apolo e jacinto, 9.
teófilo acordou num sobressalto e se viu sozinho. num repente lembrou-se da noite e sentiu uma luz forte corroer suas entranhas. a luz foi virando negrura, o brilho começou a machucar e algo como o som distante de um sino pesado principiou a martelar seu dia. a lembrança da doçura extrema começou a magoá-lo e ele queria que ela saísse do seu corpo, porque era em seu corpo que estavam as marcas daquele prazer indistinto mas imenso. sentia línguas de fogo correndo sobre o peito, sufocava sob o aperto de braços de ferro que o esmagavam. delirava com um peso enorme que o imobilizava. mais que tudo, porém, estremecia ao lembrar daquele abraço sem fim que tinha deixado um rastro jamais perdido sobre sua testa, seus olhos, sua face, seu pescoço, seu ombro, e que se tinha instalado dentro de sua própria alma. mas agora já não bastava reviver a explosão de seu prazer, pois que não mais lhe entrava por dentro aquela bebida cheia de delícias; ao contrário, imaginando aquele abraço eterno, que provocara nele a explosão de um gozo nunca antes imaginado, subia-lhe ao coração uma amargura muito grande e seu olhar pendia e lágrimas se aninhavam furiosas atrás dos olhos, espreitando o momento de maior fraqueza para se precipitarem como selvagens em fúria, saltando para fora e armando a emboscada. depois, sim, seria aquela convulsão desordenada e aquele tremor demorado e aquele medo, aquela angústia, aquele pavor.
Não, eu não quero chorar agora, eu não quero chorar…
comprimindo os lábios com força, retendo todos os músculos da face, transformando-se numa estátua de pedra, imóvel e impassível.
Não era isto, afinal, o que eu queria? não era tão doce sentir junto de mim aquele corpinho vibrando?, estremecendo, convulso, ágil como peixe escorregadio, inquieto como a calda do réptil, quente como o animalzinho da infância! Não foi isto que desejei todo o tempo?, aquele abraço interminável e aquelas mãozinhas procurando aflitas achar no meu corpo a chave das sete felicidades!
descendo lento as escadas.
mas o sino de finados tocou lá longe, como o sino de uma aldeia perdida. as asas negras do anjo triste sombrearam de novo as veredas que tentava percorrer.
Onde andaria meu amiguinho? Que sofrimentos estaria sofrendo? Ou estaria feliz como um pássaro embriagado? Se ele estiver sofrendo, eu me perguntarei mil vezes que direito tinha de tê-lo levado ao templo desse estranho deus, que proporciona a maior alegria e envolve depois o coração num manto de morte. Parece que estou caminhando num grande túmulo. O que faz aqui?, luis. Você está zangado comigo? Apenas este baixar de olhos mas eu verei alguma luz estranha lá dentro, creio. Luis, queria conversar com você. Temos um segredo de ouro, temos um segredo amargo e brilhante. Não quero te fazer mal. Não sei o que você pensa de mim. Não, não devo falar assim com ele. Poderia dizer que não farei algo que ele tema, acho que tem medo e eu não quero porque ele é pequeno e se alguém tiver que ceder com certeza vai ser eu porque ele pode sofrer muito mais e eu não quero exigir nada dele meu caminho já está pronto o dele apenas se manifesta e eu quero que ele seja muito feliz e ele não é tão pequeno assim mas acho que não vai me…
teófilo estacou horrorizado. não, não era esse o caminho que pretendia para seus pensamentos. Que estranho, tem hora que penso coisas bonitas como num conto e de repente eu perco o controle e sobem estas palavras que eu não quero falar nem mesmo pensar… Vou procurar hans… A conversa vai me distrair, estou confuso, carregado, perdido, não entendo nada. Quando penso no que vou falar, as palavras sobem devagarinho e perfeitas mas diante dele eu não encontro nada pra dizer…
chegou na sala onde hans costumava ficar pela manhã. bateu. luis abriu a porta.
vô, vou sair. olha o punhal. limpei-o bem e poli a lâmina. estou ficando um craque!, apertando-lhe o braço, com um brilho rápido no olhar; depois, desapareceu correndo.
o que deu nele?
não sei. estava caladão, chamei-o pra conversar e ele não falou nada. disse que precisarei dele pra me ajudar porque você viaja pro mosteiro, ele disse que gostaria mesmo é de acompanhá-lo.
Uma geleira explode dentro do meu coração e eu tenho que simular tranquilidade.
poderia fazer a troca. levo luis e não o criado. ele já monta bem?
monta. mas tenho medo de que o atrapalhe mais do que ajude. talvez, se fossem os dois, acho que um criado é pouco.
tem razão, hans. Volte e traga a bolsa com estiletes que esqueci na biblioteca e seguiremos eu e luis e o criado se perderá de nós. é uma boa idéia.
tomara que ele não o incomode. está muito esquisito, esse guri. nem sei mais se ainda é guri, já reparou como começa a crescer o bigode?
não! Apenas o denso bosque negro que cresceu suave em torno do pássaro de mármore. não reparei.
está muito esquisito. estava calado e de repente se põe a rir e a jogar o punhal pro alto, segurando-o na queda. não adiantou falar que poderia se ferir. lembra meu filho, está ficando tal e qual meu filho. deus põe pai e filho no mesmo caminho, um para continuar o outro. o meu caminho já vai terminando e eu devia passar o cetro a rudolf, mas ele já não existe mais e ele não passou a vez a luis que trilha seu caminho sozinho. há um pequeno momento em que os caminhos são os mesmos e como que pai e filho empurram a mesma vida pra esse final desconhecido; mas avô e neto, parece que nunca passarão juntos a mesma paisagem. sou um velho, ele um menino, um rapazinho… jamais conseguirei alcançá-lo. não consigo interpretar seus silêncios e suas tagarelices. enfim, espero que não o incomode.
hans pareceu envergonhar-se daquele fluxo repentino de divagações. foi até a janela, olhou o mar, perdeu-se um pouco no meio das ondas. lá na praia via-se um ponto apagado, lá na praia distante. deitado na areia ainda úmida, um vulto contemplava o céu.
Visitas: 203