Desistória – capítulo 8.
Ai, ai, grande cidade, que se vestia de linho, púrpura e escarlate e se ornava de ouro, pedras preciosas e pérolas, porque numa hora ficou devastada tanta riqueza.
8. a lua nova.
ele está dormindo. sonha que eu estou dormindo. não sabe que tenho nas mãos a sua morte. ele confia em mim. ele me ama. tem a perna direita descansada sobre minhas pernas. tem a mão direita segurando o meu seio. está respirando no meu pescoço. não sabe que tenho nas mãos o pó que vai silenciá-lo. sinto com o braço, o palpitar tranqüilo e confiado do seu coração. e penso novamente no anel que tenho no dedo, de onde tirarei o pó que vai adormecê-lo do outro sono. um sono em que ele não sentirá meu seio nem minhas coxas nem o cheiro de meu sexo. um sono em que não sonhará que me ama. ele me ama. desesperadamente. como todos os outros. com o amor da entrega total. eu o calarei e reinarei sozinha nesse imenso império. foi para isto que nasci.
não tenho pai e nem mãe, cantava aquela velha canção.
não tenho pai e nem mãe,
sou filha daquela árvore,
neta daquela montanha…
quem cuidava de mim era a gorda. mulher do chefe. ele, magro e esquelético, ela, uma elefanta prenhe na barriga, nos braços, nas coxas. ela me dava comida e banho e ele me dava as ordens. tinham um filho imenso, branco e louro, terrivelmente branco e desesperadamente louro. ele sempre me levantava, passava o bigode duro na minha barriga, me jogava para o alto, me pegava na queda, de novo o bigode e um beijo estalado nos pés.
acordávamos todos muito tarde. não era muito fácil aquela vida de acampamento, um dia aqui, um dia ali; mas era bem divertida. acordávamos tarde porque o circo ia até de madrugada. eu já podia ajudar, diziam. então, logo depois de comer, o chefe me mandava ajudar o filho louro. era ele quem tinha de remendar as roupas dos monstros ou levar-lhes comida ou lavar-lhes as gaiolas. eu ficava em volta e dava conta das pequenas tarefas: apanhar a agulha que ficou lá, pegar a vassoura, trazer o martelo… a tarde, depois da segunda refeição, era para organizar o programa noturno. ajudar a dispor as celas vazias, verificar se os nomes estavam pendurados nas gaiolas, estender a grande tela para que a chuva não nos apanhasse de surpresa.
à noite eu não trabalhava. ficava grudadinha ao manto do filho, que apresentava, uma a uma, as notáveis figuras monstruosas, falando de seus crimes e de seus castigos. acendíamos as tochas e o povo ia se reunindo, cheio de risos e gritos. formado o pequeno grupo, ele começava:
aqui, senhores, apreciem o meio homem! apontando o meio homem, que não tinha pernas nem sexo; só o tronco, a cabeça e os braços. eis, senhores, que esta criatura era um rico cidadão da grande capital! e veio um dia em que ele não imolou o cão para o sacrifício ao deus da vitória. e no dia seguinte metade de seu corpo desapareceu, foram-se as pernas e aquilo que os homens têm de mais precioso e mais agrada às mulheres! todos riam e batiam palmas e se olhavam cheios de um calor alegre.
e íamos para a gaiola do homem de asas. o homem de asas! meus senhores! é esta horrenda criatura com as mãos agarradas nos ombros. contou-me ele mesmo, cheio de tormento, que num dia sagrado, na sua aldeia, ousou tocar a água da concepção, zombando da deusa dos casamentos, a água com que as mulheres estéreis molham os seios e o ventre, à espera de filhos gerados por auxílio dos deuses. e eis que no dia seguinte, desapareceram-lhe os braços, ficando suas mãos pregadas nos ombros, como asas sem penas. todos gritavam e vaiavam e batiam palmas.
e assim íamos, do homem de asas à mulher de três seios e ao velho sem costelas e ao menor homem do mundo e ao homem que comia pelo pescoço, com seu tubinho. o público admirava, gritava, se divertia. algumas figuras não eram, todavia, autênticas. eu sabia mas não podia contar a ninguém. assim, por exemplo, a mulher-homem. aparecera no acampamento uma miserável mulher, a quem tinham, numa invasão de aldeia, cortado um dos seios. o chefe mandou pintar pelos no lado sem seio de seu corpo, colou-lhe uma meia barba e disfarçaram um pedaço de pênis e um só testículo entre as pernas. no momento de sua apresentação, os que seguravam as tochas, levavam-nas para trás, iluminando assim somente o contorno daquela fantástica aparição.
o filho se exaltava muito ao apresentar todos aqueles seres. percebi um dia que ele trocava os milagres, conforme tivesse bebido mais ou menos. também, as pessoas não percebiam. eles falavam línguas diferentes, tantas eram aquelas línguas! eles apenas viam e se divertiam.
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