Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7

 01 – A formiga boa

          Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé de um formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.

         Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

         A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

         Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu – tique, tique, tique…

         Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.

         – Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.

         – Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu…

         A formiga olhou-a de alto a baixo. – E que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?

         A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:

         – Eu cantava, bem sabe…

         – Ah!… – exclamou a formiga recordando-se. – Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

         – Isso mesmo, era eu…

         – Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.

         A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

 

02 –  A formiga má

          Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.

         Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo.

         A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde se abrigar, nem folhinhas que comesse.

         Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou – emprestado, notem! – uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o permitisse.

         Mas a formiga era uma usurária sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.

         – Que fazia você durante o bom tempo?

         – Eu… eu cantava!

         – Cantava? Pois dance agora, vagabunda! – e fechou-lhe a porta no nariz.

         Resultado: a cigarra ali morreu entanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste. É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?

 

         Os artistas – poetas, pintores, músicos – são as cigarras da humanidade.

                                                           *****

            – Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. – Vovó nos leu aquele livro do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve.

            Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História Natural, mas de Moral.

            – E tanto é assim – disse ela – que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam.

            – Isso não! – protestou Emília. – Não há animalzinho, bicho, formiga ou pulga que não fale. Nós é que não entendemos as linguinhas deles.

            Dona Benta aceitou a objeção e disse:

            – Sim, mas nas fábulas os animais falam a nossa língua e na realidade só falam as linguinhas deles. Está satisfeita?

            – Agora, sim! – disse Emília muito ganjenta com o triunfo. – Conte outra.

 

03 – A coruja e a águia

         Coruja e águia, depois de muita briga, resolveram fazer as pazes.

         – Basta de guerra – disse a coruja. – O mundo é grande, e tolice maior que o mundo é andarmos a comer os filhotes uma da outra.

         – Perfeitamente – respondeu a águia. – Também eu não quero outra coisa.

          – Nesse caso combinemos isto: de ora em diante não comerás nunca os meus filhotes.

– Muito bem. Mas como posso distinguir os teus filhotes?

         – Coisa fácil. Sempre que encontrares uns borrachos lindos, bem-feitinhos de corpo, alegres, cheios de uma graça especial que não existe em filhote de nenhuma outra ave, já sabes, são os meus.

         – Está feito! – concluiu a águia.

         Dias depois, andando à caça, a águia encontrou um ninho com três mostrengos dentro, que piavam de bico muito aberto.

         – Horríveis bichos! – disse ela. – Vê-se logo que não são os filhos da coruja.

         E comeu-os.

         Mas eram os filhos da coruja. Ao regressar à toca, a triste mãe chorou amargamente o desastre e foi justar contas com a rainha das aves.

         – Quê? – disse esta, admirada. – Eram teus filhos aqueles mostrenguinhos? Pois, olha, não se pareciam nada com o retrato que deles me fizeste…

 

         Para retrato de filho ninguém acredite em pintor pai. Lá diz o ditado: quem o feio ama, bonito lhe parece.

                                                           *****

            – Para mim, vovó – comentou Narizinho –, esta é a rainha das fábulas. Nada mais verdadeiro. Para os pais os filhos são sempre uma beleza, nem que sejam feios como os filhos da coruja.

            – E esta fábula se aplica a muita coisa, minha filha. Aplica-se a tudo o que é produto nosso. Os escritores acham ótimas todas as coisas que escrevem, por piores que sejam. Quando um pintor pinta um quadro, para ele o quadro é sempre bonitinho. Tudo quanto nós fazemos é “filho de coruja”.

            – Mostrengo ou monstrengo, vovó? – quis saber Pedrinho. – Vejo essa palavra escrita de dois jeitos.

             – Os gramáticos querem que seja mostrengo – coisa de mostrar: mas o povo acha melhor monstrengo – coisa monstruosa, e vai mudando. Por mais que os gramáticos insistam na forma “mostrengo”, o povo diz “monstrengo”.

            – E quem vai ganhar essa corrida, vovó?

            – Está claro que o povo, meu filho. Os gramáticos acabarão se cansando de insistir no “mostrengo” e se resignarão ao “monstrengo”.

            – Pois eu vou adotar o “monstrengo” – resolveu Pedrinho. – Acho mais expressivo.

 

04 – A rã e o boi

         Tomavam sol à beira de um brejo uma rã e uma saracura. Nisto chegou um boi, que vinha para o bebedouro:

         – Quer ver – disse a rã – como fico do tamanho deste animal?

         – Impossível, rãzinha. Cada qual como Deus o fez.

         – Pois olhe lá! – retorquiu a rã estufando-se toda. – Não estou “quase” igual a ele?

         – Capaz! Falta muito, amiga.

         A rã estufou-se mais um bocado.

         – E agora?

         – Longe ainda!…

         A rã fez novo esforço.

         – E agora?

         – Que esperança!…

         A rã, concentrando todas as forças, engoliu mais ar e foi-se estufando, estufando, até que, plaf!, rebentou como um balãozinho de elástico.

         O boi, que tinha acabado de beber, lançou um olhar de filósofo sobre a rã moribunda e disse:

 

         – Quem nasce para 10 réis não chega a vintém.

                                                           *****

            – Não concordo! – berrou Emília. – Eu nasci boneca de pano, muda e feia, e hoje sou até ex-marquesa. Subi muito. Cheguei a muito mais que vintém. Cheguei a tostão…

            – Isso não impede que a fábula esteja certa, Emília, porque os fabulistas escrevem as fábulas para as criaturas humanas e não para criaturas inumanas como você. Você é “gentinha”, não é bem gente.

            Emília fez um muxoxo de pouco-caso.

            – E “passo” isso de ser gente humana! Maior sem-gracismo não conheço…

            – Cuidado, Emília! – disse Narizinho. – De repente você estufa demais e acontece como no caso da rã… E sabe o que sai de dentro de você, se arrebentar?

            – Estrelas! – berrou Emília.

            – Sai um chuveiro de asneirinhas…

            Emília pôs-lhe a língua.

 

05 – O reformador do mundo

         Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de pôr defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.

– Asneiras, Américo?

         – Pois então?!… Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule de uma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?

         Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

         – Mas o melhor – concluiu – é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

         E Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira. 

         Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!

         De repente, no melhor da festa, plaf!, uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.

         Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão malfeito assim.

         E segue para casa refletindo:

         – Que espiga!… Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-Pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

         E Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida afora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza.

                                                           *****

            – Pois esse Américo era bem merecedor de que a abóbora lhe esmagasse a cabeça de uma vez – berrou Emília.   – Eu, se fosse a abóbora, moía-lhe os miolos…

            – Por quê?

            – Porque a natureza anda precisadíssima de reforma. Tudo torto, tudo errado… Um dia eu ainda agarro a natureza e arrumo-a certinha, deixo-a como deve ser.

            Todos se admiraram daquela audácia. Emília continuou:

            – Querem ver um erro absurdo da natureza? Essa coisa do tamanho… Para que tamanho? Para que quer um elefante um corpão enorme, se podia muito bem viver e ser feliz com um tamanhinho de pulga? Que adianta aquele beiço enorme de Tia Nastácia? Tudo errado – e o maior dos erros é o tal tamanho.

            – E quando vai você reformar a natureza, Emília?

            – Um dia. No dia em que me pilhar aqui sozinha!…

 

06 – A gralha enfeitada com penas de pavão

         Como os pavões andassem em época de muda, uma gralha teve a ideia de aproveitar as penas caídas.

         – Enfeito-me com estas penas e viro pavão!

         Disse e fez. Ornamentou-se com as lindas penas de olhos azuis e saiu pavoneando por ali afora, rumo ao terreiro das gralhas, na certeza de produzir um maravilhoso efeito.

         Mas o trunfo lhe saiu às avessas. As gralhas perceberam o embuste, riram-se dela e enxotaram-na à força de bicadas.

          Corrida assim dali, dirigiu-se ao terreiro dos pavões pensando lá consigo:

         – Fui tola. Desde que tenho penas de pavão, pavão sou, e só entre pavões poderei viver.

         Mau cálculo. No terreiro dos pavões coisa igual lhe aconteceu. Os pavões de verdade reconheceram o pavão de mentira e também a correram de lá sem dó.

         E a pobre tola, bicada e esfolada, ficou sozinha no mundo. Deixou de ser gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o desprezo de outros.

 

            Amigos: lé com lé, cré com cré.

                                                           *****

            – Esta fábula é bem boazinha – disse Dona Benta. – Quem pretende ser o que não é acaba mal. O Coronel Teodorico vendeu a fazenda, ficou milionário e pensou que era um homem da alta sociedade, dos finos, dos bem-educados. E agora? Anda de novo por aqui, sem vintém, mais depenado que a tal gralha. Por quê? Porque quis ser o que não era.

            – Isso não, vovó! – objetou Pedrinho. – Ele ficou rico e quis levar a vida de rico. Só que não teve sorte.

            – Não, meu filho. O meu compadre apenas se encheu de dinheiro – não ficou rico. Só enriquece quem adquire conhecimentos. A verdadeira riqueza não está no acúmulo de moedas – está no aperfeiçoamento do espírito e da alma. Qual o mais rico – aquele Sócrates que encontramos na casa de Péricles ou um milionário comum?

            – Ah, Sócrates, vovó! Perto dele o milionário comum não passa de um mendigo.

             – Isso mesmo. A verdadeira riqueza não é a do bolso, é a da cabeça. E só quem é rico de cabeça (ou de coração) sabe usar a riqueza material formada por bens ou dinheiro. O compadre pretendeu ser rico. Enfeitou-se com as penas de pavão do dinheiro e acabou mais depenado que a gralha. Aprenda isso…

            – E que quer dizer esse “lé com lé, cré com cré”? – perguntou Narizinho.

            – Isso é o que resta de uma antiga expressão portuguesa que foi perdendo sílabas como a gralha perdeu penas: “Leigo com leigo, clérigo com clérigo”. Em vez de clérigo, o povo dizia “crérigo”. Ficaram só as primeiras sílabas das duas palavras.

 

07 – O rato da cidade e o rato do campo

         Certo ratinho da cidade resolveu banquetear um compadre que morava no mato. E convidou-o para o festim, marcando lugar e hora.

         Veio o rato da roça, e logo de entrada muito se admirou do luxo de seu amigo. A mesa era um tapete oriental, e os manjares eram coisa papa-fina: queijo-do-reino, presunto, pão-de-ló, mãe-benta. Tudo isso dentro de um salão cheio de quadros, estatuetas e grandes espelhos de moldura dourada.

         Puseram-se a comer.

         No melhor da festa, porém, ouviu-se um rumor na porta. Incontinênti o rato da cidade fugiu para o seu buraco, deixando o convidado de boca aberta.

         Não era nada, e o rato fujão logo voltou e prosseguiu no jantar. Mas ressabiado, de orelha em pé, atento aos mínimos rumores da casa.

         Daí a pouco, novo barulhinho na porta e nova fugida do ratinho.

         O compadre da roça franziu o nariz.

         – Sabe do que mais? Vou-me embora. Isto por aqui é muito bom e bonito mas não me serve. Muito melhor roer o meu grão de milho no sossego da minha toca do que me fartar de gulodices caras com o coração aos pinotes. Até logo.

         E foi-se.

                                                           *****

            – Está certo! – disse Tia Nastácia que havia entrado e parado para ouvir. – Nunca me hei de esquecer do que passei lá na Lua quando estive cozinhando para São Jorge e ouvia os urros daquele dragão. Meu coração pulava no peito. Só sosseguei quando me vi outra vez aqui no meu cantinho…

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