apolo e jacinto, 21.
alio estava desconcertado. por que hans o olhara daquele modo? a mulher permaneceu silenciosa. queria perguntar a ela algo que se relacionasse com a morte do menino, não tinha coragem. apanhou as bolsas de couro e ia subindo.
foi a ferida do punhal?
sim. inchou a mão, deu febre muito alta. delirou toda a noite e morreu dois dias atrás.
vou lá em cima com ele. ele pretendia ensinar estes textos a luis. por isso, levou o susto.
subiu lentamente. como enfrentá-lo? um leão machucado? enfurecido? um pássaro agonizando em silêncio? seu próprio coração estava pesado. não sabia o que ia acontecer no castelo, estando luis por perto. ele sabia que teófilo não se afastaria do menino, mas acreditava também que ele o procuraria. seria uma fonte para matar sedes momentâneas, nunca uma cascata para cantarolar interminavelmente o mesmo poema. sonoro, espumante, perigoso. e agora? Sem luis, eu reino sozinho, mas sei que o trono está destruído.
alio não queria acreditar que seu coração dançava a dança sem ritmo, de uma alegria camuflada. seria covardia declarar a alegria, expô-la. era dessas alegrias que florescem nas sombras, rodeada por espíritos malévolos e atentos. Luis poderia ter viajado!, em vez de morrer! Eu preferiria. Bastava ter viajado!
a ausência abria a porta de um cômodo vazio. A morte de luis me encarcerou, não sei o que será disto tudo.
a porta da biblioteca estava caída em dois pedaços. teófilo estava à janela. voltou-se silencioso, o rosto branco. um defunto quase apodrecendo, que se levanta para o juízo final, sem trombetas nem aleluias, e, já verde, já de pedra, arregala os olhos vazios e mortos.
eu sei que minha pessoa vai atrapalhar mais que ajudar… há algo que eu possa fazer?
o morto vivo caminhou um passo, vacilante, olhou-o no fundo dos olhos, mas nenhuma chama queimou nas duas crateras, nenhum archote faiscou nas duas cavernas, nenhuma lava ondeou nos dois vulcões extintos.
eu sinto muito… meu amigo… acho que você não pode se deixar levar. a voz saía calma, consoladora. não encontrava eco diante daquela montanha desfigurada.
alio se sentou. teófilo gemeu, gaguejou: o que faz aqui? quem foi que te chamou?
alio se assustou. quis sair correndo. mas teve pena do outro. era um monte de carnes amontoadas em desordem, embrulhadas por roupas de um outro mundo.
eu quero te ajudar, só isso.
e o segurou nos ombros, cheio de espanto. teófilo soltou o corpo, por um momento.
alio!
o olhar pareceu reviver, de um relance. alio, alio… é verdade o que disseram?
ele teve febre e morreu delirando.
sim… sim… eu não sei o que devo chorar! eu não sei o que vai ser de mim. estarei arrependido… pelo que fiz? ou pelo que não fiz?… era tão menino!… esperei tanto dele!…
não conseguiu mais falar.
quer que eu faça alguma coisa?
mande consertar a porta. não quero ver ninguém.
eu não queria interferir em nada nem dar opinião. mas penso que, agindo assim, vai chamar a atenção deles.
puta que pariu! puta que pariu! estou no castelo, tinha esquecido esta merda toda!
o pano estava ali, era só limpar o rosto. a escada estava lá, era descê-la. a mulher, hans, todos à espera, enfrentá-los. faltava ânimo, força, coragem. Eu não terei coragem! eu não terei coragem!
coragem! eles não devem desconfiar.
desconfiar? de mim ou de você?
alio baixou os olhos, cheio de vergonha.
desculpe, alio. desculpe. não há de ser você que vai pagar pelo que acontece. desculpe.
limpou os olhos e desceu.
alio começou a arrumar as coisas. havia poeira, desordem, esquecimento. queria que o dia se prolongasse, não desejava defrontar-se com a próxima noite. não sabia se descia ou se continuava ali, à espera de um chamado. arrumou a cama e, ao estendê-la, lembrou-se de luis chorando e se levantando com a túnica molhada. sentiu um arrepio. Poderia ter sido ele, que viajasse, e eu teria ficado aqui e eu morreria no lugar dele. Então, nada do que está acontecendo, ia acontecer.
ele tinha a impressão de que, se demorasse, o dia demoraria. não queria ver a noite, não queria o escuro. Quando vier o escuro, ele estará lá em baixo, no quarto da mulher, e eu dormirei aqui sozinho…
entrou um criado.
ele disse pra eu e você levarmos tudo pro quarto que eu limpei.
transportar tudo tudo?
a cama, a mesa e os livros que trouxeram. as estantes ficam.
em silêncio, alio começou a arrumar as bolsas.
como foi a viagem?
igual a todas as outras. por que esse riso?
você ganhou roupa nova.
e daí?
isto nunca é a troco de nada…
roubaram a minha na taberna. estava secando e sumiu. ele me deu estas.
e, de noite, oh, aqui na bundinha.
veado! pensa que sou como você! e agarrou-o pela gola.
calma!, filho da puta! então, por que essa roupa nova?
que é que tem essa porra? quer trocar?
mas não foi presente?
veado! presente do teu macho! me dá a tua e fica com esta. tá pensando que eu não sei que você dorme na cela dos guardas?
filho da puta!
ambos se despiram. trocaram as vestes. alio foi rápido, de medo de exibir dentadas e arranhões. depois, respirou aliviado.
vamos levar a cama.
desceram lentos, esbarrando aqui e ali.
é esse o quarto.
é menor. Por que será que quis vir pra cá? vai buscar as bolsas, enquanto eu arrumo os lençóis.
ele saiu. alio olhou. um cômodo pequeno, como as celas dos mosteiros. uma pequena janela. aproximou-se. dava para uma vasta paisagem e se via, na subida da colina, o pequeno cemitério. um vulto se plantara diante de uma cova ainda com flores. alio estremeceu. o vulto voltou o rosto para o castelo. olharam-se muito tempo. ouvindo ruídos, alio virou-se e pôs-se a alisar o lençol. subiram e desceram até que tudo ficou ajeitado.
procurou teófilo para avisar que estava tudo em ordem. encontrou-o na entrada do pátio.
já mudei o quarto.
que roupa é esta?
troquei com um companheiro.
vou falar com hans. depois, irei pra lá.
que devo fazer?
se precisar de você, eu aviso.
onde fico?
alio. eu gostaria de ficar sozinho. não sei se entende isso…
posso ficar na biblioteca?
A biblioteca!
está bem. desculpe! se precisar, eu mando chamar.
alio ia subir.
alio.
voltou-se: sim!
meu amigo… meu amigo… teófilo abraçou-o com força mas separou-se de repente, ao perceber que ia começar a chorar.
alio foi, voltou, levou seu colchão, arrumou-o num canto. depois, saiu à procura do velho criado que sabia medir madeira e consertar móveis.
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