Desistória – capítulo 6.

Desistória – capítulo 6.

 

 

 

            E não sabes que és um miserável e infeliz e pobre e cego e nu.

 

 

            6. o alvorecer da loucura.

 

 

            minha vida se compõe de duas histórias: antes de mim e depois de mim.

            antes de mim é aquele trágico período de minha infância e adolescência, quando as coisas que eu vivia eram tidas por não vividas. o pai e a mãe e o corcunda não acreditavam em nada do que eu contava. uma ou outra vez eu notei que eles se entreolhavam com maliciosa cumplicidade, deixando-me num confuso estado de perturbação: eu vivia ou não? estava morto ou não? as cartas de minha mãe, todavia, descobertas após sua morte, me deram a certeza de que eles me tomavam por louco.

            depois de mim é o resto de meus dias, após a noite da grande revelação, quando descobri que eles é que estão loucos. e que eu, como único ser vivo a ter exata noção dos fatos, tenho que me resignar com esta grandiosa missão de suportar pelos homens o seu insustentável fardo; tão pesado e indesejado, que, aos poucos, após provação e provação, tive que me transformar no deus que tenho sido. e digo que só esta metamorfose sublime, apaixonada e dramática, foi que tornou suportável ao meu coração a dor causada pelo magno pecado de existir. e também sentir que paguei parte de minhas culpas acendendo aos homens um caminho de luzes e verdades eternas, dando-lhes um sentido para a vida vã de banidos dos três paraísos.

            começo de um pouco antes do começo. meu pai era senhor de uma vasta região. morava com sua filha num enorme palácio, cheio de criados e parentes. a vida no palácio, era uma festa inacabável, a vida no palácio. músicos e dançarinos e artistas animavam os banquetes e os pratos se sucediam com fartura. eu não existia então. o corcunda me contava estas histórias. e contava que, terminado o banquete, todos se punham a ouvir os peregrinos viageiros com suas fantásticas narrativas inacreditáveis. meu pai passava por excelente anfitrião, vinha gente de todos os lugares visitar suas terras. de tão longe vinha gente, contava o corcunda, que algumas pessoas diziam ter atravessado mais de sete mares, de tão longe vinham; tão longe e tão longe que não se podia acreditar que vivesse gente àquela distância de nossas terras. e todos aqueles estrangeiros dormiam e comiam no palácio de meu pai e depois do banquete falavam de seus estranhos e inusitados costumes. meu pai os despedia com presentes graciosos e lhes desejava tranqüila viagem.

            naqueles tempos os donos das terras tinham um poder de reis. recebiam palácios e fazendas como herança e dominavam suas regiões com severidade e violência. eram os senhores da justiça. suas terras eram habitadas por camponeses muito pobres que não tinham outro serviço se não cultivar os campos e pastorear. como as terras não lhes pertencessem, eram obrigados a pagar aos senhores o aluguel do chão. os pagamentos eram feitos em mercadorias e controladores senhoriais fiscalizavam cruelmente as entregas dos impostos. as vidas dos camponeses não tinham valor algum, qualquer pequeno delito era punido com a máxima pena: a morte, executada num local especial, geralmente dentro dos muros dos palácios: primeiro, castrava-se os culpados; as mulheres tinham os seios perfurados com estiletes; depois eram decepados os pés, as mãos e finalmente a cabeça. quando as vítimas perdiam os sentidos, após a decepamento de seus membros, os carrascos esperavam que tornassem à consciência. e as pessoas passeavam em torno, admirando a construção portentosa do palácio, conversando e comendo suas salsichas e seus chouriços, aguardando a continuidade das torturas.

            não havia lei escrita naquele tempo, a não ser um tipo de constituição que o senhor recebia dos pais, onde vinham relacionados os seus direitos. de cinco a cinco anos, membros mais velhos da família reunida podiam alterar a lista de direitos, ampliando assim o alcance da arbitrariedade dos senhores. vez por outra, constituições vizinhas entravam em conflito sobre fronteiras e os senhores faziam pequenas guerras entre si: os camponeses eram armados e estabeleciam-se novas demarcações. algumas raras vezes uma região era dividida entre herdeiros. no geral, um senhor acabava por dominar o vizinho, destruía-lhe o palácio ou mudava-se para ele, se assim fosse mais conveniente. fazia um recenseamento de todos os habitantes subjugados e criava o seu novo código de direitos.

            e foi assim que se passaram anos e anos. meu pai e sua filha envelheciam e para todos os pretendentes que apareciam para se casar com a jovem, o meu pai, contava o corcunda, meu pai apresentava uma série de exigências impossíveis de cumprir, enumerando a seguir os defeitos que via no pretendente. estes rareavam dia a dia, primeiro por saber das dificuldades que encontrariam, depois porque a virgem avançava em idade. a partir de um certo tempo, não mais se cogitou, então, de casamento. ambos estavam velhos, meu pai com setenta anos e sua filha com cinqüenta e cinco anos. a vida no palácio não perdera a vitalidade, mas tivera diminuído bastante o seu ritmo.

então, chegou um dia um estranho viajante. e o corcunda contou que o vira; ele era alto e magro, de rosto cadavérico, branco, olhar de florestas misteriosas e montanhas escondidas por neblinas. vestia um manto preto e era de se estranhar que suas barras não estivessem empoeiradas como as barras dos mantos dos comuns dos viajantes. ele nada comeu, além de um pedaço de pão e nada bebeu se não uma taça de vinho. e instado a falar de viagens e de sua terra, ele disse que apenas queria dar uma notícia: a de que a peste rondava o reino do meridião e o do setentrião e o do nascente e o do poente. e que a morte se espalhara por todo o mundo, sangrando com a mesma impiedade indiferente os velhos e os novos e os bons e os maus. então ele tomou uma taça, encheu-a de água, fez uma reverência à filha de meu pai, depois a meu pai mesmo, e saiu silencioso, levando a taça. ninguém o viu mais. é claro que não foi bem assim que contou o corcunda; quando eu percebi um pedaço de verdade escondido atrás de suas mentiras e outro pedaço de verdade guardado atrás de seus silêncios, conduzi a história de acordo com a minha verdade, que é a única verdadeira.

            meu pai anunciou que na manhã seguinte fecharia as muralhas que envolviam o palácio; que nos celeiros havia trigo e milho e aveia para muitos anos; que aquele que desejasse permanecer ali poderia fazê-lo; e que se fosse quem assim o entendesse.

            e na manhã seguinte o palácio amanheceu vazio. tinham ficado apenas ele, sua filha e o corcunda. assim contou o corcunda e assim decidi que fora.

             o corcunda, na realidade, corcunda não era. era uma figura monstruosa, todo torto, os braços enormes e cabeludos, o tronco desproporcionado, os pés achatados e escuros, uma cabeça imensa. tinha todavia uma voz suavíssima ao falar e tão maravilhosa, quando cantava, que não se reconhecia voz humana mas de uma criatura vinda do alto. todos o tratavam por corcunda.

            então ficaram no palácio apenas estas três pessoas. meu pai, sua filha, o corcunda. e cabras. e gatos. era costume das grandes casas criar gatos em profusão, para que os ratos não acabassem com o trigo e as farinhas dos celeiros. e eles tinham trânsito livre em todas as dependências das casas e, como havia muito rato, os gatos se multiplicavam gordos e felizes.

            e deu-se que estiveram um tempo sem saber de ninguém, trancados no imenso casario. e seu alimento era apenas pão e vinho. e vez por outra comiam carne de um animal sacrificado. e se resignaram a não comer outra coisa, enquanto houvesse a morte lá fora. e o corcunda cuidava de tudo e à noite contava do que tinha presenciado dos altos muros: de pessoas que morriam às portas do palácio e de bandos que dançavam e cantavam e comiam frutas contaminadas, indiferentes ao fim iminente. e falava de procissões de viajantes que passavam, carregados com seus pertences inúmeros, do norte para o sul e do sul para o nascente e do nascente para o poente e do poente para o norte. fugindo daquilo que perseguiam.

            e contava de loucos senhores, que, ambicionando imperar sobre áreas imensas, armavam com paus e pedras a legiões de mendigos e empestados e faziam expedições de guerra suicidas. levavam a morte onde chegavam e dela pareciam vencedores até que seus exércitos começavam a se esfarelar, como seara negra, as hastes dos cereais tombando. então, quando se percebiam condenados, era uma orgia insana, violentavam-se entre si, disputavam presas com machados e unhadas e dentadas; velhos se enchiam de lubricidade animal e crianças se tornavam adultos cheios de malícia e logro e todos se olhavam com aqueles olhares injetados de maldade e egoísmo. para cada um, o outro se tornava uma vítima ou uma ameaça. fúria e ira e horror. eles se atiravam às últimas fagulhas de vida; uma vida já apodrecida, mórbida, escura. os reis da morte caíam aos pés de seus esfarrapados estandartes, ao vento quente do fim. como sabia o corcunda dessas coisas? sobre a areia cinzenta os pedaços de corpos espalhados. e os abutres vinham solenes saborear aquela podridão. depois, apenas os ossos. e os ossos das mãos apontavam para as montanhas não alcançadas. ossos de mãos vazias. não se tapa buracos com mãos cheias de nada, dizia o corcunda. isto eu não entendia.

            e houve uma noite de terrível tempestade. como se os céus quisessem lavar a doença toda e curar a terra. isto não me contou o corcunda, isto li nas cartas de minha mãe. li que o corcunda serviu o pão e o vinho e meu pai, setenta anos, pediu-lhe mais vinho. e o corcunda trouxe uma grande jarra mas meu pai pediu mais e mais vinho. e depois da primeira jarra, mandou que se fosse deitar o corcunda e ofereceu vinho à sua filha. e ambos tomaram do vinho e comeram do pão. e escreveu minha mãe que não se lembrava de como ficou embriagada nem de como foi seu sono. lembrava-se apenas de clarões que iluminavam um terrível rosto sem olhos, à sua frente, lembrava-se que houve um apertadíssimo e infinito abraço e sua alma como que dançava, enlouquecida. e escreveu minha mãe que sentiu-se estranha, absurdamente diferente, no dia seguinte e conheceu dias depois que algo se passava dentro de seu corpo. seis meses depois eu nasci. sem unhas, sem cílios, sem sobrancelhas, sem cabelos. uma cabra me amamentou. o corcunda trazia seu leite, tomava-me no colo, minha mãe nunca tocou em mim; ele entornava em minha boquinha as gotas do leite que me deu à vida. do leite de cabra, falou-me o corcunda. que minha mãe nunca me tocou, descobri na noite da grande revelação.

            foi assim que cresci. crescendo, conheci meu pai e sua filha, minha mãe. meu pai era implacavelmente severo. exigia obediência absoluta e não repetia jamais uma ordem. era proibido esquecer uma norma e era rigorosamente proibido transgredir uma lei. minha mãe era silenciosa e triste, apenas me olhava de longe. eu seguia o corcunda. quando ele deixava. cedo aprendi que podia me perder por ali, à vontade, pois não havia jamais perigo naquela enorme construção. eu passeava no meio dos gatos, brincava com eles, trocava-lhes as crias. eram tantas as crias! ou visitava as cabras. um dia quebrou-se um pedaço do cercado e elas passaram a passear pelos jardins e algumas chegavam a entrar em casa. acabamos por aceitar aquela invasão. acostumei-me a mamar nas cabras, como faziam os filhotes. e à mesa quase nunca tinha fome daquele pão de mesmo gosto.

            foi nessa época que tive minha primeira experiência de como meu mundo era diferente do deles. eu encontrei no meu quarto, atrás de mim, uma cabra carnívora; ela comia uma ave estranha, que eu não conhecia; a ave estava pendurada pelos pés que iam sendo roídos; de vez em quando balançava-se toda, batendo as asas. enchi-me de horror quando percebi que a cabra tinha as pernas traseiras completamente amassadas. corri a chamar meu pai, não sem antes ter tido a preocupação de trancar o animal por fora. ele veio lento atrás de mim, mas ao abrirmos a porta, o quarto estava vazio. ele abaixou-se, olhou-me firme e apenas falou: não seja louco. louco é quem vive a vida que não existe, respondeu minha mãe enquanto bordava, sem tirar os olhos do pano. talvez minha idade não me permitisse me lembrar dessa resposta, mas aprendi após a grande revelação que, apenas para mim, o tempo se apresenta diferente: para mim nada é começo nem fim e eu estou acima e além e dentro do antes e do depois. porque eu sempre existi. então eu me lembro da resposta de minha mãe, como se tivesse sido formulada agora.

            dias antes de eu fazer sete anos, anunciou-me o corcunda que minha mãe daria uma pequena festa. preciso dizer que já acabara a peste, nem soubemos direito quando foi que ela terminou. um dia foi possível abrir os portões e sair. o corcunda ia comigo e visitávamos casas e trocávamos leite e vinho por objetos e frutas e tanta coisa mais. apesar de abertos os portões, nunca mais morou ninguém ali, a não ser nós quatro. a vida mudara, meu pai era apenas um velho pobre, com uma grande morada. e quando minha mãe anunciou uma pequena festa, alegrei-me pensando nos banquetes antigos, com danças e cantos. queriam que eu cantasse para os convidados. esqueci de dizer ainda que meu pai elogiava minha voz, falando com os olhos brilhantes, que era tão bela quanto a voz do corcunda.

            eu estava cheio de excitação. na manhã do meu aniversário, acordei com uma fortíssima dor de cabeça. e havia uma estranha luz em torno das pessoas. como se elas tivessem crescido, iluminadas por dentro, todas vindas de distantes paragens com surpreendentes mensagens. eu as olhava assustado. eu tinha medo. eu não entendia nada ainda. eu me lembrava das palavras de meu pai: não seja louco! e meu pai precisava ser obedecido. escondi-me das pessoas. minha cabeça estalava e eu parecia todo o tempo estar sonhando. procurei ajuda junto à minha mãe, fui ao seu quarto, estava vazio. vi uma gaveta aberta, cartas e cartas! li-as todas; ela, todos os dias, desde que começara a peste, escrevia cartas a si mesma!

            à noite o corcunda veio me chamar. ele chegou imenso, iluminado, grandioso como uma criatura descida do alto, olhos cheios de um brilho intenso. segui-o até o grande salão. então, o que vi?

            um bando de gigantes, nus e avermelhados, homens e mulheres, iluminados por uma luz que os tornava metálicos. e as cabeças, que cabeças imensas de monstros! macacos e leões e águias e cavalos e bodes e porcos, mas eram animais tão humanos, como se se tivesse misturado tudo, caras de bestas e caras humanas, a me olhar com seus olhos cheios de fogo! eu não entendia na época o que se passava. na verdade, eu apenas me preparava para a grande revelação. como não era ainda a hora, caí no chão desacordado. o corcunda falou depois, quando abri os olhos, que eu tinha dormido uma semana inteira. que eu caíra no chão, depois de soltar um grito terrível, me batera em desespero longo tempo, soltando uma baba espessa pela boca. depois, dormira tranqüilamente.

            não contei a ele de meus sonhos. nem poderia. eu só me apoderei daqueles sonhos na aurora da grande revelação.

            a partir daquela convulsão, dias e noites se misturam, antes e depois se confundem, hoje e ontem perdem o efeito; apenas eles e eu nos mantemos distintos: eles, mortais comuns, eu, o que sou.

            não sei quantos anos tenho, nem que dia é hoje. estou triste e amedrontado, deitado no quarto. então chega meu pai, terrível e severo; me chama e manda que eu fique de pé, em frente a ele. ele se senta e me adverte com palavras que doem. eu me sinto cheio de culpa. eu quero chorar. ele manda que eu não chore. meu pai deve ser obedecido. eu o olho nos olhos e vejo que seus olhos vão se modificando. vai diminuindo o preto de seus olhos, desaparece a íris escura até que só ficam enormes os grandes globos brancos. eu quero me afastar e meu pai adverte para que eu não me mexa. eu quero fechar os olhos e ele me diz que eu o olhe. e eu fico ali a olhar o homem sem olhos e agora eu não sei quem é ele, de onde vem e há quanto tempo está ali. sei que minha mãe está junto à porta mas eu não a vejo.

            eu passeio pelos corredores numa noite escura e percebo uma luz fugidia no quarto do corcunda e eu me chego sem fazer barulho e olho que ele se abraça e acaricia e movimenta o seu sexo, torto e duro, incrivelmente grande, e ele está aflito e geme e de seu membro escapam gotas e gotas de um leite grosso. ele recolhe tudo com a mão esquerda e, aquietado e sorridente, passa todo o líquido em seu rosto. depois, deita-se e fecha os olhos.

            eu estou deitado no berço. eu durmo. então se chega minha mãe junto de mim, me olha com seus olhos. eu sinto medo e culpa. ela me diz todos os dias: eu te amo. você é tudo que tenho. mas não me toca. muito tempo depois é que compreendo por quê.

            meu pai está morto, deitado na mesa do grande salão. flores e velas ao redor. ninguém veio vê-lo. o corcunda olha de longe. eu me aproximo e sei que fui eu que o matei. então ele abre os seus olhos só brancos e segurando meu rosto diz: eu não estou morto porque você vive. olho para o corcunda e vejo que quem lá está é minha mãe, com os olhos baixos de tanta culpa. como? se ela já morreu também? fecho os olhos de meu pai e o deito. ele fica deitado mas seus olhos só brancos se abrem para o vazio. ele fala: aprende a reconhecer o bem do mal. são irmãos gêmeos.

            eu estou deitado ao sol, no quarto. gatos passeiam perto de mim, preguiçosos. ouço um estranho murmúrio lá fora. levanto-me e vejo. no telhado, sob minha janela, uma grande mancha negra viva: gatos e gatos e gatos ao sol, mexendo-se lentos, formando um corpo de mil partes. eles avançam negros, lentamente, sobem até a janela como se fossem formigas peludas, entram sob mim e eu me deito sobre todos eles e a mancha fluida e carinhosa me leva ao estábulo e me deposita no meio de tantos cabritinhos quentes e cheios de seu cheiro forte e as cabras passeiam sobre nós e eu mamo nelas, sugando estranhamente algo que eu não entendo se é um seio de mãe ou um membro pouco inflado de um corcunda.

            estou sentado no chão, observo que minha mãe coloca um pó branco num copo d’água e, estendendo-o à minha frente, diz: bebe. eu vejo dentro do copo o cavaleiro da morte. derrubo-o, um gato negro o bebe e sai caminhando, deixando um rastro de sangue. ela me apresenta uma faca e grita: mata-te! eu me levanto e dou um passo atrás. ela grita: castra-te! eu começo a chorar e ouço a voz violenta de meu pai: não chore!

            o cavaleiro da morte chega à porta do meu quarto e bate. por que você bate, se é esperado? pergunto. tristeza e culpa em seu olhar. preciso de você, eu digo. e ele: eu é que preciso de você. sua vida é de minha morte. e eu: aprenda que sou um deus eterno. em troca te concedo a vida de minha mãe. encontre-a bordando. tem piedade dela, porém! não a toque! e ele: e seu pai? meu pai já morreu há muito tempo. morreu para que eu estivesse. leve minha mãe e aprenda que eu serei em breve um deus imortal.

            eu estou deitado e me lembro do corcunda e brinco com meu corpo e faço como ele e também eu tenho grande meu membro e enquanto estou gozando a voz de meu pai me ecoa no quarto, falando de bem e mal e eu digo que já aprendi a reconhecer o bem do mal e estou apenas descobrindo como a dor se esconde atrás do prazer e recolhendo todo o meu sêmen na mão esquerda eu o bebo em seguida. eu durmo um sono de dor e culpa. acordo e sei que estou fecundado, meu pai sempre existiu em mim e eu sou pai de mim mesmo.

            eu de joelhos na minha cama, o corcunda deitado no chão. eu peço aos céus que me concedam a graça de descobrir a verdade. então meu pai-mãe aparece no umbral, com seu olhar de fogo. eu sei que sou culpado, eu digo. e eles: é preciso pagar com a tua dor. não se apaga a culpa, apenas se a torna suportável. eu digo: sofrerei o que for necessário. eu preciso sofrer. eu quero sofrer. eu amo sofrer.

            eu acordo no meio da noite, tenho febre e desejo. meu corpo estremece por inteiro. eu toco meu membro ereto e lembrando dos olhos de meu pai eu me encolho de horror: o prazer só aumentaria a minha culpa. eu preciso sofrer. eu percebo que a culpa da masturbação me fará sofrer. eu percebo que o pecado me fará sofrer. eu quero pecar para sofrer mais que todos os homens do mundo. uma voz vinda do mais fundo de mim grita onipotente: fecunda tua mãe! então eu me masturbo e sei que minha mãe está diante de mim e vejo que consegui fecundá-la porque meu gozo esplêndido e atormentado não molha os lençóis. é uma explosão seca. eu sei então que sou mãe de mim mesmo.

            caminho por um imenso corredor e encontro esqueletos caídos. todos têm as cabeças separadas dos corpos. foram todos degolados. há foices e martelos espalhados pelo chão. chego a uma imensa biblioteca, nunca se viu tanto livro assim. e há um esqueleto caído sobre uma mesa, com uma pena na mão. ele é o único esqueleto que tem a cabeça ligada ao corpo. morreu escrevendo. eu chego e tento ler. é uma língua que não conheço. então, ele se levanta e toma o papel e lê: eu, que li todos os livros do mundo e conheci tudo sobre o homem, não tive tempo de escrever sobre as verdades que descobri. apaga-se o século das luzes e uma noite de fanatismo toma conta de tudo. ele se deita novamente. refaço o caminho de volta. os esqueletos todos estão desmanchados pelo tempo, ossada quase poeira. eu sei que sou culpado por tudo isto. sei que tenho todas as culpas do mundo. sou culpado porque existo. e resolvo que vou sofrer a dor de todas as culpas. eu sofrerei para libertar o homem.

            eles me amarraram numa cama de madeira, com os braços abertos, e dizem que estou louco. me dão comida e água, trocam minhas roupas sujas de urina e fezes mas não me soltam. um homem de branco diz que me dará uma droga tão forte que eu vou me acalmar. meu pai me olha triste e tenho a impressão de que se sente culpado. minha mãe aproxima a mão de minha testa mas não me toca: só ela compreende que quem deve sofrer a dor do mundo sou eu, o seu deus imortal. então eu bebo a droga e mergulho num infinito túnel branco e me recordo de que todos os sonhos foram sonhados nas noites da convulsão. e que nunca mais, depois daquelas noites, eu estive desamarrado. mas estou livre agora, aqui, sentado no quarto, com a janela aberta. sei que vai principiar a minha alvorada. surge meu pai e diz: há o certo e o errado. o bem e o mal. há que reconhecer o bem do mal. o que parece bem é mal, é bem o que parece mal. aprenda a ouvir a voz.

            surge o corcunda com sua voz macia e o seu prazer espalhado pela cara. sei agora que ele é o demônio. é o prazer que proporciona a culpa. resolvo que quero sofrer todas as dores.

            surge minha mãe dizendo: é preciso ensinar estas verdades ao homem. eu aprendo que minha mãe é do céu. que ela nunca me tocou para que eu aprendesse essa verdade. ela sabia que o prazer era pecado. tocar é ser o prazer. foi a única pessoa que nunca me tentou. ela me mostra uma caixa com cartas que escrevia para mim. leio as cartas que contam minha história. a história continua e eu leio:

            então começaram a voar em torno de mim as figuras mais alucinantes e loucas. cabeças, corpos deformados, aves monstruosas carregando nos dorsos mulheres nuas, animais estranhos devorando pecadores, mãos atravessadas por facas e flechas, confusos demônios cabeludos com suas garras cheias de criancinhas espetadas e quando eles todos abriam as bocas a gritar, escapuliam enormes serpentes voadoras. e eram gritos e silvos e gemidos e urros e tambores de danças infernais. e todos se sentaram de repente em torno de um enorme homem de negro com orelhas de morcego e ficaram a ouvi-lo rinchar. e eu comecei a flutuar e fui subindo e subindo e deixando lá embaixo os sons confusos e a escuridão e tudo foi se iluminando e sons musicais me cercaram com carinho. então, eu me vi de pé, diante de mim, cheio de luz e vi que eu era também meu pai com os olhos só brancos e era também eu minha própria mãe, os três eus fundidos numa só pessoa, a trindade sagrada e eterna. e vi:

            vi que o eu que era meu pai existira antes do antes, por todo o sempre; e que ele estendeu a mão esquerda e se espalharam convulsas as águas de rios e mares e ele estendeu a mão direita e se levantaram aflitas as terras e o mundo se fez. e ele soprou e de seu sopro saíram os ventos e as nuvens e as chuvas. e ele saiu caminhando com seus pés divinos e onde pisava brotava um ser vivo: de seu pé direito era uma planta que crescia, de seu pé esquerdo um animal. e conforme ele pisava forte ou leve era uma grande árvore ou uma humilde flor ou era uma grande besta ou um inseto pequeno. e ele caminhou assim, povoando a terra com suas criaturas. e cansou-se e sentou no alto da mais alta montanha e se pôs a olhar o seu trabalho. e sentiu que havia felicidade na terra, na água, na chuva, no crepúsculo, nos animais tranqüilos e nas plantas aquietadas. mas meu pai que sou eu não ficou contente com o que tinha feito. sentia que toda aquela felicidade era uma felicidade adormecida, toda a alegria era uma alegria que existia mas não era sentida. era preciso fecundar a vida com o seu outro lado, preenchê-la com a sua negação. antepor à felicidade a dor, o que legitimaria a felicidade. apresentar ao bem existente um espelho onde ele se transformasse em mal, o que criaria uma faísca de cumplicidade entre ambos, tornando completa e existência do ser. então meu pai criou o pecado, com sua culpa e sua dor, para que houvesse totalidade em cada ato. e, mais ainda, para que as criaturas saboreassem, após a luta com o mal, a grande vitória. e saiu de novo pela terra, espalhando o pecado com sua dor. e voltou à mais alta montanha e esperou. e viu que de nada adiantara pecado e dor, que os animais não sofriam porque não entendiam. era preciso um animal que fosse dotado do conhecimento. só o conhecimento mostraria ao animal o caminho certo e o errado e só o reconhecer o bem e o mal faria com que o animal sentisse por completo, para o bem e para o mal, como a maior árvore que cresce para cima e para baixo e quanto mais descer as raízes na matéria, mais poderá elevar suas flores aos altos céus. nesse momento o deus meu pai se encheu de medo. conhecer é ser deus. poder pecar é ter poder sobre o pecado. ele retirou-se da terra, então, não quis povoá-la com criaturas à sua imagem e semelhança. dormiu um sono longo de milhões e milhões de anos e eis que ao acordar viu que seu mundo lentamente se transformara e era povoado por um estranho animal, orgulhoso e cheio de coragem. meu pai quis descer à terra para destruir a raça de deuses criados à sua revelia mas o animal-deus-homem o rejeitou e a vida de meu pai perdeu o sentido.

            e vi a seguir que fora o diabo que me inspirara essa visão anterior, cheia de verdades mentirosas; porque eis que imediatamente a seguir, vi meu pai criando da areia molhada uma forma diferente de todos os outros animais e era essa forma a forma de uma mulher. e soprou-a e ela se encheu de vida. e ele disse: você será o primeiro ser à minha imagem e semelhança. e por isso fiz mais bem feitas as tuas formas e você amadurecerá antes daquele que há de vir. para melhor se preparar para ser o forno onde será fermentado o pão de sua descendência. e fez a seguir uma outra figura mais forte, para que fosse ele o obreiro de sua descendência. e soprou-o também e também o homem viveu. e disse deus: para que não cresçam jamais e nunca cheguem a ameaçar o meu poder infinito, vou lhes soprar agora com a dor da culpa de existir. e soprou-lhes no rosto a dor da culpa e o casal primeiro se sentiu culpado para todo o tempo dos tempos. e para humilhar o jovem casal até a última humilhação, deus criou a morte. e fez com que eles conhecessem que iam morrer. que conhecer que se morre é como morrer toda a vida, com a ameaça constante da foice que degola. e não saber o momento da morte é como já estar morto.

            junto com o conhecimento da morte, porém, veio o conhecimento da vida, que não se pode isolar um conhecimento do outro. e esse todo conhecimento tornou o homem orgulhoso e o orgulho o encheu de coragem e a coragem fê-lo sonhar com a eternidade. é desse sonho que ele vive.

            e foi esse sonhar sem fim que eu vi, dali onde estava.

            procissões infinitas de homens e mulheres e crianças e velhos que passam aflitos mas cheios de orgulho, em busca de seus destinos. e sabe-se um pouco sobre o que se passou mas nada se sabe do que se vai passar.

            estive ali todo o tempo. depois que desci foi que aconteceu aquilo que tinha acabado de acontecer.

            um menino nu aproximou-se de mim e me fez sinal para que eu o acompanhasse. ele não me olhou diretamente nos olhos. eu o acompanhei em direção a um jardim e chegamos junto a um príncipe negro, que segurava uma lira nas mãos. eu estava invisível e percebendo que se afastara o menino, falei ao príncipe:

            se você tem fé em mim, leva teu amigo à montanha, prepara o sacrifício e mata-o em meu nome.

            o príncipe ficou assustado e vi em seus olhos o tamanho do que pode ser o desespero humano. caminhou de um lado para o outro lado, cheio de aflição e dor. sabia eu que sua alma estava lutando entre duas forças descomunais: a fé no seu deus e o amor ao seu amigo. eu esperava. eu esperaria todo o tempo de uma vida humana, o que é o pequeno tempo de uma vida? então ele estacou, encheu-se de coragem e decidiu. eu sabia que a partir daquele momento ele não voltaria atrás, não hesitaria mais, não pensaria em mais nada se não em obedecer à sua fé vencedora. tomou de um grande punhal, escondeu-o sob as vestes, foi ao menino, deu-lhe a mão e se dirigiu à montanha: vamos ao alto do monte sacrificar a meu deus. percebendo o olhar indagativo, acrescentou: havemos de encontrar lá mesmo a sua vítima; não se discute as ordens do senhor. e subiram e eu os acompanhei com minha presença. e lá chegando, o príncipe amarrou as mãos do menino. quando ia vendar-lhe os olhos, falou o pequeno: quem é o teu deus? e disse o príncipe: aquele que sempre foi, é e será. aquele a que não se desobedece. e perguntou o menino: de quem é a fé? e respondeu o príncipe: minha é a grande fé em meu deus. e apesar de te amar como te amo, amo mais ainda a meu deus, e o obedeço.

            então o menino o olhou com os seus olhos que sabiam olhar e falou: teu deus não passa de um assassino. que tenho eu com teu deus? que tenho eu com a tua fé? não dou a ele o direito de me exigir. não temos pacto eu e ele. se ele me incluiu num pacto, eu o rejeito e me excluo. e se não há mutualidade, não há acordo. não creio nele. portanto, ele não tem direito sobre a minha vida. eu nada tenho a ver com vocês dois. se você tem fé nele, mata-te a ti mesmo. isto é lógico.

            o príncipe, com o olhar esvaziado, voltou a lâmina pendente para o próprio peito. e o menino falou:

            desamarra-me antes. por favor.

            o que foi feito. ele se afastou dali e nunca mais foi visto. e o príncipe negro se imolou por fé em mim, cortando o pescoço.

            então muito me perturbei mas surgiu meu eu-pai e falamos: esta visão nos foi soprada pelo mal. não será essa a história que vamos inspirar aos ouvidos humanos. eles precisam ser felizes. só a fé absoluta e inquestionável os tornará felizes.

            então eu acordei de meu sono de droga e pedi que me desamarrassem. com a voz mais macia que a do corcunda. e lhes falei que estava bem e que tinha compreendido tudo. eles fizeram uma pequena experiência e como viram que eu não os atacava, deixaram-me solto. e eu, disposto a salvar a humanidade, abandonei pai e mãe, fiz-me de louco e saí pelo mundo ensinando-lhes a minha verdade, que é a única verdade. de loucura eles entendem. rodearam-me os infelizes e os miseráveis e os pobres e os cegos e os nus. falei-lhes das visões celestiais e da culpa que precisa ser sofrida. sempre na linguagem da loucura, para que me pudessem aceitar. contei-lhes a história da grande prova de fé, modificando-a pela inspiração do bem, tornando absoluto e total o exemplo do príncipe negro. disse que o príncipe me obedeceu com todo o rigor mas no momento em que ele ia imolar o seu amigo amadíssimo, apresentei-lhe um cavalo branco, que foi sacrificado. eles me ouviram e me ergueram templos e se convenceram de minha divindade e saíram pelos quatro cantos a espalhar a boa nova.

            e aos poderosos que me perguntam cheios de temor se sou verdadeiramente um deus, eu lhes digo: assim dizem vocês: eu o sou.

            não sinto dores, apesar de estar amarrado como estou.

Visitas: 189