Desistória – capítulo 8.

Desistória – capítulo 8.

 

 

            Ai, ai, grande cidade, que se vestia de linho, púrpura e escarlate e se ornava de ouro, pedras preciosas e pérolas, porque numa hora ficou devastada tanta riqueza.

 

            8. a lua nova.

 

            ele está dormindo. sonha que eu estou dormindo. não sabe que tenho nas mãos a sua morte. ele confia em mim. ele me ama. tem a perna direita descansada sobre minhas pernas. tem a mão direita segurando o meu seio. está respirando no meu pescoço. não sabe que tenho nas mãos o pó que vai silenciá-lo. sinto com o braço, o palpitar tranqüilo e confiado do seu coração. e penso novamente no anel que tenho no dedo, de onde tirarei o pó que vai adormecê-lo do outro sono. um sono em que ele não sentirá meu seio nem minhas coxas nem o cheiro de meu sexo. um sono em que não sonhará que me ama. ele me ama. desesperadamente. como todos os outros. com o amor da entrega total. eu o calarei e reinarei sozinha nesse imenso império. foi para isto que nasci.

            não tenho pai e nem mãe, cantava aquela velha canção.

             não tenho pai e nem mãe,

            sou filha daquela árvore,

            neta daquela montanha

             quem cuidava de mim era a gorda. mulher do chefe. ele, magro e esquelético, ela, uma elefanta prenhe na barriga, nos braços, nas coxas. ela me dava comida e banho e ele me dava as ordens. tinham um filho imenso, branco e louro, terrivelmente branco e desesperadamente louro. ele sempre me levantava, passava o bigode duro na minha barriga, me jogava para o alto, me pegava na queda, de novo o bigode e um beijo estalado nos pés.

            acordávamos todos muito tarde. não era muito fácil aquela vida de acampamento, um dia aqui, um dia ali; mas era bem divertida. acordávamos tarde porque o circo ia até de madrugada. eu já podia ajudar, diziam. então, logo depois de comer, o chefe me mandava ajudar o filho louro. era ele quem tinha de remendar as roupas dos monstros ou levar-lhes comida ou lavar-lhes as gaiolas. eu ficava em volta e dava conta das pequenas tarefas: apanhar a agulha que ficou lá, pegar a vassoura, trazer o martelo a tarde, depois da segunda refeição, era para organizar o programa noturno. ajudar a dispor as celas vazias, verificar se os nomes estavam pendurados nas gaiolas, estender a grande tela para que a chuva não nos apanhasse de surpresa.

            à noite eu não trabalhava. ficava grudadinha ao manto do filho, que apresentava, uma a uma, as notáveis figuras monstruosas, falando de seus crimes e de seus castigos. acendíamos as tochas e o povo ia se reunindo, cheio de risos e gritos. formado o pequeno grupo, ele começava:

            aqui, senhores, apreciem o meio homem! apontando o meio homem, que não tinha pernas nem sexo; só o tronco, a cabeça e os braços. eis, senhores, que esta criatura era um rico cidadão da grande capital! e veio um dia em que ele não imolou o cão para o sacrifício ao deus da vitória. e no dia seguinte metade de seu corpo desapareceu, foram-se as pernas e aquilo que os homens têm de mais precioso e mais agrada às mulheres! todos riam e batiam palmas e se olhavam cheios de um calor alegre.

            e íamos para a gaiola do homem de asas. o homem de asas! meus senhores! é esta horrenda criatura com as mãos agarradas nos ombros. contou-me ele mesmo, cheio de tormento, que num dia sagrado, na sua aldeia, ousou tocar a água da concepção, zombando da deusa dos casamentos, a água com que as mulheres estéreis molham os seios e o ventre, à espera de filhos gerados por auxílio dos deuses. e eis que no dia seguinte, desapareceram-lhe os braços, ficando suas mãos pregadas nos ombros, como asas sem penas. todos gritavam e vaiavam e batiam palmas.

            e assim íamos, do homem de asas à mulher de três seios e ao velho sem costelas e ao menor homem do mundo e ao homem que comia pelo pescoço, com seu tubinho. o público admirava, gritava, se divertia. algumas figuras não eram, todavia, autênticas. eu sabia mas não podia contar a ninguém. assim, por exemplo, a mulher-homem. aparecera no acampamento uma miserável mulher, a quem tinham, numa invasão de aldeia, cortado um dos seios. o chefe mandou pintar pelos no lado sem seio de seu corpo, colou-lhe uma meia barba e disfarçaram um pedaço de pênis e um só testículo entre as pernas. no momento de sua apresentação, os que seguravam as tochas, levavam-nas para trás, iluminando assim somente o contorno daquela fantástica aparição.

            o filho se exaltava muito ao apresentar todos aqueles seres. percebi um dia que ele trocava os milagres, conforme tivesse bebido mais ou menos. também, as pessoas não percebiam. eles falavam línguas diferentes, tantas eram aquelas línguas! eles apenas viam e se divertiam.

             mas quando acampávamos próximos aos acampamentos das guarnições avançadas, então era uma festa. centenas de soldados da grande capital, a nossa mesma linguagem, uma festa. como o nosso toldo não fosse grande, precisávamos ficar junto aos fortes durante muito tempo, o que evitava o constante mudar de lugares. todas as noites o circo se enchia de soldados.           houve uma estranha noite, me lembro, em que o comandante reservou o espetáculo para os condenados. eram escravos de diferentes povos, todos condenados a morrer queimados na cruz, porque tentaram fugir da mina de cobre. o circo ficou superlotado de homens diferentes, uns altos, uns gordos, uns claros, uns de cabelos crespos. todos acorrentados, seguiam o roteiro do filho louro, que exagerava o castigo dos deuses que transformaram criaturas comuns naqueles seres de pesadelo. eu olhava o comandante. o comandante olhava os escravos condenados. o comandante tinha os olhos fixos, parados, parecia que tentava decifrar algum mistério. eu olhava já os escravos. eles riam, desdentados, eles se moviam aos poucos, eles trocavam olhares entre si, eles levantavam as mãos acorrentadas, eles se libertavam da presença do dia seguinte e viviam seus momentos. por um instante pareciam esquecidos do que os aguardava. pairava sobre todos a ave do agora, protegendo-os com suas grandes asas. eles gritaram, gargalharam, se disseram coisas incompreensíveis. terminada a última figura, baixaram a cabeça e foram conduzidos em fila para fora do recinto. mais tristes do que quando entraram. para eles, não sei por quê, não foi reservada a atração final.

            a atração final me era vedada. esgotada a série dos anormais, todos eram convidados a entrar numa minúscula tenda. o filho louro então me mandava embora. eu fingia ignorância e aceitava a ordem, mas de verdade mesmo já sabia o que havia lá dentro. uma noite eu descobrira uma fresta na lona e me pusera à espreita. estavam tão entretidos com o que viam que nem me perceberam. um homem, atrás de muitas tochas, estava completamente nu. eu o via sempre no grupo e imaginava que fosse um simples criado de mais valia. ele tinha dois sexos; dois pênis; duas mulheres ajoelhadas faziam carícias, algumas vezes lambiam ou beijavam os dois membros ou então os seguravam e mostravam-nos. o público não ouvia o deus que fizera o milagre porque a barulheira era infernal.

            viajávamos de aldeia em aldeia e a cada vez que chegávamos a um quartel, ele era mais monumental e resistente que o anterior. me explicaram que estávamos indo em direção à grande capital. que vivíamos num império imenso. mas que só chegaríamos lá depois de muitos anos de viagem, porque precisávamos oferecer o espetáculo durante todo o caminho.

            e assim íamos, levantando ou baixando o grande toldo, espalhando entre os moradores do império aquelas visões de espanto. eu crescia aos poucos, meu quadril rompia as vestes cada dia mais curtas. me fazia grande, lentamente. sentia meu corpo encher-se com algo que não era meu e que eu precisava aceitar. os seios estavam a ponto de rebentar, esticadinhos. eu tinha sonhos estranhos. o louro não me jogava mais para o alto, apenas me levantava e beijava minha testa. mas nos meus sonhos, ele me levantava, passava o bigode no meu sexo e estalava um beijo. eu acordava cheia de confusão.

            houve uma tarde em que estávamos acampados próximos a um desses quartéis. antes do grande espetáculo, um soldado imenso, passando meio bêbado junto à minha tenda, aproximou-se de mim e me apertou o seio. eu me afastei assustada e ele me seguiu. saí correndo e de repente ouvi um grito. parei e voltei-me. o filho louro, uma enorme faca na mão, avançava lento. o outro estacou. alguém gritou e atirou-lhe uma faca que veio se arrastando pelo chão até seus pés. os dois, armados de fúria, se mediam, rodeando-se. golpes vibravam no ar, sem alcance. então, eu não vi o ato, apenas o resultado, o pescoço do soldado abriu-se vermelho e ele tombou, enquanto o sangue espirrava. o chefe deu um grito. percebi que começaram a desfazer o acampamento, preparando uma fuga. correria total, estávamos no meio dos arranjos, quando todos pararam e ficaram a olhar o enorme círculo que se fizera em torno de nós, soldados armados com lanças brilhantes. entraram, amarraram os homens, separaram as mulheres, fomos todos encaminhados ao forte. um soldado me pegou pela mão e me levou dali. fui ter a uma rica tenda. estava vazia. amarrou minhas mãos e percebi que olhava meus seios ainda pequenos. deixou-me sentada num canto e se foi. vieram outros, mais tarde, levaram-me para fora. já escuro, dirigimo-nos a um tipo de praça toda iluminada por tochas. havia um grande buraco no centro, cheio de água. todos os do acampamento estavam lá, amarrados em fila. então pegaram o chefe, penduraram-no numa corda amarrada a um comprido tronco de árvore. a árvore tinha um eixo preso a uma base. levantaram-na, como uma alavanca, giraram-na e ele voou nos ares, pendurado, pairando sobre a água. desceram o tronco e ele submergiu. os soldados, em uníssono, começaram a contar, um, dois, três, quatro, um vozerio amedrontador. em vinte, a árvore foi alçada e eles silenciaram. perceberam que o chefe vivia, mexia-se um pouco e vomitava água. desceram novamente a alavanca, recomeçaram a contagem, levantaram-no, desceram ainda outras vezes, até que perceberam que morrera. quando vi que penduravam a gorda, não resisti e desmaiei.

meu desmaio virou um grande pesadelo. havia um círculo de soldados em torno de dois homens que lutavam, o louro e o soldado que me agredira. o soldado caiu morto. então eles cortaram os pés do louro e mandaram que dançasse. e cortaram as pernas. e depois os braços. ele pulava aflito no meio do círculo. não saía sangue de suas carnes. cortaram-lhe a cabeça e ela principiou a pular também. então ele desapareceu e eu avancei para o meio do círculo. estava nua. eles se encheram de medo, me olhavam como se eu fosse uma deusa caída do céu. olhei-os e eles baixavam os olhos e se curvavam até o chão. enquanto eu girava lentamente, para que todo o círculo se curvasse ante minha pessoa, fui acordando. alguém passava um pano frio na minha testa. dois olhos negros me olhavam. uma mulher cuidava de mim.

            que aconteceu com eles?

            os normais foram afogados, exceto o grande louro, que foi empalado.

            empalado? o que é isto?

            penduram uma pessoa bem no alto, com as pernas amarradas junto do peito. colocam debaixo dela uma estaca grossa, presa no chão e com a ponta afiada a facão. a estaca fica encostada no ânus do condenado. então cortam a corda e a vítima cai em cima do tronco afiado.

            tive náusea. quis vomitar.

            beba isto.

            era amargo demais, foi terrível. fiquei tonta, encolhi-me. senti que ela me cobriu com um cobertor. começo a caminhar numa avenida enorme. há esculturas de ambos os lados, coloridas e alegres. há no fim da avenida um templo imenso, também cheio de cores. muitas flores no caminho e o chão é feito de pedras bem lisas. eu vou em direção ao templo. estou na escadaria do templo, todos se curvam para que eu passe. abrem a porta pesada e eu vejo minha estátua no altar. está nua, inteiramente branca, no alto. a seus pés, corpos de homens mortos, vermelhos de sangue. volto e quero sair do templo mas percebo que estou amarrada, cordas saem de mim e vão até o altar. começo a puxar, não consigo me mover. olho para trás, há muita neblina, percebo que puxo um enorme carroção cheio de figuras. acordo num salto.

            tenha calma. ninguém vai te fazer nada.

            por que estou aqui?

            você foi salva pelo comandante. possivelmente vai mandar que te ensinem leitura, canto e dança e vender você como escrava de luxo. semana que vem ele deve ir diretamente para a capital, já chegou o novo chefe. talvez você vá junto. ele quer saber a sua idade.

            a escrava cuidava de mim. preparava minha comida, frutas tropicais, não podia imaginar de onde vinham elas, tantas e diferentes eram. conheci o comandante, um velho cheio de cicatrizes, com um olhar de falcão escondido no meio de grossas sobrancelhas. acariciou-me, disse-me que me levaria para a capital do império. não me venderia como escrava, contudo. eu devia ter a idade de sua filha, falou. indicou-me um velho cego, que me ensinaria canto e leitura.

            na semana seguinte, partimos. instalaram-me numa imensa carroça coberta. o velho cego ia comigo. conversava sobre diversos assuntos, ensinava-me a ler, indicando o desenho das letras com o dedo no ar e eu aprendia. uma vez perguntei-lhe por que carregava no pescoço aquelas sete conchas amarradas num fio. ele nada falou. desamarrou-as, soltou-as do fio, pediu que eu as segurasse com carinho e as deixasse cair no tapete de pele. ele tateou-as com cuidado, franzia o rosto, adivinhava obscuros avisos, decifrava impossíveis significados:

            muita gente vai morrer por você. você vai imperar sobre muitas cabeças. não terá descanso jamais, a não ser uma única vez. vai dar ao mundo um espírito imorredouro.

            calou-se. eu não entendi direito, mas, lembrando-me de meus sonhos últimos, percebi que era um destino muito forte.

            posso mudar alguma coisa?

            pode tentar.

            e se calou de novo.

            viajávamos durante o dia e parávamos à noite. fiquei sabendo que não levaríamos anos para chegar lá porque a marcha era rápida e organizada. algumas vezes, do alto de um morro, víamos lá longe deslocamentos de guerra. eram impressionantes expedições, um enorme alarido. no início filas e filas de soldados armados. depois, escravos empurrando enormes máquinas de guerra, estranhas criaturas monstruosas, de madeira, ferro e cordas. depois, carroções puxados por camelos e elefantes, deviam conter todas as provisões. finalmente, carros de combate, puxados por cavalos. a procissão terminava e voltava o silêncio, só quebrado por nossos ruídos de carros e marcha de pés no pó.

            um dia perguntei ao cego de onde ele vinha.

            venho de muito longe. tão e tão longe que saí de minha terra muitos anos antes de você ter nascido. de cidade em cidade, de fuga em fuga, num lugar uma noite mal dormida, noutro, anos seguidos de um desejado conforto, aventuras pela manhã, pela tarde e pela noite. primeiro quero te contar de onde eu venho, depois falar um pouco sobre as andanças que me trouxeram até aqui.

            e a partir desse momento ele entremeou sua história com os ensinamentos que me ministrava.

            sou filho das terras do poente. meu pai foi um rico mercador da capital da região da extinta igreja universal. conheceu sua mulher numa ocasião em que os religiosos do mundo se concentravam na capital, para inaugurar o maior templo e o maior palácio da terra. ele tinha ido para lá com a irmã, o cunhado e um sobrinho doente. na ocasião das festas, meu pai e sua namorada assistiam o início do fabuloso ritual que duraria todo o dia. então eles resolveram sair, sem participar das festas, coisas da mocidade, e pensaram em passear até uma aldeia vizinha. o jovem par deixou o grandioso templo, esteve fora todo o dia e ao voltar encontraram eles uma fantástica e desesperada desordem. pessoas chorando, crianças perdidas, onde se elevara ainda pela manhã uma construção esplêndida, havia um monte de ruínas e ainda muita poeira voando leve. as versões eram confusas, contraditórias. diziam uns que os deuses vizinhos tinham aniquilado aquela pretensão monoteísta cheia de orgulho. diziam outros que um homem se queimara numa tocha e provocara um pânico tremendo, seguido de incêndio e desabamento. meu pai herdou os bens de sua irmã, que o filho dela, seu sobrinho, renunciara à vida material; morreu, diziam que mordido por um dragão, quando montava o cavalo sagrado, tendo virado uma espécie de santo. sou o décimo filho do casal. após a ruína do templo, os povos vizinhos, alegando que a igreja universal estava condenada, invadiram um a um a região e expulsaram todos para diversos cantos do mundo. meu pai, com sua mulher e cinco filhos sobreviventes, dando dinheiro e comprando soldados e espiões, acabou conseguindo transferir a família para as terras do norte. dizia sempre meu pai que o mundo andava muito inseguro, antes havia uma paz imensa e duradoura. as invasões nos meus dias de criança eram trágicas. não ficava uma pedra de pé, não sobrava uma pessoa. os fortes eram escravizados, os fracos assassinados em quantidade. escravos tinham cortados ora as línguas, ora uma falange, ora uma orelha. de fuga em fuga, de viagem em viagem, certa feita eu presenciava um grupo de dançarinos. ao sinal de alarme, alguém me pegou no colo e fugiu comigo para o mato. era um ladrão, pertencente a poderoso bando de salteadores de estrada. ensinaram-me a usar armas, a sobreviver na floresta, a roubar. veio uma ocasião em que todo o bando foi cercado. houve luta. caí por terra, ferido, acordei não sei quando depois, alguém me dava água. era uma caravana de gente do país da neve eterna. levaram-me, adotaram-me, aprendi sua língua e as línguas de outros seis dos povos mais importantes do mundo. certa feita, participei de uma expedição marítima. houve uma tempestade e nos perdemos. viajamos desesperados, prestes a morrer de fome, comendo peixe cru. depois de dois meses de viagem pelo mar, o mar cheio de colossos estupendos que enchiam de assombro os navegantes, atingimos uma praia com um povo de excelente civilização. aprendi filosofia, canto e dança. esqueci de te contar que eu, obviamente, não era cego. numa tarde quente, fomos visitados por um estranho grupo de viajantes: enormes, morenos queimados, vestiam-se de peles, nas cabeças figuras imensas de animais como capacetes. uma mulher estranhíssima, no meio do grupo, me olhava de forma assustadora, com olhos que me arrepiavam. ela me apontou e disseram que ela me queria. fui com eles e à noite, numa tenda ricamente ornada, ela me fez seu marido. aprendi a língua deles, um povo cheio de poder que morava no alto das montanhas. fiquei com eles muito tempo, ela me deu três filhos e me ensinou a prática de ler o futuro dos homens em conchas do mar; quanto a isto, nada sei dizer: é como se eu ouvisse uma voz e apenas repito o que ouço; são estranhas coincidências que perturbam muito. junto deles, eu viajava o tempo todo. Certa vez atingimos o fim do mundo. Numa região desconhecida, chegamos a enorme muralha que nos fechava o caminho. viajamos três dias para o norte e a muralha continuava nos impedindo de avançar. voltamos ao ponto de partida, no sul, e mais três dias viajando, continuávamos ao lado da grande muralha. eu não conseguia compreender aquilo. eles disseram que certamente aquela muralha fora feita por deuses, para que não invadíssemos o seu paraíso. não acreditei, apenas tentava entender que tipo de homem morava do outro lado. numa feita, num deserto, fomos atacados pelos povos do grande lago. fui preso e, numa língua ligeiramente semelhante a uma que eu conhecia, um soldado perguntou aos prisioneiros de alguém que soubesse ler. levantei a mão, levaram-me ao chefe. fui incumbido de traduzir para a língua deles uns estranhos documentos cuja escrita se baseava no processo de desenhar as palavras por signos aproximados. conversando com um escravo que iniciara o aprendizado daquela escrita, acabei por decifrar os textos. estive com aquele povo terrível por dez anos, servindo aos chefes que se sucediam da noite para o dia, eram acordos secretos, intrigas, traições. nunca se viu tanta atrocidade cometida. escravos tinham seus braços decepados por esquecer de se curvar ao perceber o amo. mulheres eram degoladas porque a criança nascida não correspondia à expectativa do chefe. certa feita, porque a resposta a uma mensagem que eu redigira, não agradou aos comandantes, tive os olhos furados. passei a ensinar a ler e escrever aos escravos bem dotados intelectualmente. quando o grande império nos atacou, com suas fabulosas máquinas de guerra, passei a ocupar um cargo semelhante a professor de soldados. sirvo ao nosso comandante há já vinte anos. e ele quer que eu vá agora com ele, diz que chegaram para mim dias de paz. nunca estive lá, não sei o que vai ser de nós.

            a viagem prosseguia. fazíamos um trecho de dia e descansávamos à noite. eu aprendia a ler, ouvia textos de poetas e a história do grande império. aprendi a tirar sons de flauta e lira. aprendi a cantar canções de lugares exóticos e não imaginados.

            numa noite, chovia torrencialmente e estalos contínuos explodiam sobre nossas cabeças. acordei assustada, o velho não estava. abri a lona, ele, nu, de pé, do lado de fora, com os cabelos e a barba encharcados, os braços levantados. virou-se para mim, como me percebeu naquele momento? se eu não fizera o mínimo ruído! seus olhos vazados pareciam cheios de fogo. segurou meu rosto com uma força espantosa, apertou-me e falou com voz rouca e tremida:

            não tenha piedade de ninguém. é você ou eles. domina-os. destrói-os. prepara o teu fim!

            por que está na chuva?

            não acredite nos meus presságios. eu mesmo não sei por que digo estas coisas!

            por que está na chuva?

            vou voltar à minha terra!

            você nunca chegará lá! não é muito longe sua pátria?

            pátria? não existe isto a que chamam pátria! pátria é a riqueza dos poderosos! não é disto que tenho saudade. tenho saudades de minhas árvores, minhas montanhas, minha terra, meu fogo e minha água.

            entrei cheia de espanto. a chuva durou toda a noite e eu sonhei confusos sonhos de que não me lembraria nunca.

            ao acordar, disseram que o velho desaparecera. que estávamos a dois dias da capital. que ficaríamos ali para que preparassem lá a nossa entrada triunfal. vieram no outro dia escravas a me conhecer e trouxeram vestes suntuosíssimas, que pretendiam de mim? fomos às portas da cidade, armou-se um grande acampamento. as muralhas se estendiam imensas, não se conseguia ver do outro lado, tão altas eram. toda a noite foi de complicados preparativos. escravas me lavaram e me pentearam e me vestiram e me pesaram a cabeça e os pulsos e os tornozelos com incríveis jóias maravilhosas. cornetas tocavam a todo o momento, dando sinais que eu não entendia. então me chamaram, fizeram-me subir num carro cheio de flores e eu fiquei de pé, ao lado de um trono esculpido em madeira. o velho comandante sentou-se nele, deram o sinal, filas se organizaram à nossa frente, os soldados iniciaram o desfile, os cavalos imensos e peludos foram impelidos e o carro avançou. as portas se abriram, flores caíram sobre todos, cânticos e gritos se faziam um só som aterrador.

            que cidade! que cidade imensa era aquela! construções magníficas com três pavimentos, janelas cheias de cores, portas enormes e cheias de pinturas coloridas. esculturas feitas de madeira representavam deuses diferentes, com suas caras terríveis e suas armas perigosas. as ruas eram largas, com tijolos no chão, não havia terra nem lama. nalguns pontos especiais, um jardim cheio de palmeiras e arbustos floridos. o povo era tão misturado! pessoas de cores e tamanhos e feições tão distintas! seguiam o cortejo, rindo, brincando, dançando. então o velho comandante levantou a mão, o carro parou, ele desceu e esteve abraçado a uma velha que chorava. mandou que tocassem o cortejo. eu sozinha no carro triunfal, o povo dava vivas. a imensa procissão terminou numa praça. o comandante me esperava num enorme cavalo, deu-me a mão, desci do carro. entramos num grande palácio. fui apresentada ao imperador que me olhou de alto a baixo. fez um sinal e escravas me levaram dali, para um pequeno palácio, onde residiam as mulheres da alta hierarquia; ali deviam morar e ficar à disposição dos homens.

            todas as mulheres que não pertenciam à aristocracia eram meio que trancadas nos seus aposentos coletivos; eram as mulheres dos homens todos. eles indicavam suas escolhidas a eunucos que as buscavam e as traziam de volta. para a escolha, serviam-se de pequenos orifícios nas paredes de um cômodo especial, onde elas ficavam estendidas em leitos, semi-nuas. quando elas engravidavam, eram separadas. os filhos tidos num determinado período eram chamados irmãos. e esses alojamentos serviam à toda a população mas diferenciavam-se , claro, uns dos outros de acordo com a classe social a que estavam destinados.

            cinco anos estive ali, aprendendo sobre aquele povo poderoso e de costumes estranhos. nunca fui ao cômodo das mulheres a serem escolhidas. ficava todo o tempo em torno de uma mulher gorda e morena, que me contava histórias e me ensinava sobre as pessoas daquela terra. de vez em quando ela me levava por um corredor escondido, até um apartamento simples. lá eu encontrava meu antigo protetor, o velho comandante. ele estava magro e doente. conversávamos sobre os nossos tempos, ele falava minha filha, perguntava se eu já iniciara minha vida de mulher, eu dizia que não, ele me passava as mãos nos cabelos e me beijava a testa. dizia que gostaria que eu morasse com ele todo o tempo, mas isto não era permitido. a gorda me levava de volta. eu deitava triste em seu colo, ela cantava um canto que me fazia chorar até que eu dormisse.

            soube, um dia, de um deus branco, com sua profecia. ele habitava uma gruta transformada em templo. fora trazido ao império alguns anos antes, por mercadores do vale da prata. instalou-se na sua gruta, sempre nu, dormia sobre peles, comia frutas e mel, vaticinava. e tinha dito, dois anos antes, que a grande deusa chegada de longe reinaria sobre os homens.

            lembrei-me então das conchas do velho cego. resolvi que me colocaria à disposição dos homens, para vencê-los e cumprir a profecia. passei a visitar a câmara das mulheres. por capricho, porém, cobri-me inteiramente com um fino véu negro.

            um dia chegou em que alguém me escolheu. um eunuco me chamou, segui-o, desci escadas, percorri corredores, entrei num aposento obscuro. um jovem estava deitado. as mais velhas já me tinham prevenido sobre o que eu devia fazer. no momento, porém, resolvi fazer como me fosse sendo ditado por minha vontade.

            desnudei-me e, de pé, fiquei a olhá-lo. não me movi. ele deve ter estranhado muito, porque me olhava sem compreender nada. sorriu, levantou-se, tomou-me nos braços e me levou ao leito. estivemos toda a noite juntos. eu sentia a cada carícia, subir-me por dentro um calor forte, uma sensação de crescimento. a tensão aumentava. eu percebia que ia detonar-se um imenso prazer dentro de mim; então, tinha a impressão de que estava sobre mim o velho capitão, magro e doente, misturado ao filho louro do chefe e nesse momento algo se rompia, algo se calava, algo caía do alto e voltava a um ponto mínimo, como se fosse possível, num momento de alvorada resplendente, o início do luzeiro voltar a ser crepúsculo. a repetição daquela escadaria que me atirava ao primeiro degrau, a cada vez que eu a subia, tornou-se-me penosa e fatigante. por um momento, tive a impressão de que aquele homem era o responsável por todos os monstros e afogamentos e empalações e expedições militares e violações e degolas que houvesse no mundo. enchi-me de ódio. olhei-o tomada de fúria, ele fitou-me e disse que nunca vira um olhar tão cheio de amor. eu compreendi que era necessário destruí-lo. usando-me. utilizei o seu desejo das maneiras mais humilhantes que eu podia encontrar. queria aniquilá-lo. ele se enchia de vida, se entregava ébrio e confiante e, após cada derrota, surgia com mais paixão. ele percebeu que era um tipo de jogo e entregou-se cheio de segurança. quando mais se entregava, mais eu me enfurecia e mais o diminuía. é verdade que eu não fazia as coisas claramente. usava minha boca e minhas mãos e meus seios e a umidade e a contração de meu sexo, para iludi-lo. mas minha alma, por dentro, destruía-o inteiramente, presa da mais alucinada vontade de que ele desaparecesse como pessoa diante de mim e se fizesse um pobre brinquedo, de quem eu pudesse cortar pedaços e ordenar: dance! dance!

            alta madrugada, ele dormiu finalmente. vigiei seu sono cheia de um ódio mortal. resolvi vingar em cada homem o que a humanidade se infligia a si mesma. pela manhã ele acordou e me disse que eu era a criatura mais bela que havia na terra. muitas outras pessoas disseram isto, mais tarde; era apenas a repetição de palavras que nada me traziam. tocou uma sineta. entrou uma escrava.

            não sairei daqui.

            ele me olhou e eu compreendi que ele estava dominado.

            alguém estava sendo meu a partir daquele momento. isto não me preenchia. por mais que eu me envaidecesse, era um nada dentro de mim. não se tapa buracos com mãos cheias de nada. vazios continuariam.

            descobri que aquele povo não sabia o que era paixão. eles viviam uma sexualidade despreocupada e masculina, mas não conheciam o perigo da paixão. falavam em amor mas o amor para eles era um orgasmo unilateral após terem escolhido uma mulher sem nome e a quem tinham ensinado o serviço do prazer. quanto às aristocratas, casavam-se e eram literalmente trancafiadas em casa para cuidar da prole dos nobres.         

            ah, mas foi então que eu me lembrei de todos aqueles poemas que o velho cego me ensinara. eles falavam de flores de saudade, de pérolas de dor, de nuvens de prazer, de estrelas de olhar, de facadas de traição, de quantos e quantos arquipélagos de ciúme furioso falavam aqueles poemas! aqueles poemas viraram armas no fundo do meu coração.

            passamos a ser vistos juntos. os homens viam em mim uma excêntrica, mas sabia eu pelos seus olhares que todos me desejavam. a princípio, ninguém entendia uma mulher solta no palácio, mas perceberam eles também que era uma espécie de jogo novo. eu penetrava em todos os aposentos, discutia com os políticos, conversava com os velhos que cuidavam dos grandes negócios do país. todos me olhavam com desejo e eu os excitava. meu jovem marido, se posso assim falar, se enchia de vergonha com minhas atitudes, mas à noite eu o reconquistava com meu ódio fingido amor e ele não pensava em mais nada. aos poucos tomei consciência do meu poder. ou de sua fraqueza. esgotava-o, descobrindo seus pontos mais frágeis e explorando-os até a exaustão. aquele homem que me cheirava e me lambia e me mordia e me penetrava de mil maneiras e fazia disso o sentido máximo de sua existência, aquela criatura me enojava e me enfurecia. brincava com ele sem que ele o percebesse, jogando o jogo perigoso do domínio total. sutilmente introduzia no conluio do amor situações de vergonha e covardia. ele aceitava. aumentava eu o grau de sordidez. ele se assustava mas acreditava que o preço do meu corpo valia aquilo tudo. eu usava o corpo e mais aprendia a usá-lo. olhares, toques, fugas, ausências.

            em pouco tempo eu o tinha completamente escravo. quando percebi que ele estava destruído, enchi-me de desprezo. não mais fui ter com ele e escolhi para amante um jovem petulante e cheio de orgulho, íntimo do imperador. encontrávamo-nos abertamente, logo o escândalo se fez. humilde, com os olhos vermelhos e o rosto emagrecido, o outro nos seguia de longe. eu sabia o que era preciso para que ele atingisse a loucura. um olhar, um sorriso, um beijo furtivo, dias sem me ver, uma noite comigo, um novo desprezo. um mês depois ele amanheceu branco, nadando numa lagoa de sangue, os pulsos cortados.

            lembrei-me de meu protetor louro, o filho do chefe, empalado por soldados do império, me perguntei se aquele sangue era suficiente.

            minhas entranhas disseram que não.

            passei a ser vista como algo demoníaco e sedutor, um poder que não se pode evitar. por meu lado, resolvi me utilizar de malefícios e sedução para destruí-los. queria saber os limites de meu poder. era uma competição, eles a ver até onde resistiriam, eu a saber até onde conseguia. tramei encontros, forjei paixões, deixava-lhes crescer a emoção, humilhava-os. aos que não se matavam, matava eu com intrigas e acidentes. nada ousavam contra mim, porque eles mesmos se traíam por amor de mim, por gozar uma noite de loucuras, eis que eu passei a limitar meus encontros, senhora de meu corpo e dona absoluta de todas as suas vontades. pairava no ar, também, a proteger meus inúmeros caprichos e a me envolver numa poeira sagrada, a lenda de que a deusa viria para reinar sobre todos. tornei-me uma espécie de símbolo: mulher, deusa, poder.

            eu não sabia a quem odiava nem por que odiava. sabia que os dominava com o meu sexo, deixando-os loucos de uma loucura que eu não compreendia. desejava às vezes me entregar simplesmente a um homem, qualquer homem que me soubesse usar, provocando em meu corpo a explosão sempre anunciada e nunca cumprida. eu me sentia como o campo seco que vê ventos levando nuvens imensas e densas, todas mães de mil chuvas. as chuvas não caíam jamais. pois que eles se chegavam e se possuíam. nunca me possuíam a mim. e um sorriso meu os desmanchava e eles mostravam, com os olhos idiotas e a boca entreaberta, como eram tolos e covardes e fracos. era aquela fraqueza que me tornava maligna. de ódio, vingança, fúria, não sei.

            então percebi que o imperador me desejava. e resolvi fazer dele a criatura mais infeliz e atormentada sobre a face da terra. deitamo-nos e ele pediu que eu lhe contasse meus segredos. segredo não se conta. troca-se. contar segredos é entregar-se indefeso. disse-lhe que seus segredos me contaria ele. ele se me entregou. brinquei com seu coração, queimava aos poucos pedaços de sua alma, tirava-lhe lentamente o chão de sob seus pés, arrancava-lhe dia a dia o que ele podia ter de mais seu, individual, pessoal, transformava-o numa sombra. quando percebia que estava prestes a fenecer, enchia-o de uma ganância amorosa e saturava-o de prazeres, embebedava-o. e recomeçava. tirando dele as roupas da vida, deixando-o a cada dia mais espectro. todos me consultavam, pedindo ordens sobre os negócios do império. eu pairava como uma abelha rainha, imensa e poderosa. o imperador me segurava a mão e me seguia calado onde eu fosse.

            o velho capitão, mais magro e doente, estava sempre comigo. controlava as guerras distantes através de um intensíssimo serviço de mensageiros. dizia-se muito preocupado, que o poderio se estendera demasiado e estava difícil manter íntegra a região conquistada. e me explicava de locais onde os rebeldes começavam a se fazer vencedores. então estudei com ele os mapas. numa noite de insônia, tomei a resolução.

            mandei que preparassem trajes militares, fizessem um recrutamento entre os mais vigorosos soldados, organizassem uma grandiosa expedição. três semanas e estava tudo preparado. vesti-me de capitão, olhei-me no grande espelho de metal. mais parecia um jovem deus da guerra, de rosto absurdamente belo e adolescente. subi no carro ante o assombro geral, levantei o braço, os soldados gritaram vivas, acenei ao alarme, soaram trombetas, iniciamos a marcha.

            durante três anos espalhei a morte, o terror e a derrota. atacava os focos de rebeldes com uma audácia que garantia quase toda a vitória. espalhava a notícia de que a deusa da guerra, transmudada em terrível guerreiro, defendia o império. sangue, lamento, ruína, era o que ficava para trás. expectativa, medo, terror, era o que me esperava. eu avançava resoluta, ia sempre na frente, desafiando a vida e a morte juntas. ao crepúsculo, visitava o campo dos mortos e via em cada cadáver o corpo vazio de alguém que poderia ter empalado vivo o filho louro do chefe. à noite, no acampamento, entregava-me aos alucinados soldados, um a cada noite; e eu lhes tragava a alma, sugava-lhes a vontade, alimentando neles, até a última fúria, o desejo que nunca se acaba. tinha percebido que não era a deusa do império que eles desejavam. era a seu chefe. o homem que os comandava até mortes e vitórias insensatas. era ao deus da guerra que eles entregavam a ira de seus orgasmos.

            os mensageiros, entretanto, diziam que o império ruía. que para salvar toda aquela imensa obra, seriam necessárias vinte frentes como a minha. que eu sanava o leste mas as tribos do norte, do oeste e do sul, avançavam impiedosamente.

            cansada de batalhas e acampamentos, insaciada e melancólica, iniciei a volta. dois dias antes da entrada triunfal, entreguei um rolo com ordens a um suboficial, cavalguei disfarçada de mensageiro até o palácio e apareci esplendorosa e bela ante a nobreza, surpreendida porque não me esperava. o cortejo chegou dois dias depois e eu os recebi na grande praça, o imperador ao meu lado.

            após as festas, subi com o imperador. envenenei-o na manhã seguinte. uma semana duraram os funerais. terminado o ritual, mandei avisar que visitaria o deus branco.

            os sacerdotes me receberam com muita reverência, fizeram-me entrar. estava escuro, parei e esperei. aos poucos se foi clareando a aparição, um homem nu, deitado sobre peles, dormindo. todo o seu corpo era de um branco tremendamente róseo; brancos como lã, os cabelos, os cílios, as sobrancelhas, a barba, os pelos do corpo e os do sexo. os cabelos e a barba eram muito crespos. lembrei-me das criaturas do circo, lembrei-me que a gorda me falara também de um homem sem cor que estivera com eles até adoecer e morrer. e percebi que aquilo a que tratavam por deus era um ser humano como todos, apenas diferente, por sina incompreensível, daquilo a que o povo estava acostumado a ver. e que possivelmente ele utilizava algum poder de adivinhação, como o velho cego, para ser tratado como divindade e manter-se vivo como homem.

            fui ao sacerdote, disse-lhe que puxasse a cortina e se afastasse e nos deixasse até o momento em que o chamássemos novamente.

            estive um tempo olhando aquela estranha figura. sabia que ele significava algo de muito especial para todo o povo. precisava vencê-lo. tirei a roupa. deitei-me a seu lado e levei a mão ao seu sexo.

            antes de ele acordar, acordou o seu desejo. tocava-o, comprimia unhas, excitava-o com os dedos no meio das coxas. finalmente abriu os olhos. deve ter compreendido quem eu era. passou as mãos no meu rosto, veio lentamente sobre mim. desceu seu peso, olhou-me sério, aquele estranho olhar perdido num rosa espantoso. fechei os olhos. forçou minhas pernas e iniciou a penetração. mas era de uma lentidão desconhecida. abriu caminho dentro de mim com uma segurança que me perturbava. continuou com os movimentos, saindo e entrando, num ritmo tão devagar que eu sentia cada pulsação de meu íntimo, recebendo o deslizar de seu órgão. fui me entregando, a princípio por puro jogo, depois porque era tragada por um envolvimento fortíssimo que me subjugava. percebi que aumentava em mim a doce tensão, sentia algo denso, crescente, como uma nuvem fluida que vai se expandindo, num movimento lento e contínuo, deixei-me doada à sensação cada vez mais violenta de que alguém me tinha, me dominava, me destruía, me enchia com sua força, eu me pertencia cada vez menos. a doçura cresceu e começou a machucar, ferindo com sua grandeza, como uma espada de luz que me enchesse por dentro e a sensação de luz que aumentava atingiu o limite de minha frágil resistência, eu me batia trêmula, eu entrava em violenta convulsão e gemidos escapavam de minha garganta. sentia nele, ainda uma vez, o velho capitão misturado ao seu filho louro. eu perdia a luta, um animal sendo sangrado com a maior das lentidões. e a morte se aproximava, o momento da grande explosão. aos poucos desapareceu o velho capitão, aquilo que entrava em mim até tocar a minha alma seria a espada do filho louro, homem, homem, homem, homem. então estrelas encheram minha vida, eu gemia, eu sabia que fazia a viagem sem retorno, eu chorava, rebentando em luzeiros dentro e fora de mim, todo o meu corpo flutuando em meio a um calor de cores e luzes, eu gritava. como se uma corrente de água viva me ligasse ao universo, eu urrava.

            aquela terrível derrota era a minha almejada vitória, tão cheia de esplendor.

            fui silenciando e, aos poucos, aquilo que era eu, voltou a me ocupar. lentamente, de mansinho, muito devagar. minha consciência se refez, em meio a uma sensação de prazer. abracei-o e enchi de carinho o seu gozo.

            naquela noite anunciei a todos o casamento a ser realizado dentro de uma semana. quando fui buscar o deus branco, ele estava morto. chegando ao palácio, me disseram que morrera o capitão. sem saber a quem chorar, corri ao meu cômodo mais íntimo. minha protetora, a gorda morena, também estava sem vida.

            foi um só funeral com três piras. presenciei a fogueira da janela. vesti-me de branco.

            durante nove meses eu perambulei entre dois quartos, com uma imensa túnica branca, os cabelos desgrenhados. repetia sem parar:

            a gorda morreu. o chefe morreu. o filho louro morreu. a gorda morreu. o chefe morreu. o filho louro morreu. a gorda morreu. o chefe morreu. o filho louro morreu.

            a gorda morreu. as escravas me limpavam e me davam de comer. o chefe morreu. elas me davam banho. o filho louro morreu. elas alisavam a minha testa, para que eu dormisse. a gorda morreu. elas brincavam com minha barriga. o chefe morreu. elas cortavam minhas unhas. o filho louro morreu. enfeitavam o meu cabelo.

            a gorda morreu. o chefe morreu. o filho louro morreu.

            nasceu então meu filho. filho de deuses, diziam eles. meu filho mortal, eu sabia. elas o traziam ao meu seio, jorrava o sangue branco, eu sabia. elas vestiam o filho dos deuses, eu olhava o filho mortal, eu sabia. a procissão de gente vinha ver o filho divino, eles diziam. eu cuidava do filho mortal, eu sabia. a gorda morreu. meu filho crescia. o império desmoronava, eu sabia. as tribos se rebelavam, o povo temia, os ministros choravam. meu filho falava sua fala mortal, eu ouvia. o chefe morreu. estávamos sitiados, o povo chorava, os ministros gemiam. desnudei o meu filho, lavei-o com minhas lágrimas. desnudei-me. pedi uma ovelha. as mulheres a trouxeram, cheia de flores. seguraram-na e eu a dessangrei. colhi o sangue. lavei meu filho mortal com aquele vermelho. lavei-me também. tomei-o no colo e esperei. o filho louro morreu. eles entraram. com suas armas e sua vingança. os chefes de todas as tribos rebeldes.

            mantive-os à distância com o meu terrível olhar de desvairada cólera.

            a gorda morreu. o chefe morreu. o filho louro morreu.

            fizeram a grande fila da morte. não me ousaram tocar, olhando-me com olhos cheios de medo. tomei o último lugar. a fila principiou a se mover. fora do portão, dois carrascos degolavam todos os habitantes do palácio. havia choro e ranger de dentes. mães e filhos e homens e mulheres e velhos e crianças e senhores e escravos. todos eram apenas mortais a ser sacrificados aos deuses de todos os povos.

            caiu a última mulher.

            eles me olharam.

            coloquei meu filho no chão, dei-lhe a mão e avancei. abriram a roda e me deixaram passar. eu segui em direção à montanha de neve.

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