nada falou.
eu preciso de seu amor, alio. meu amigo! nunca vou chamá-lo assim diante dos outros, claro, mas você é o amigo tal como nunca tive antes. preciso de seu amor, pra conseguir amar o menino… dele também, você não gosta?
nunca me preocupou. ele era criança, quando o conheci. acho que me conquistou.
você vai fazer como quiser, quando chegarmos ao castelo.
vou te chamar de senhor. vou me curvar à sua passagem.
que horror!… está bem. vou te dar cópias a fazer e dizer que, quando não tiver nada pra copiar, você estará livre pra dar aulas.
eu prefiro assim. quero me guardar inteiro pra quando…
pra quando?…
pra quando nos amarmos. estranho, que eu não sinta vergonha de falar assim. não quero sentir vergonha do que faço.
silenciou. teófilo ouviu uma cantiga soar dentro do coração. uma velha balada? um canto de ninar? era suave, era límpida, era simples, era uma gota d’água que desliza sobre a folha e se perde na terra, era uma voz cansada e humilde entoando um refrão perdido entre as curvas do rio de alguma aldeia. sentiu-se feliz.
alio. eu também te amo.
montaram e seguiram em silêncio.
não conseguiram pensar em nada. deixaram que o destino puxasse os cabrestos, levasse os animais. de vez em quando, teófilo ouvia a própria voz repetindo dentro dele, como um eco atrasado que soasse no silêncio profundo
alio. eu também te amo.
de vez em quando, alio sentia feridas as cordas de sua alma, quando um bronze cintilava e ele ouvia de novo
alio. eu também te amo.
a frase os acompanhou como essas constantes imagens de sonho. ora distante, ora sonora, ia, se escondia, flutuava, sumia. surgiram as torres, as muralhas, as portas. criados correram, conduziram os animais. entraram.
a mulher chegou, séria. beijou-a na testa.
estou cansado. é possível um banho? trouxe um broche pra você.
hans surgiu à porta. o olhar duro. não estendeu a mão.
correu tudo bem?
com exceção da chuva…
ele olhou o criado de alto a baixo, voltou o rosto para teófilo, fitou-o severo e se foi.
o que deu nele? está pálido!
está assim desde que perdeu o neto.
o laço.
o quê?
luis morreu antes de ontem. foi enterrado no meio da tempestade.
silêncio!, coração!
a mulher rodou diante dele, alio gemeu aflito. teófilo subiu bêbado a escadaria, a porta estava fechada, arremessou-se contra ela, quebrando-a, atirou-se no leito e um choro de agonia e paixão o afogou, como se afoga no tanque um filhotinho de gato.
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