Desistória – capítulo 4.

Desistória – capítulo 4.

   

 

E não se achou mentira na sua boca.

 

 

            4. o ano dos cem anos.

 

 

            cinco anos há que nasci e já se me apresenta tão fatigante o convívio humano!

            pobres e infelizes homens, encarcerados dentro de miséria que eles mesmos constroem, clamando a forças inexistentes para que carreguem fardos fantasmas de sobre suas costas. a princípio me enchi de piedade. mas descobri que a piedade não constrói. se eu for o pai do homem, jamais deixará o homem de ser filho. percebi que, às vezes, é preciso tirar deles até a esperança, ou eles naufragarão num atormentado lago de sonhos. a sua dor não lhes ensina, eles demoram a aprender, como se demoram a aprender! esperariam ter à sua frente toda uma eternidade? será então assim tão difícil perceber que basta um erro para que se aprenda? que esperam os homens? que um poder supremo lhes abra as bocas e lhes enfie de fora para dentro a verdade da vida? como lhes dizer que a verdade sai do homem sempre, quase nunca entra?

            estão sempre dispostos a não aprender, para que lhes pese com maior tortura a sua dor. eles querem alimentar, com tanta dor, a sua culpa insaciável. não percebem que a culpa é como a bocarra de um grande ídolo montado sobre um vulcão. todo o sofrimento será insuficiente porque, caída a dor no fundo do vulcão, ela será incinerada e vai se transformar em nada. e não percebem que, para se livrar da dor, basta se livrar da culpa.

            esta foi a descoberta que eu fiz aos seis meses de idade. que minha dor era filha da minha culpa e minha culpa era conseqüência do código de ética. e que eu precisava me livrar da moral que colaram à minha face, quando nasci. e criar minha própria moral, de acordo com os profundos anseios de tudo aquilo que pertence ao meu ser. foi uma importante descoberta, talvez a mais importante da minha vida, porque me abriu as portas de tanto conhecimento e tantas emoções. foi uma descoberta que tive após um sonho inesquecível, no meu aniversário de seis meses. eu caminhava por um caminho estreito e comprido, não dava para perceber até onde ele ia, nem de onde vinha. eu ia com dificuldade, meu corpo cansado e sem muita liberdade. então percebi que eu estava amarrado: minha cabeça, meu coração, minhas pernas, meus rins, meus olhos, minha língua de todo o meu corpo saíam fios que se perdiam lá atrás. parei, voltei o rosto e vi que meus fios estavam ligados a um enorme carroção que se perdia no meio da neblina. e eu estava carregando o carroção e tudo aquilo que nele estava; como não havia de ser tão difícil caminhar e aprender? e vi então, sobre o carroção, o vulto de minha mãe sem rosto e, ainda que sem rosto, eu sentia nela um grande temor; e vi também meu pai que nunca vi, um vulto de pé, não conseguia saber se ele tinha ou não tinha cabeça. e por que estava eu condenado a carregar aqueles fantasmas tão aflitos e tão pesados? tentei me livrar das cordas, elas estavam fortemente presas, era impossível. quase fiquei impaciente, mas já tinha descoberto antes que a impaciência consome. era preciso parar e pensar. resolvi voltar. por que, se eu voltasse, não voltaria o carroção, parado que estava. e me aproximei deles e a neblina como que se dissipava lentamente e os vultos se faziam nítidos. minha mãe com sua roupa negra e um pano branco a cobrir toda a sua cabeça; meu pai, de pé, segurando com as duas mãos a sua cabeça decepada. nenhum sorriso. muito parados, mas vivos. o sonho louco do homem, que não tem limites. não tem limites o sonho louco do homem. então eu falei:

            não vou mais carregar vocês. sigam-me, se quiserem, se precisarem me seguir. mas eu me recuso a carregá-los. não quero estar condenado ao passado. sou livre!

             e retomei meu caminho. queria, estava curioso por saber se as cordas se romperiam, deixando-os esquecidos, lá atrás. mas, à medida que eu avançava, o sonho foi se desfazendo e se desfazendo e eu me vi na manhã dessa minha estranha liberdade.

            é verdade, é bem verdade que não devo me envaidecer de estar sendo como estou sendo. diversos fatores confluíram para que as coisas se consumassem como se consumaram e fizessem desaguar as águas do meu rio no mar do que sou hoje:

            nasci numa prisão. minha mãe se recusou a me entregar às mulheres que cuidavam dos filhos das presas. vivi ali, encarcerado a ela, até os três anos. minha mãe não tinha rosto. soube mais tarde que houve um acidente, ela caíra sobre uma fogueira já brasas e tivera todo o rosto terrivelmente transfigurado. cobrira toda a cabeça com um véu branco que amarrava no pescoço. e foi aquela mancha branca, um véu fantasma em forma de cabeça, que ficou sendo a minha primeira companhia. quando penso no ser humano, em geral, o que surge na minha mente é aquela cabeça branca imaculada, desprovida de expressão, de traço, de vida. um corpo com a cabeça morta cuidou de mim. daquela mancha alva saía o canto que me fazia dormir, saíam sons que eu aprendi a repetir, saíam palavras. quando aquele corpo me abraçava, eu sentia bem junto a meu olhar aquela cabeça não feita, o esboço da criatura à espera do criador. minha mãe era minha mãe. quero crer que estivesse um pouco louca. é difícil delimitar a loucura. mesmo para mim, agora, cinco anos de vida, prestes a me transformar num oceano, é difícil delimitar a loucura.

            a voz de minha mãe era grave e profunda. um dia, percebendo que o meu vocabulário estava desenvolvido, que eu argumentava com tramas de uma lógica que ela chamava de adulta, e que minha memória carecia de uma única repetição que fosse, resolveu me contar a minha história.

             ela e meu pai se conheceram no dia em que a república se transformou em império. alegando um golpe iniciado nos meios intelectuais, o grande presidente se constituíra imperador. meu pai foi preso no momento em que ela queimava livros que poderiam levar à destruição do homem, ela quis fugir e caiu com o rosto sobre as brasas. meu pai foi condenado a morrer a morte execrável, uma infeliz tortura dos homens que dura no máximo dois ou três dias. muita gente morreu nessa mudança política e os povos do norte começaram a se manifestar contrários à política do sul. a situação prevista era a de guerra entre os dois hemisférios e esta foi a guerra realmente iniciada na manhã do dia em que fiz um ano de vida.

a guerra, estranho, durou exatamente um ano. houve atrocidades e barbarismos, o norte se separou do sul e tanto um hemisfério como o outro, ao correr do ano, se transformaram numa porção de regiões autônomas e independentes. tão terrível e dramática foi a fúria da matança de lá e de cá que o saldo trágico de um ano de vida era desolador. os aviões não existiam mais, pouquíssimas cidades tinham serviços de telefones e a eletricidade se restringia a raras regiões privilegiadas no sul. o ânimo do homem era feroz, eles se recusavam a trocar informações porque toda a troca significava perda de influência e ameaça de extermínio. as regiões cujos sábios morriam em combate, perdiam quase toda a possibilidade de progredir, porque ficavam sem cabeças e as informações científicas passaram a ser guardadas a três chaves. houve tentativas de espionagem nesse sentido, algumas bem sucedidas, outras pagas com a vida tirada aos pouquinhos e de forma cada vez mais cruel e dolorosa.

            cidades e cidades sem adultos, apenas crianças e velhos, que tentavam manter viva a chama da civilização. mas máquinas se quebravam, circuitos eram interrompidos para sempre, o homem desaprendia o progresso. e os infelizes remanescentes de cada local, sob a ameaça constante de uma invasão que lhes vinha tirar o pouco sustento que sobrara, os remanescentes tentavam inventar substituições para que as perdas não fossem irreparáveis. os jovens redescobriam primitivos descobrimentos. tentava-se segurar um conforto que escapava da ponta dos dedos.

            estas coisas não me contou minha mãe. ela apenas apresentou um esboço geral da história, o resto eu deduzi e completei mais tarde, ouvindo conversas daqueles que se intitulam adultos.

            durante três anos não vi ninguém a não ser a pessoa daquela mulher que não era pessoa. meu aniversário de dois anos me traz também uma recordação muito forte. meu desenvolvimento foi muito diferente do que o do resto dos homens, vim a saber mais tarde. eles são muito lentos e precisam ser avisados repetidas vezes de um mistério para que possam desvendá-lo. eu, sem saber por que predestinação, sempre aprendi cada fato no primeiro ato. a primeira repetição de cada verdade já se me fazia enfadonha. deu-se que na véspera de meus dois anos minha mãe inventava histórias para me distrair e eu a interrompi

            quero ver seu rosto.

            ela estremeceu. o que era um rosto para mim? eu sabia, por meu tato, que eu tinha um desenho a partir de um volume específico. sentia os dedos nos olhos, nas maçãs do rosto, no nariz. imaginava minha cara desenhada no espaço. eu já me vira turvo e dançando desordenado em águas de canecas e bacias. mas o escuro da cela nunca me permitiu ver com nitidez. um outro rosto era para mim uma ausência terrível. não conseguia, por mais que me esforçasse, imaginar o toque de meus dedos em algo que se parecesse com o rosto de alguém.

            quero ver seu rosto.

            o mundo das outras pessoas era para mim um universo paralelo fora de mim. minha mãe contava as histórias enormes e eu ia polvilhando a minha mente com aquele bando peregrino de pessoas que viviam as suas narrativas. casavam-se, morriam, tinham filhos, choravam, eram felizes, perdiam amigos ou se apaixonavam. assim eram as histórias de minha mãe e ela me dizia que metade vinha de livros lidos e metade vinha do fundo da sua alma. mas aquele bando peregrino era de sombras sem rosto. eram cópias de minha mãe. ela me tinha falado de roupas diferentes para homens e mulheres. todavia eu vestia aquelas criaturas com roupas negras como as de minha mãe. homens e mulheres que iam e vinham com suas brancas cabeças sem cara. apenas as crianças das histórias, apenas as crianças apareciam nuas e tinham rosto. como o meu. como o que eu pensava que era o meu.

            quero ver seu rosto, repeti.

            amanhã.

            penso que minha mãe tinha lá com ela, embrulhadinha nalguma escura dobra da alma, a sua loucura particular. fosse ela eu, jamais me teria mostrado a mim mesmo. mas ela teve coragem. no dia seguinte, acordei com um canto diferente. ela cantava e balançava a cabeça, encoberta de branco. eu me sentei na cama, esfreguei os olhos, espreguicei-me e falei

            hoje já chegou.

            ela se ajoelhou diante de mim. muito lentamente foi levantando o véu branco e retirou-o inteiramente. eu vi. eu vi dois olhos imensos, arregalados, soltos nas órbitas. e um sorriso enorme, dentes brancos e sem lábios. e não havia nariz e toda a carne era repuxada e vermelho escuro. era como se fosse o sorriso da morte mas seus olhos estavam sombrios e molhados. me parecia um demônio que sofria.

            me parecia um demônio que sofria.

            aquela monstruosidade esteve diante de mim o tempo suficiente para que eu aprendesse que o homem é o seu próprio rosto. e que o rosto de minha mãe era não ser. estendi as mãos e recoloquei o véu. minha vida voltou ao que era. eu a abracei e ela falou

            você não é deste mundo. eu tenho medo de você. eu tenho medo de você.

            porque você se mostrou?

            não sei, não sei, não sei.

            apertamos o nosso abraço e ela chorou desordenadamente. falei

            uma vez que você não tem rosto de mãe, você é todas as mães do mundo.

            ela chorou mais. me tomou no colo e eu adormeci de novo, sem sonhos.

            ela me disse naquela noite que a guerra tinha acabado e que tinha sido uma guerra tão cruel como se tivesse durado cem anos.

            após a terrível visão que tivera do rosto de minha mãe, durante todo um ano eu vivi a dúvida de como seria o homem. para o comum das pessoas, um ano de dúvida pode parecer facilmente suportável. mas para mim, que costumo viver o período de dez anos em apenas um, duvidar durante um ano significa ficar dez anos sem resposta. eu tentava tirar coisas do rosto de minha mãe, acrescentar coisas, nunca me satisfazia com o resultado, já que as alterações que eu fazia na imaginação acabavam por se dissolver e deixavam à mostra o mesmo sempre rosto horrendo. vale dizer também que eu poderia sair de onde eu estava e procurar lá fora encontrar aquilo por que tanto ansiava. preferi esperar até que o anseio se tornasse insuportável.

            no final deste meu terceiro ano de vida se me deparou a oportunidade mais fascinante de toda a minha história. soube que o filho do rei queria me conhecer. antes de contar, porém, este fato, necessitaria esclarecer duas situações: por que razões eu jamais vira um ser humano que não minha mãe e como andava o mundo lá fora, onde já havia reis e príncipes.

            já expliquei que nasci na prisão. sem assistência alguma. nunca vesti roupa. não as tinha. logo que nasci minha mãe comunicou o fato à pessoa que trazia a comida da manhã. por um estreito buraco na parede que separava a cela do corredor, passou a notícia de que eu existia. na hora do almoço a voz anônima falou que pediram seu filho para cuidar dele e minha mãe disse que não vou entregar. fui amamentado pelo corpo sem cara. a partir do ano da guerra fomos praticamente esquecidos. mas minha mãe saía da cela duas vezes por dia, para comer. dizia então que a prisão estava isolada e ninguém conseguia sair dali; cultivavam uma horta e um pomar. soube depois que ela não estava mais presa, a prisão se transformara, por força do isolamento total, numa comunidade forçada. e quando lhe perguntava por que ela não me levava, ela dizia: ainda não é hora; ou então: não sei, não sei, não sei.

            logo após terminar a guerra, uma das paredes foi derrubada e a comunidade voltou a pertencer ao mundo. mas a situação do mundo era tão desoladora que as mulheres se fecharam novamente na sua prisão, com suas crias, o pomar e as hortas.

            eu aprendi a viver de minha mente. conversava todo o tempo com minha mãe e ela sempre se assustava com minha memória. acho que no fundo de sua pequena loucura, ela me queria só para si. e eu resolvera que esperaria um grande tempo que fosse, para aprender daquela situação tudo que houvesse por aprender. não voltaria jamais àquela infância. o tempo, eu aprendi, mais do que a vida, é o que não volta. e com ele não voltam as suas lições de tempo. então, eu me esgotava dentro desse tempo, esse estranho tipo de deus que dá e tira: dá-se-nos para que nos reconheçamos e se retira de nós de mansinho, à medida que nós nos reconhecemos. e se nós não aprendemos, ele não nos permite a segunda lição. a segunda lição será sempre uma outra lição. isto eu aprendi: não há repetentes de vida, e por que eu resolvi apanhar a vida sempre no primeiro ato, dilatou-se-me o tempo de repente, assustando assim, tanto, as pessoas. as pessoas é que são lentas. então, eu digo que, mesmo sabendo que podia desobedecer, o que é desobedecer se não obedecer-se? mesmo sabendo que eu podia desobedecer, eu ficava. queria me poupar. queria me preparar. queria me deixar num estado de prontidão total, absoluta e irrevogável, para quando fosse o primeiro momento.

            e era assim que eu estava, quando soube que o filho do rei queria me ver.

            e então quero falar ainda de como era o nosso mundo de então. e antes de falar dessas coisas, queria falar de quanto me é difícil falar dessas coisas. por que se me escapam muito facilmente as grandes visões perspectivas da história. quão desordenada sinto esta minha narrativa! olhar o homem no seu conjunto, de fora, de cima, imparcial e sem juízo, oh! quanto fica difícil para mim. eu quero explicar dos acontecimentos comuns que envolviam comunidades, regiões, continentes e sempre dou por mim falando apenas de corações e olhares. acho que é a idade. não consigo me concentrar no objetivo. pode dar-se também que seja apenas um intuitivo ponto de vista. pois o que é a história do homem? se não uma soma imensa de cabeças e corações e nada mais! e àqueles que me rodeassem e perguntassem por fatos genéricos ou dados elucidativos, sobre máquinas e invenções, eu diria: insensatos! eu estou falando tão somente das coisas que vocês não poderiam vir a saber sozinhos!

            mas mesmo com tais atenuantes, quero me propor o problema de falar daquele tempo.

            um ano de guerra de cem anos. depois, o homem se isolou em grupos menores. já no final da guerra alguns senhores mais poderosos, poderosos ao novo modo de existir, com parcos recursos, algumas moedas a mais, cavalos e carroças, rigor e má vontade e soberba no trato, isso era tudo, esses senhores se apoderaram de cidades e as avassalaram. devagar, então, novas formas de trabalho foram se organizando e dos lucros saíam os impostos que sustentavam os reis. os reis, sim, que, sabedores do tamanho de suas misérias, nenhum mortal ousou se intitular imperador. vale dizer, todavia, que alguns desses reis eram realmente ricos e ameaçavam apoderar-se novamente de grandes regiões. novas frotas eram projetadas, mas, onde andavam os antigos arquitetos? já não eram aqueles potentes navios destruídos que se desenhava e sim barcos a ser impelidos pelos ventos, se ventos soprassem. os transportes voltaram à tração animal. as comunicações se faziam por um caríssimo serviço de estafetas, reservado aos ricos. os livros rareavam. quando as cidades foram tomadas, nos cem anos de um só ano, os soldados tinham que separar os livros do resgate comum e entregá-los a comissões de sábios que seguiam nas frentes de batalha. mas os soldados sempre são o que sempre foram. soldados, animais estúpidos ensinados a matar! e nos saques que procediam, só se preocupavam com mulheres e meninas e vinho e ouro e entregavam o resto às chamas devoradoras. e os livros, os livros que soldados mais obedientes separavam eram os livros de que eles entendiam, livros cheios de figuras idiotas que ensinassem a ler aos analfabetos, não aqueles esquisitíssimos livrões de mil e tantas palavras indecifradas; e os sábios, quando sábios havia à disposição, já eram sobras de sábios, com sua cobiça vã, sua embriaguez inútil e contumaz e sua fome de sadismo, os sábios não mais sábios passaram a negligenciar o livro; aquilo a que eu chamo a segunda alma do homem.

e de pouquinho a pouquinho, o homem mergulhava na negrura de sua própria negação, desinventava-se, voltava, se desultrapassava. a escada em que se podia subir, ele a descia a cada novo momento. o homem se preparava para sua vazia ausência. eis o que pude descobrir. que as pessoas, a cada manhã, se distanciavam anos e anos daquilo que fora seu dia anterior. e reclamavam que a vida perdia o sentido e que nada tinham para preencher o tamanho de cada perda. pois que não se tapa buracos com mãos cheias de nada. e eis que um mundo em que houvera, por consenso universal, não se sabe, é verdade! através de que condicionamentos e imposições, um mundo em que houvera uma república, passara a um império e uma guerra dolorosa o tinha fragmentado em reinados fragmentados.

            e eis que eu então vivia numa espécie de fortaleza de mulheres, antes presas por justiça, ou injustiça? depois conservadas ali por opção. algumas mantinham contato com o mundo, iam e vinham com suas trocas e compras e vendas e levavam artigos artesanais e traziam tecidos ou linhas e facas e ferramentas de jardinagem e outras preciosidades. assim minha mãe contava.

            e eis que passava pela região o nosso rei com seus soldados. e, sobre os reis, eu sabia tudo o que tinha dito minha mãe, como mandavam e como eram obedecidos e de como se vestiam com cores e brilhos. me pergunto de onde tirava minha mãe tanta informação, se não fosse daquelas mulheres que iam e vinham a fazer trocas. e me pergunto o quanto deviam crescer aquelas informações que iam e vinham, transfiguradas à grossa por corações fantasiosos. mas o rei estava na região e mandara um capitão com alguns soldados verificar nossa prisão isolada e fazer o levantamento das pessoas. e o entediado príncipe, jovem de quinze anos, quisera acompanhá-los. e então o príncipe soube de uma criança de que se falava prodígios e resolveu me conhecer. e mandaram uma mensageira a minha mãe e minha mãe ouviu, pelo buraco da comida, na véspera de meu terceiro aniversário, que o filho do rei queria me ver. e minha mãe, desescondendo seu pedacinho de loucura de estimação, fez com que marcassem o encontro para a manhã do dia seguinte, dizendo que eu estava doentinho. e nessa tarde ela me lavou com especial cuidado, jogando a água fria sobre meu corpo de pé na bacia, com uma solenidade lenta de ritual. e seus dedos faziam carícias de adeus e todo o seu corpo tremia. e ela disse baixinho: você não é deste mundo. não precisa mais de mim. eu te amo e te amo. não me pergunte por que me vou. já disse sempre que não sei, não. não sei.

            e conversamos todo o resto de tarde e toda a noite e ela contou histórias nunca contadas, histórias de tristes despedidas entre mães e filhos e entre mães e pais e entre irmãos e irmãos e entre noivos e noivas e entre amigo e amigo. e sua voz saía de muito fundo. de muito fundo vinha aquela voz folheada a melancolia: de muito além do detrás daquele pano branco. e eu descobri, eu descobri nessa noite que a alma do homem não tem fim e o espaço em que existimos é maior que o espaço do universo. e era de depois do fim que vinha a voz de minha mãe. e aquela voz me balançou no espaço e me envolveu como veludo, crescendo que foi em torno de mim. eu dormi. no meu sonho único de toda uma noite eterna, flutuava o rosto que eu veria.

e o que seria do homem, depois que eu o conhecesse? o que seria de mim? o que seria de mim? se perguntava o meu espanto insone. e eu descobri, eu descobri que eu não existo sem o outro. e que é ele que me permite me conhecer. e que o outro para mim tinha sido, até ali, a figura de minha não mãe, que eu já sentia longe, por que aquele calor sempre protetor já não estava por perto? e que algum outro me esperava naquela manhã. e quantos outros precisariam vir para me ensinar a me conhecer? e quantos fossem eles, sempre seriam um não-eu, a recobrir o desenho do meu eu, a me fazer diferente de todo o resto, porque ninguém jamais terá noção exata da dor que sinto, nem saberá do tamanho certo de minha pequenina e quebradiça alegria.

            por que mistério? por que mistério? as coisas que concernem apenas a mim, têm que ser vividas apenas por mim!

            acordei com dois olhos enormes a me fitar. homem ou mulher? levei um susto, escondi meu rosto, esfreguei os olhos, acostumei-me com a luz, fiquei de pé na cama, com as mãos no rosto e bem lentamente mostrei-me e olhei.

            o que era aquilo? o que é isto, de uma pessoa existir? eu não entendia nada! pela primeira vez a resposta demorou a se fazer clara. olhos, faces de bronze, uma boca entreaberta mostrando dentes brancos, dentes brancos, um nariz que falava tanta coisa e os cabelos, que cabelos são estes? minha mãe dissera de cabelos curtos e compridos separando homens de mulheres, mas aqueles cabelos cheios de espirais que se abraçavam desvairadas, que cabelos eram? e o olhar! quantas estrelas cabem no olhar de uma criatura? eu queria decifrar aquele olhar, queria aprendê-lo mas ele se transmudava rápido e eu adivinhava medo e prazer e amor e surpresa e calma e lembranças de ontem e planos de dias a nascer e histórias de tanta e tanta viva vida! eu me perdia no emaranhado daquela luz tão forte que saía daqueles olhos. e então, como descrever? então, ele se arrebentou num sorriso e é então isso que é um sorriso? eu me sentia tragado para dentro da alma que me olhava e me sorria e sabia que precisava sair dela e que não voltaria como fui, que traria algo que seria meu para sempre, que era o reconhecimento do que é o outro. e descobri que conhecer uma pessoa é esvaziá-la. e dar-se a conhecer a ela é devolver o seu recheio.

            e eu quis conhecê-lo. dando um pequeno passo para trás, passei a olhá-lo, envolvendo-o. ele começou a ficar assustado e, para mim, que presenciava pela primeira vez a gênese do susto, para mim aquele primeiro susto era terrível. coloquei minhas mãos nos seus ombros e tentei sorrir-lhe. eu saberia sorrir? eu sorrira antes para minha mãe, mas como seria sorrir para um sorriso? de medo, passei a olhar suas roupas. e que roupas eram aquelas? minha mãe falara de roupas pesadas e leves distanciando homens de mulheres. mas o que eu via eram sedas finas e rendas e um medalhão a brilhar, ofendendo os olhos, e tanta e tanta cor e era tudo embriagador e bonito! e meus olhos voltaram a encontrar aquele olhar imenso e então foi um sorriso só, meu e dele, que estalou simultâneo como um fogo do céu. e eu comecei a chorar.

            eu comecei a chorar o meu primeiro choro. eu nunca e nunca e nunca tinha chorado antes. e eu descobri que o choro e o riso são irmãos de sangue e de alma e de adoção mútua. e que moravam no fundo mais fundo daquilo que fosse mais meu. e que lá no fundo eram uma e única substância e era no subir para o mundo cá de fora que eles se mostravam como os conhecemos, riso e choro, diferentes, para que nos protejamos da loucura irreversível.

            o príncipe me beijou na boca. minha mãe falara também de beijos. eu tentei descobrir que verdades se escondiam naquele beijo mas não obtive nenhuma resposta. apenas senti, senti que devorava e era devorado vivo, permanecendo, porém, inteiras e intactas e mais vivas que nunca, ambas as partes: eu e ele.

            saímos da cela. um pesadelo de luz desabou sobre mim.

            segui com ele, nu e desoladamente feliz, em direção ao palácio. num repente eu estava rodeado de centenas de pessoas mas eu não as olhava nos olhos. eu estava muito cansado.

            entramos na carruagem. ele levantou o assento de seu banco e retirou de lá um objeto brilhante, de metal, com um cabo trabalhado em cores. eu sabia o que era. minha mãe falara de espelho, um vidro que refletia como nós somos. senti medo. ele me entregou o espelho e se sentou. eu tinha medo de me olhar por que já tinha aprendido que o homem tem mais medo de si mesmo que do outro. se é o outro que me mostra como sou, o espelho me mostra o que sou. o outro me define em relação a ele. o espelho não admite relação: apenas eu, a partir de mim mesmo até chegar a mim mesmo, sem intermediários nem referências. e ali estava eu com o espelho na mão. esperando meu encontro. me preparando para mim. então, levantei-o, eu de olhos fechados, e bem lentamente abri os olhos. que coisa estranha é essa de existir! de que buraco negro saiu tanta vida? poderia ter certeza de que isto que me olha sou eu? o que sou? não poderia ter-se dado que um impostor, às escondidas, se tivesse apossado daquilo que eu pensava ser, que eu queria ser, sonhava ser? e que agora eu tão só o estaria fitando com estes meus olhos que são meus? e se ele fosse outro, não seria, esse outro, um eu? e tanta estranha pergunta machucou minha alma aflita, como se aquele momento fosse o primeiro momento da criação! e eu aprendi, aprendi e aprendi de novo e cheio de dor, que há perguntas sem respostas. que não me adiantaria viver mil anos, acumulando o que pensamos ser sabedoria, pois me bastaria me colocar diante de mim novamente para receber na cara a chicotada de que alguma coisa me será negada para todo o sempre de todos os tempos. e meus olhos se mudaram. eu, que presenciara, num pequenino relance, um olhar cheio de uma luz orgulhosa de divindades eternas e indestrutíveis, me via agora diante de uma criança com uma certa marca indistinta nos olhos, eu, uma marca indelével, de uma impotência teimosa, de uma obstinação humilhada, eu, ali, a olhar uma pobre criança humana, eu, demasiado humana, pobre e pequena. e é então com você, pobre e grandiosa criaturinha, que eu terei que conviver o resto de meus dias? sim, eu me respondi, e aprendida a lição de nosso mísero legado, comecei a me fitar como gente que sou. e lentamente, lá do fundo do fundo, subiu aquele sorriso e como seria sorrir para meu próprio sorriso? pensei, mas não tive resposta. apenas a vivi. e junto com meu riso veio meu choro e nesse momento eu consenti que eles fossem o mesmo, pois eu sabia que nunca mais os teria tão misturados, meu riso e meu choro, minha dor e minha felicidade. e eu os deixei estourando no meu peito e escapulindo pela minha cara. e eu me lavei em meu choro e me enxuguei em meu riso. e entreguei o espelho ao príncipe negro que me olhava como se eu tivesse acabado de nascer.

            o que você tem? perguntou.

            nada tudo não sei

            e eu resolvi naquele momento me amar mais que a tudo no mundo e descobri que seria a partir de meu desvairado amor por mim mesmo que eu construiria o monumento do que sou.

            foi aí que eu o olhei. para me deixar conhecer. ele se entristeceu:

            parece que você me esvaziou de mim!

            faz o mesmo comigo e te retoma.

            não consigo.

            então fui eu que me entristeci. como são frágeis os homens! nunca mais falei uma única palavra a ninguém, a não ser aquele último diálogo que travarei um dia com o meu amigo príncipe, que nunca mais me abandonou, até o momento de seu sacrifício.

            nada tenho a falar aos homens.

eles me temem olhar por que sabem que eu sei o que são e o que pensam. eles me evitam. mas eu os observo de longe e os ouço e os aprendo, como o mais terrível espião que sugasse pedaços das almas das criaturas que estão por perto. e com estes pedaços de um e de outro, eu construo a confusa imagem do que é o ser humano. imagem eternamente incompleta, porque descobri eu, glória das glórias,

            o homem é um ser imprevisível!

            isto é o único que alivia. se não fosse assim, eu não resistiria um dia mais a se repetir e mergulharia na loucura sem retorno. ainda assim, do alto do meu conhecimento, eu os sinto enfadonhos o mais das vezes.

            cinco anos há que nasci e já se me apresenta tão fatigante o convívio humano!

            quanto à minha mãe, quanto à minha não-mãe, desde aquela noite de despedidas,

 

 nunca mais a vi.

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