dalva, herivelto, amarcord

DALVA, HERIVELTO, AMARCORD

    Dalva de Oliveira e Herivelto Martins? Claro que me lembro! Eu me lembro??
    Existe um tipo de mentira que não transforma o mentiroso em pecador: é aquela, resultado de uma traição da memória.
    Quando eu era menino, minha avó contava uma história que teria acontecido no sertão mineiro: certo homem comprara um par de botas mas elas estavam muito largas. Apesar de ter ficado bravo por causa disto, um dia ele calçou as botas e saiu pra caçar. Perto de um rio, um jacaré de papo amarelo (ói tu aí em cima, que assinou o decreto do acordo ortográfico, como é que fica isso? jacarédepapoamarelo?), um jacaré, eu dizia, minha avó contava, pegou-o pelo pé e começou a arrastá-lo até a água. Ele conseguiu se segurar numa árvore fina e puxa que puxa, o jacaré, segura que segura, o herói, ele mexeu o pé da bota abocanhada, a bota saiu e o jacaré lá se foi com a bota e safou-se o quase coitado. Pois é. Amarcord.
    É um episódio possível. Não é nenhuma peripécia à la barão de Münchhausen, com trema. Para usar uma expressão linguisticamente ridícula, dá pra dizer que esta narrativa contém um alto teor de plausibilidade.
    Minha irmã Angela, que mora nos Estados Unidos, há alguns meses me contou que eles lá adoram ouvir a história do nosso avô com o jacaré e a bota. Tive que desmenti-la. Ela é mais nova que eu 2 anos, não lembrava direito. Não foi com o nosso avô que aconteceu mas com um homem qualquer. Isto é um exemplo do que eu disse na introdução.

    Esta minissérie sobre a Dalva de Oliveira e o Herivelto Martins, com toda certeza, deve ter sacudido, em milhares de brasileiros, a poeira da saudade. Velhas emoções esquecidas sobem num redemoinho e começam a machucar, ainda mais porque a madame Música está no olho do furacão.
    Cada um tem lá as suas lembranças. Cada outro sabe onde o calo dói. Minha recordação sobre a época não tem nenhum jacaré mas garanto que tem lá sua pontinha de charme. Vou transcrever trechos de mensagens trocadas nesses últimos dias, que ajudarão na sequência da narrativa.

 

Jorge para Angela, quinta feira, 07.01.2010.
Estou gravando uma minissérie da Globo sobre a Dalva e o Herivelto Martins. É pura nostalgia, pura saudade. Pra você e as meninas, que não conhecem bem os detalhes, vai ser uma boa aula de Brasil. Termina amanhã e eu acho que na semana seguinte terei feito a edição para passar para o dvd. A história nos toca de perto porque quando o Trio de Ouro terminou, ou melhor, quando a Dalva saiu do trio, a Maria da Glória foi cogitada para substituí-la e fez testes. Segundo ela, a mamãe não gostou do “jeito” da turma do rádio, mundanas quase ou já prostitutas. Segundo alguma outra pessoa, de que não me lembro, ela teria cantado muito sem gestos, meio tensa. Nunca saberemos o que aconteceu de fato. (Maria da Glória é uma outra irmã, mais velha, falecida em 2001).

Jorge para Sérgio Vaz, mesmo dia, um pouco depois: (para quem não sabe, Sérgio Vaz é um jornalista doido que assumiu a manutenção de duas revistas culturais, uma sobre cinema, outra com textos – www.50anosdefilmes.com.br; www.50anosdetextos.com.br, isto sem ter que derrubar nenhuma árvore para o papel; realmente, nem todo heroismo precisa do coitado do jacaré).
Vi rapidinho que seu último texto é sobre a minissérie da Globo. Amanhã, depois que terminar a série, vou lê-lo. Quando o Trio de Ouro ficou sem a Dalva, antes que entrasse uma mulher de voz esquisitíssima chamada Lourdinha Bittencourt, minha irmã Maria da Glória, que cantava na minha casa com um certo Walter e um tal de Raul Sampaio, fez testes com o Herivelto (provavelmente muita gente fez este teste, etc)… tchan tchan tchan tchan, amanhã conto a coisa com mais detalhes.

Sérgio Vaz para Jorge, mesmo dia, aliás, mesma noite, logo a seguir:
Rapidíssimo:
SUA IRMÃ FEZ TESTE PARA CANTAR COM O HERIVELTO? É isso mesmo? Jorge, pelamordedeus, conte tudo isso detalhadamente, tudo de que você se lembra, para eu publicar no site de textos. (…)

Jorge para Zélia (outra irmã), na manhã seguinte, 08:
    Oi, Zélia.
    É quase certo que você esteja sabendo da minissérie da Globo, sobre a Dalva de Oliveira. Eu fiquei sabendo por acaso, por que o Leo estava aqui com as crianças. Programei-me e comecei a gravar no computador, para fazer um dvd. Termina hoje.
     A idéia de gravar o dvd é porque quero mandar para a Angela e para vocês aí no Rio. A história da Dalva está um pouco ligada aos nossos dias de Vila Isabel. Contei alguma coisa a um amigo meu de São Paulo, que tem um site sobre filmes e outro sobre textos. Ele tinha me pedido textos antigos para o site de textos e de vez em quando eu mando alguma coisa. E ele ficou empolgado quando eu falei, ontem à noite, que minha irmã Maria da Glória tinha feito uns testes com o Herivelto, na Radio Nacional, para uma longínqua possibilidade de participar do Trio de Ouro. Estes são os dados, do que me lembro da história.
    Vou a seguir narrar para você das coisas que estão na minha memória e gostaria que você, quando tivesse um tempinho, me corrigisse, me ratificasse ou acrescentasse alguma lembrança.

    1. Não sei como vocês conheceram aquela turminha do Walter que participava de serões musicais lá em casa. Mamãe era viva e pelas minhas memórias, teria sido de 50 a 53.
    2. Lembro perfeitamente do nome de Raul Sampaio. Ontem li na internet que ele passou a integrar o Trio de Ouro quando entrou também Lourdinha Bittencourt.
    3. Eles (vocês) costumavam cantar sucessos do momento mas também músicas de autoria de um dos dois, Walter e Raul.
    4. Parece que havia um ou dois outros participantes, de que não me lembro nada. Um deles era fortão, que levantava a mim e à Angela no alto.
    5. Eles levavam lá pra casa uma vitrolinha, com muitas agulhas em caixinhas, cada agulha durava dois, três discos. Mais tarde apareceram com uma agulha de prata, que durava mais tempo.
    6. Uma das músicas inéditas falava em “amor tão banal” (eu a sei quase toda de cor) e eles não tinham escolhido o nome e eu sugeri Amor Banal, eles aceitaram e eu fiquei todo prosa. Uma outra música foi feita para a Amélia: “há quanto tempo você vive nesse mas… mas…”).
    7. A Maria conseguiu gravar um disco com eles, que ouvimos na vitrola da dona Néia. Num lado, um samba-exaltação que falava em “cidade grande” (sei-a de cor, talvez inteira) e, no outro lado, um baião (“foi-se o tempo da valsa”, etc, sei dela só o início).
    8. Uma parenta da dona Néia, talvez uma irmã, era casada com um integrante do grupo Os Cariocas.
    9. Quando a Dalva saiu do Trio de Ouro, ouve muito cochicho lá em casa e ficamos sabendo que a Maria ia fazer um teste para uma possível participação no Trio. Lembro muito bem disso porque nos falaram com muita seriedade para não contarmos absolutamente nada a ninguém e eu soltei a língua com uma colega da Escola Equador, uma mulata grandona (devia ser repetente) chamada Iara. Fiquei com um baita complexo de culpa.
    10. A Maria não foi aceita e sobre isto há na minha cabeça duas versões. Mamãe tinha ido com ela e não gostou do “jeito” da turma do rádio, a mulherada despudoradamente agarrada com os homens. A outra versão diz que acharam (quem?) que a Maria tinha voz bonita mas era muito seca, séria, sem gestos, na hora de cantar.
    11. Logo a seguir, o Trio foi relançado com a Lourdinha Bittencourt, que foi execrada por todo o país, como se houvesse alguém no Brasil capaz de substituir Dalva de Oliveira.
    Então? Você deve se lembrar de muito mais coisas. Eu tinha 9, você 17. E sei que você cantava junto. Uma das brincadeiras que fazíamos era passar um caderno com músicas e cada um tinha que cantar a música que estava na sua vez. Certa feita eu errei a minha, você começou a cantar e eu fiquei frustrado porque conhecia a canção.  
    É isso, pois. Quando tiver um tempinho, responda. (Amélia é outra irmã, na época com 11 anos).

Zélia para Jorge, dia 11.
Jorge, fiquei pensando um pouco para responder.  A Maria da Glória conheceu o Walter e o Raul na Rua Teodoro da Silva, era um Clube ou uma Associação, não me lembro bem (ainda existe a construção).  Eles passaram a frequentar a nossa casa e nesta época a Maria andava tentando cantar; chegou a ir ao Quitandinha com a mamãe, mas não gostaram do ambiente – os homens ficavam cantando as mulheres.  Depois, quando o Trio de Ouro se dissolveu, o Raul chamou a Maria para cantar, para tentar;  o Herivelto chegou a ir umas 2 ou 3 vezes lá em casa – eles ensaiavam na varanda do quarto.  Acho que não deu certo pois eles queriam uma voz mais lírica, foi quando eles colocaram uma cantora do Espírito Santo, eu não lembro o nome;  depois entrou a Lourdinha Bittencourt, mulher do Nelson Gonçalves, mas também não deu certo e ela ficou doente logo depois.  Enfim, a Dalva era insubstituível.  Me lembro do Raul cantando a música Cachoeiro de Itapemirim, que hoje é o hino desta cidade  e outras músicas também. Muitos anos se passaram e agora com esta minissérie lembrei de muitas coisas.  Pensei muito na Maria e pensei em gravar e mandar para a Ieda, acho que ela gostaria muito, mas já que você está fazendo isto, será ótimo.  Recordar é viver.  Um abraço a todos. (Ieda, outra irmã mais velha, hoje em Portugal, com 81 anos).

    Menti pouco, portanto. Para terminar este relato, quero corrigir e acrescentar coisas, relembradas após um último contacto telefônico com a Zélia:
    Minha curiosidade sobre o cantor do grupo Os Cariocas; não eram Os Cariocas mas o grupo 4 Ases e um Coringa. Um deles era cunhado de dona Néia, a vizinha de cima, a da vitrola. Dona Néia é que falava da “sem-vergonhice” que era o ambiente do rádio. Não nos esqueçamos, moças do interior, bonitas, recém chegadas à capital, morando com a mãe para ajudar a criar os menores…
    Entre Dalva e Lourdinha Bittencourt, o Trio tentou uma cantora, Noemi Cavalcanti. Como Raul Sampaio entrou dois anos depois, com a Lourdinha, certamente as gloriosas visitas de Herivelto à minha casa, aconteceram nessa segunda tentativa do Herivelto.
    É muito possível que tais visitas tenham sido escondidas de nós menores, para evitar algum tipo de comentário com os vizinhos. Eu quase asseguro que me lembraria, porque o nome dele era reverenciado por nós, falava-se O Herivelto.
    De vez em quando ouvíamos nós, os pequenos, comentários entre minha mãe e as meninas (como ela chamava às mais velhas), sobre quem estaria apaixonado por quem: parece que Raul gostava da Neuza, e o Walter da Maria da Glória. Como naquele tempo não se usava “ficar”, a coisa ficou por isto mesmo. (Neuza, mais uma irmã, a segunda mais velha, falecida em 1964).
    Maria da Glória chegou a cantar duas noites com a orquestra do Hotel Quitandinha, em Petrópolis. Nessa orquestra, e também na Orquestra Filarmônica da cidade, tocava clarinete o meu irmão mais velho, Zico, conhecido como o Zé do Clarinete. Isto deve ter facilitado a coisa. Foi lá que se deu a desistência da Glorinha, de ser cantora. Ela foi com minha mãe e um famosíssimo radio-ator da Nacional, casado, começou a dar em cima dela (requiescat). Nem a mãe nem a filha aceitaram; hoje, acho que seria bem diferente. Vale lembrar que o Quitandinha, na época, era o apogeu do chique. Eram o Quitandinha e o Copacabana Palace, o tempo glorioso dos concursos de miss Brasil, Marta Rocha, Adalgisa… (Zico era 23 anos mais velho que a caçula Angela. Faleceu em 2009, um mês antes de completar 88 anos. Minha mãe teve 13 filhos. Isto é que é ser heroina, cai fora, jacaré!).

    De tudo isto que foi revirado dentro de mim, fica um pensamento: será que o Raul Sampaio se lembraria da Glorinha, moça bonita, voz bonita, filha da dona Milota, que morava no último prédio da rua Senador Nabuco em Vila Isabel (mais tarde foi construido mais um), em frente à escadaria de pedra que subia para o morro dos Macacos, e que durante algum tempo participou de sua honestíssima boemia musical?
    Que tempos! Recordar é viver, disse a Zélia um pouco acima. O verbo “recordar” contém em si a palavra “coração” (cor, cordis). É por isso que dói.
    E, se dói, é sinal de que estamos vivos.

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