apolo e jacinto, 7

apolo e jacinto, 7.

assim que desceu, teófilo visitou a prisão.
Conheço este guarda. Ah!, é o lança, disfarçando o olhar para um punhado estufado de carnes comprimidas. hoje à noite, quem estará aqui no seu lugar?
nós mesmos, senhor. na primeira hora trocam os sentinelas.
virá aqui um padre. não lhe façam perguntas. ele lhes apresentará este anel, veja bem meu brasão, você o conhece, com certeza, e entrará para confessar os prisioneiros. talvez venha também o seu ajudante. você deverá seguí-los até as celas.
  e subiu rápido. luis o esperava na biblioteca.
conseguiu?
está aqui.
hm!, hm! é bem o meu tamanho. o capuz cobrirá minha cara. você quer ir?
luis não respondeu. depois de algum tempo, desceu. já estava escuro quando ele voltou, com frutos e queijo. teófilo comeu alguma coisa, postou-se junto à janela e esperou um pouco.
você quer ir?, repetiu.
não sei.
tenha coragem; segurando-o pelos ombros. nada nos acontecerá. Suas carnes são macias, ainda. Que sorriso estranho! Fugiu-lhe o brilho daquele olhar. vamos?
vamos. sou seu ajudante? com voz medrosa e escondida.
ficará calado todo o tempo. eu apenas quero conhecê-los melhor.
um medo muito grande sobrevoava leve em torno da cabeça de luis, enquanto descia atrás de teófilo. não saberia precisá-lo, não conseguia defini-lo. seguia, admirando o andar enorme e rápido do senhor, mal conseguia acompanhá-lo. pensava em si mesmo numa espécie de aventura extraordinária num castelo desconhecido, escadarias nunca antes percorridas, por proibidas, e teófilo era seu pai mas se maravilhava ao lembrar que teófilo não era, não era seu pai. nesses momentos é que as asas do medo batiam mais forte e ele se lembrava daquele olhar confuso e queria voltar e chorar durante muito tempo mas a atração era irresistível e ele queria que aquele sonho estranho que tanto o assustara fosse verdade: teófilo o levaria a passear no cavalo e o abraçaria por trás, mas quando, de repente, o sonho se apagou, Só ficou na minha cabeça aquele horror e aquela sensação esquisita e só me lembro de que durante todo o dia estive triste sem saber por quê e quase chorava por um nada e muito tempo demorou pra que aquela estranha coisa que eu sentia me abandonasse aos pouquinhos.
teófilo estacou e levantou a mão. luis segurou a tocha mais para trás, para ver melhor. teófilo, abaixado, sorriu e segurou-lhe nos ombros.
não tenha medo. vou descer o capuz. você está frio.
é. acho que vou voltar.
não! sem você eu não tenho coragem. quer dizer… não precisa ficar junto de mim. fique longe deles. está bem assim?
um sim mal acenado com a cabeça, boca comprimida e olhar baixo. luis mal sentiu o puxão e já era esmagado pelos braços de teófilo, que o abraçava. a tocha caiu e se apagou.
não tenha medo, luis.
um coração pulava forte junto à sua cabeça, ele balbuciou baixinho
não terei medo. não terei medo, não.
e uma voz subiu das cavernas de teófilo, um vulcão impedido, um grito abafado, uma explosão amordaçada, uma voz plena, surda, velada, trêmula e quase chorosa
não tenha medo de nada!
e um longo silêncio.
sim?!
sim.
vamos!, então.
teófilo pegou a tocha e foi em direção à porta. aproximou-se do guarda, acendeu a tocha junto à outra que se inclinava na parede, entregou-a a luis. apresentou o anel. a porta rangeu, um olhar mediu luis de alto a baixo, cínico e zombador, e fez-se silêncio em torno deles. teófilo avançou.
está aí um padre. urubu filho duma puta. é sinal de morte. quer confessar a gente, na certa.
teófilo continuou o caminho e entrou noutra cela.
Acho que vou ficar aqui. Eles fedem e têm um olhar horrível.
luis parou no umbral e ficou a olhar os presos.
veio confessar a gente?, belezoca! é o ajudantezinho do padre. vem cá, mocinha, que o anjo da guarda tem um presente pra você. cala a boca!, filho da puta!, não respeita mais ninguém? olha só a carinha dele! filho da puta! filho da puta!, respeita!
luis penetrou aflito na outra cela. ouviu os risos dos presos que o tinham insultado. teófilo aproximou-se. pararam por um momento diante do ?ltimo preso, deitado, todo o corpo cheio de capim seco, mão dentro das calças, dormindo profundamente.
o que houve lá?
estão rindo, estão gritando…
vamos pedir que alguns guardas fiquem conosco. você vai lá?
luis recuou e olhou apavorado para a porta dos risos e palavrões.
está bem. eu irei. não saia daqui. entrou na outra cela, que silenciou por completo.
Este é o que estava comendo o outro. Tomara que não acorde até os guardas chegarem. Tenho medo.
luis suava frio. sentiu as pernas bambas, encostou-se na parede. o prisioneiro mexeu-se, bateu na mosca que passeava em sua testa, abriu os olhos. levantou-se num salto e fuzilou:
o que faz aqui?
sou… o… aju… dante do padre.
ele aproximou-se com um olhar de fera e seus dentes brilharam na obscuridade. aproximou-se violento e impudico.
hm!, o ajudante do padre. imbecilzinho! quer dizer que a forca sai afinal. segurando-o com força no braço.
me larga. está me machucando.
o padre pode, né?, veadinho. segura aqui. anda! e sua mão brutal levou a mãozinha medrosa pra dentro da calça e era um calor estranho e a maciez de pelos densos e os olhos se encheram de lágrimas e o respirar sobressaltou-se e sentiu uma carne enorme pegando fogo e quando ouviu sussurrada no ouvido a ordem decidida e pausada:
aperta, aperta, veadinho!,
o chão rodou, a luz faltou, o olhar faiscou um raio que estalou dentro da cabeça, luis apertou os dedos com força e sentiu que mergulhava num vazio.
teófilo chegou com alguns guardas.
que houve?
acho que desmaiou de medo. o que faz um pirralho destes aqui dentro?
não é da sua conta. soldado, leva o menino. luis, luis… que estranho, nunca aconteceu isto antes. luis… preciso soltar sua cintura, está difícil a respiração. vá pra outra cela!
não recebo ordens de padre!
teófilo levantou-se furioso. ah!, não recebe ordens! pois fica sabendo que vim confessá-lo porque amanhã a forca te espera.
a forca! filhos da puta! filhos da puta! joga água nesse veadinho que ele acorda.
o quê?
esse puto aí. bastardo. com essa cara não engana ninguém.
vou levá-lo eu mesmo. virei daqui a pouco te confessar. prepara o teu espírito. voltarei depois.
a forca! porra! porra! filhos duma refinada e desgraçada puta! não precisa voltar aqui não!, seu comedor de pirralho. leva a menina pro alto, pro seu banquete. filhos da puta!, ah, se eu pudesse esquartejar o dono dessa porra!, dessa porra!, dessa porra!, esmurrando o ar e coiceando desengonçado. voltou-se em direção a teófilo mas os guardas fizeram um círculo em torno dele e de luis, ainda no chão. foi então que ele reparou que todos os presos tinham penetrado na cela, silenciosos e com um brilho imenso no olhar. os sentinelas adiantaram-se com passos firmes, enfrentando o prisioneiro rebelde com a lança na horizontal, ele recuou um pouco, fera acuada, leão de ira contida por um dique, o que fazia brilhar mais terrivelmente o seu olhar avermelhado.
teófilo curvou-se, pegou luis no colo. os guardas abriram caminho. teófilo continuou em direção à porta principal. ouvia os passos do lança, que o seguia de perto. saiu da prisão, o lança fechou a porta e lá ficou. teófilo continuou pela escadaria sem fim, agora sozinho com luis nos braços.
subia lentamente, com um braseiro nas mãos e o olhar ardendo, querendo uma lágrima rebentar e fazer explodir uma avalanche de soluços. Essa escada é longa. luis ora é leve como a névoa da manhã, ora é pesado como a sombra do enforcado. as carnes de luis tremiam ligeiramente e teófilo o estreitou contra o peito mas arrependeu-se do gesto e encostou-se na parede para recobrar ânimo e fôlego. as pálpebras do adolescente desciam suave, os lábios entreabertos mostravam o brilho escondido de dentes secos. tão junto, Tão junto de mim e me bastaria um leve curvar de cabeça e ninguém ficaria sabendo, nem você, e, no entanto, eu não tenho coragem. Só não consigo impedir esse fervilhar agitado de meu sangue que parece passar por dentro do seu corpinho e voltar a mim com maior loucura.
alio aproximou-se, estendendo as mãos
deixa que eu levo. suba comigo e abra a biblioteca. o criado correu à frente e num último lance da escada teófilo entendeu que nunca mais o teria tão junto de si porque não teria coragem para mais nada a não ser apertá-lo mais nesse abraço camuflado, para sentir no peito o bater do coraçãozinho de ave machucada, Ele é quente e branco, o respirar está lento, parece que tudo isto faz cegar a minha visão!…
depositou-o no leito já ajeitado. alio abriu o resto do manto e luis flutuou nu no espaço, róseo e tranquilo como um deus adormecido.
é bom que ele sinta frio, pra acordar.
Não sei se tenho direito a esta nudez, ele é belo demais pra que eu o cubra. você não acha melhor cobri-lo? não, senhor, a vó diz que o frio ajuda a despertar, vou buscar uma esponja e água; saindo rápido. Não, não tenho o direito de contemplar esta nudez descansada, este pequenino bosque negro, estes braços pendidos como os de um santo morto. luis, luis, E eu a falar sozinho…
não queria olhar, afastou-se, mas seus olhos como que estavam pregados a cravo naquela imagem silenciosa e iluminada.
teófilo sacudiu a cabeça, respirou aflito, querendo abolir os demoniozinhos que voejavam em torno. Luis, luis! Eu vou ficar louco! olhou a porta, Não, não tem ninguém, não daria tempo. curvou-se e beijou o menino no ventre e apenas sentiu a carne fria e úmida e um ligeiro tremor em todo o corpo do deus adormecido e cavalos velozes abriram caminho dentro de suas veias e as sereias cantando loucas perturbaram sua visão com espelhos enfeitiçados de mil luzes e a bigorna do coração subiu à cabeça e o demônio gargalhava e já não era um demônio mas um anjo de fogo de olhar penetrante que o fazia cambalear e nada no mundo era tão belo como este menino, Este pássaro quase adulto que dorme sem sonhos e tumultua a órbita insensata do meu mundo e só o olhar desse menino é capaz de me curar dessa loucura mas ele dorme e perdeu-se a luz desses olhos…
… que o olhavam esquecidos, aguados, cálidos, como os olhos de um fantasma que acabasse de acordar de um sono de mil anos. de repente, toda uma convulsão e luis, cobrindo-se com o cobertor, virou-se de bruços
nãããããããão!
o silêncio aprisionou os corcéis enlouquecidos e paralisou as sereias com suas luzes mágicas. só o martelo continuava dentro da cabeça de teófilo.
luis! sinto muito! foi o criado que o despiu pra que acordasse. está tudo bem?
teófilo se sentiu pisoteado por uma manada de imensos animais. mas aos poucos estes se afastaram, diminuindo os saltos do sangue na testa, secando o suor, retardando os pulos do coração. o vazio doloroso só foi quebrado pela porta e teófilo se levantou quando entraram hans e o criado. luis soluçava baixinho, de bruços. teófilo recuou para deixá-los se aproximar da cama.
o que aconteceu? por que esta roupa?
quis visitar a prisão sem ser reconhecido e ele foi comigo. lá embaixo, parece que teve medo e desmaiou. está acabando de acordar. foi culpa minha.
hans quis virar o menino. ele se recusou. pretendia tranquilizá-lo.
luis, venha comigo. não é preciso chorar só por isso.
silêncio demorado.
venha.
acho que poderá deixá-lo aqui. não usarei a biblioteca mais, por hoje. você ficará cuidando dele, indicando a hans o criado que se curvou em silêncio. talvez seja melhor sairmos e deixar que se refaça sozinho.
saíram devagar. teófilo queria deixar o castelo, a praça, galopar no dorso de furacão
teófilo, temos coisas a resolver.
mas teve que acompanhar hans para decisões sobre assuntos pendentes.
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