Monteiro Lobato

Memórias da Emília

 Capítulos 1, 2 e 3

 

1 – Emília resolve escrever suas Memórias. As dificuldades do começo.

             De tanto Emília falar em “minhas Memórias”, uma vez Dona Benta perguntou:

            – Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias?

            – Memórias são a história da vida da gente, com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte.

            – Nesse caso – caçoou Dona Benta -, uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre…

            – Espere – disse Emília. – O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então para; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado.

            – E as suas Memórias vão ser assim?

             Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras têm de ser estas: “E então morri…”, com reticências. Mas é peta. Escrevo isso, pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri. Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura, da dura – ali na batata, como diz Pedrinho.

            Dona Benta sorriu.

            – Verdade pura! Nada mais difícil do que a verdade, Emília.

            – Bem sei – disse a boneca. – Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura.

            Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com ideias tão filosóficas.

            – Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: “Que é a verdade?”, ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.

            – Pois eu sei! – gritou Emília. – Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.

            Dona Benta calou-se, a refletir naquela definição, e Emília, no maior assanhamento, correu em busca do Visconde de Sabugosa. Como não gostasse de escrever com a sua mãozinha, queria escrever com a mão do Visconde.

            – Visconde – disse ela -, venha ser meu secretário. Veja papel, pena e tinta. Vou começar as minhas Memórias.

            O sabuguinho científico sorriu.

            – Memórias! Pois então uma criatura que viveu tão pouco já tem coisas para contar num livro de memórias? Isso é para gente velha, já perto do fim da vida.

            – Faça o que eu mando e não discuta. Veja papel, pena e tinta.

            O Visconde trouxe papel, pena e tinta. Sentou-se. Emília preparou-se para ditar. Tossiu. Cuspiu e engasgou. Não sabia como começar – e para ganhar tempo veio com exigências.

            – Esse papel não serve, Senhor Visconde. Quero papel cor do céu com todas as suas estrelinhas. Também a tinta não serve. Quero tinta cor do mar com todos os seus peixinhos. E quero pena de pato, com todos os seus patinhos.

            O Visconde ergueu os olhos para o teto, resignado. Depois falou; fez-lhe ver que tais exigências eram absurdas; que ali no sítio de Dona Benta não havia patos, nem o tal papel, nem a tal tinta.

            – Então não escrevo! – disse Emília.

            – Sua alma, sua palma – murmurou o Visconde. – Se não escrever, melhor para mim. É boa!…

            Emília, afinal, concordou em escrever as Memórias naquele papel da casa, com pena comum e tinta de Dona Benta. Mas jurou que havia de imprimi-las em papel cor do céu, tinta cor do mar e pena de pato.

            O Visconde disparou na gargalhada.

            – Imprimir com pena de pato! É boa!… Imprime-se com tipos, não com penas.

            – Pois seja – tornou Emília. – Imprimirei com tipos de pato.

            O Visconde ergueu novamente os olhos para o forro, suspirando.

            Estavam os dois fechados no quarto dos badulaques. Servia de mesa um caixãozinho, e de cadeira um tijolo. Emília passeava de um lado para outro, de mãos às costas. Ia ditar.

            – Vamos! – disse ela depois de ver tudo pronto. – Escreva bem no alto do papel: “Memórias da Marquesa de Rabicó”. Em letras bem graúdas.

            O Visconde escreveu:

MEMÓRIAS DA MARQUESA DE RABICÓ

            – Agora escreva: Capítulo Primeiro.

            O Visconde escreveu e ficou à espera do resto.

            Emília, de testinha franzida, não sabia como começar. Isso de começar não é fácil. Muito mais simples é acabar. Pinga-se um ponto final e pronto; ou então escreve-se um latinzinho: FINIS. Mas começar é terrível. Emília pensou, pensou, e por fim disse:

            – Bote um ponto de interrogação; ou, antes, bote vários pontos de interrogação. Bote seis…

            O Visconde abriu a boca.

            – Vamos, Visconde. Bote aí seis pontos de interrogação – insistiu a boneca. – Não vê que estou indecisa, interrogando-me a mim mesma?

            E foi assim que as “Memórias da Marquesa de Rabicó” principiaram de um modo absolutamente imprevisto:

Capítulo Primeiro ???????

            Emília contou os pontos e achou sete.

            – Corte um – ordenou.

            O Visconde deu um suspiro e riscou o último ponto, deixando só os seis encomendados.

            – Bem – disse Emília. – Agora ponha um… um… um…

            O Visconde escreveu três uns, assim: 1,1,1. Emília danou.

            – Pedacinho de asno! Não mandei escrever nada. Eu ainda estava pensando. Eu ia dizer que escrevesse um ponto final depois dos seis de interrogação.

            O Visconde começou a assoprar e a abanar-se. Por fim disse:

            – Sabe que mais, Emília? O melhor é você ficar sozinha aqui até resolver definitivamente o que quer que eu escreva. Quando tiver assentado, então me chame. Do contrário a coisa não vai.

            – É que o começo é difícil, Visconde. Há tantos caminhos que não sei qual escolher. Posso começar de mil modos. Sua idria qual é?

            – Minha ideia – disse o Visconde – é que comece como quase todos os livros de memórias começam – contando quem está escrevendo, quando esse quem nasceu, em que cidade etc. As aventuras de Robinson Crusoé, por exemplo, começam assim: “Nasci no ano de 1632, na cidade de York, filho de gente arranjada etc”.

            – Ótimo! – exclamou Emília. – Serve. Escreva: Nasci no ano de… (três estrelinhas), na cidade de… (três estrelinhas), filha de gente desarranjada…

            – Por que tanta estrelinha? Será que quer ocultar a idade?

            – Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira. Continue escrevendo: E nasci duma saia velha de Tia Nastácia. E nasci vazia. Só depois de nascida é que ela me encheu de pétalas duma cheirosa flor cor de ouro que dá nos campos e serve para estufar travesseiros.

            – Diga logo macela, que todos entendem.

            – Bem. Nasci, fui enchida de macela que todos entendem e fiquei no mundo feito uma boba, de olhos parados, como qualquer boneca. E feia. Dizem que fui feia que nem uma bruxa. Meus olhos Tia Nastácia os fez de linha preta. Meus pés eram abertos para fora, como pés de caixeirinho de venda. Sabe, Visconde, por que eles têm os pés abertos para fora?

            – Há de ser da raça – respondeu o Visconde.

            – Raça, nada. É o hábito de ficarem desde muito crianças grudados ao balcão vendendo coisas. Têm de abrir os pés para melhor se encostarem no balcão, e acabam ficando com os pés abertos para fora. Eu era assim. Depois fui melhorando. Hoje piso para dentro. Também fui melhorando no resto. Tia Nastácia foi me consertando, e Narizinho também. Mas nasci muda como os peixes. Um dia aprendi a falar.

            – Sei como foi a história – disse o Visconde. – Você engoliu uma falinha de papagaio.

            – Está errado! Narizinho teve dó do papagaio e não deixou que o matassem para tirar a falinha. Fiquei falante com uma pílula que o célebre Doutor Caramujo me deu. Narizinho conta que a pílula era muito forte de modo que fiquei falante demais. Assim que abri a boca, veio uma torrente de palavras que não tinha fim. Todos tiveram de tapar os ouvidos. E tanto falei que esgotei o reservatório. A fala então ficou no nível.

            – Tenha paciência, Emília – disse o Visconde. – Ficou muito acima do nível, porque a verdade é que você ainda hoje fala mais do que qualquer mulherzinha.

            – Mas não falo pelos cotovelos, como elas. Só pela boca. E falo bem. Sei dizer coisas engraçadas e até filosóficas. Inda há pouco Dona Benta declarou que eu tenho coisas de verdadeiro filósofo. Sabe o que é filósofo, Visconde?

            O Visconde sabia, mas fingiu não saber. A boneca explicou:

            – É um bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando. Cada vez que digo uma coisa filosófica, o olho de Dona Benta fica parado e ela pensa, pensa…

            – Ficam pensando o quê, Emília?

            – Pensando que entenderam.

            O Visconde enrugou a testinha e quedou-se uns instantes de olho parado, pensando, pensando. Aquela explicação era positivamente filosófica.

            – E como sou filósofa – continuou Emília – quero que minhas Memórias comecem com a minha filosofia da vida.

            – Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.

            – Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca.

            O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto.

            Emília riu-se. – Está vendo como é filosófica a minha ideia? O Senhor Visconde já está de olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu… A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.

            – E depois que morre? – perguntou o Visconde.

            – Depois que morre vira hipótese. É ou não é?

            O Visconde teve de concordar que era.

 

2 – O Visconde começa a trabalhar para Emília. História do anjinho de asa quebrada.

            Nesse ponto um urro veio distrair-lhes a atenção. Era Quindim, chamando Emília para uma prosa.

            – Escute, Visconde – disse ela. – Tenho coisas muito importantes a conversar com Quindim. Fique escrevendo. Vá escrevendo. Faça de conta que estou ditando. Conte as coisas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros.

            – A história do anjinho de asa quebrada serve? – indagou o Visconde.

            – Ótimo! Ninguém lá fora sabe o que aconteceu por aqui com o anjinho que cacei na Via Láctea. Conte isso e mais outras coisas. O que quiser. Vá contando, contando.

            – Mas assim as Memórias ficam minhas e não suas, Emília.

            – Não se incomode com isso. No fim dou um jeito; faço como na “Aritmética…”.

            Disse e saiu correndo.

            O Visconde ficou de pena no papel, a pensar, a pensar. Por fim começou:

O ANJINHO DE ASA QUEBRADA

            As crianças que leram Reinações de Narizinho com certeza também leram a Viagem ao céu, onde veem contadas as aventuras dos netos de Dona Benta, da Emília e também as minhas no país dos astros. Não recordarei, portanto, nada disso. Só direi que houve lá por cima tais estrepolias que os astrônomos da Europa vieram queixar-se a Dona Benta das brincadeiras que estavam perturbando a harmonia celeste. Dona Benta, então, nos chamou para baixo com um bom berro: “Desçam já daí, cambada!”.

            Descemos todos, e com grande espanto Dona Benta viu que Emília tinha trazido o anjinho de asa quebrada, que descobrira, muito triste da vida, lá entre as estrelas. Ninguém descreve o rebuliço que houve na casa. A vida parou. Os pintos ficaram sem quirera. A Vaca Mocha ficou sem palhas. O feijão queimou na panela. Ninguém queria saber de outra coisa senão ver, cheirar, apalpar e conversar com o anjinho.

            E havia razão para isso, porque jamais descera ao mundo uma criatura tão mimosa. É até difícil dar ideia da galanteza daquela florzinha das alturas. Muito louro, cabelos cacheados, olhos azuis, asas mais brancas que as do cisne. Como era lindo! Infelizmente uma das asas se partira no ossinho do encontro, o que o impedia de voar. Infelizmente para ele; para nós foi felizmente. Se não fosse o quebramento da asa, Emília não o pegaria e nós não teríamos o gosto de conhecer em pessoa aquele mimo dos céus.

            Uma criatura do céu não pode saber nada das coisas da terra, de modo que o anjinho se mostrou de uma ignorância absoluta de tudo quanto aqui por baixo a gente sabe até de cor. Teve de ir aprendendo com Emília, a professora.

            – “Árvore, sabe o que é?” – perguntava ela.

            E como o anjinho arregalasse os olhos azuis esperando a explicação, Emília vinha logo com uma das suas.

            – “Árvore – dizia – é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; que em vez de braços tem galhos; que em vez de unhas tem folhas; que em vez de andar falando da vida alheia e se implicando com a gente (como os tais astrônomos) dão flores e frutas. Umas dão pitangas vermelhas; outras dão laranjas doces ou azedas – e é destas que Tia Nastácia faz doces; outras, como aquela enorme ali (as lições eram sempre no pomar) dão umas bolinhas pretas chamadas jabuticabas. Vamos, repita: ja-bu-ti-ca-ba…”

            O anjinho atrapalhava-se e repetia errado: ja-ti-bu-ca-ba… fazendo Emília rolar de rir.    As perguntas do anjinho eram sempre de uma infinita ingenuidade. – “Mas por que essas tais árvores nunca saem do mesmo lugar?”

            – “Porque têm raízes – explicava a Emília. – Raiz é o nome das pernas tortas que elas enfiam pela terra adentro. Bem que querem andar, as pobres árvores, mas não conseguem. Só saem do lugarzinho em que nascem quando surge o machado.”

            – “Que animal é esse?”

            – “Machado é o mudador das árvores, muda a forma delas, fazendo que o tronco e os galhos fiquem curtinhos. Muda-lhes até o nome. Árvore machadada deixa de ser árvore. Passa a ser lenha. Lenha. Repita.”

            – “É algum deus esse machado tão poderoso assim?”

            Emília ria-se, ria-se…

            – “Deus, nada, burrinho! É antes um diabo malvadíssimo, mas diabo sem chifres, sem cauda, sem pés de cabra, sem cabeça, sem braços, sem nada. Só tem corte e cabo…”

            – “Que é cabo?”

            – “Cabo é uma perna só, por onde a gente segura. Faca tem cabo. Garfo tem cabo. Bule tem cabo (e bico também). Até os países têm cabo, como aquele famoso Cabo da Boa Esperança que Vasco da Gama dobrou; ou aquele Cabo Roque, da Guerra de Canudos, um que morreu e viveu de novo. Os exércitos também têm cabos. Tudo tem cabo, até os telegramas. Para mandar um telegrama daqui à Europa os homens usam o cabo submarino.”

            O anjinho ficava de boca aberta, sem entender coisa nenhuma.

            – “Então o ‘submar’ também tem cabo?”

            – “Como não? E compridíssimos, que vão dum continente a outro.”

            – “E é por esses cabos que a gente pega no mar?”

            Emília ria-se, ria-se. O pobre anjinho não tinha ideia nenhuma das coisas da terra, porque sempre vivera no céu, lá nas nuvens. Emília era obrigada a explicar tudo, tudo…

            – “Oh – disse ela – você não imagina como é interessante a língua que falamos aqui! As palavras da nossa língua servem para indicar várias coisas diferentes, de modo que saem os maiores embrulhos. O tal cabo, por exemplo. Ora é isto, ora é aquilo. Há os cabos de faca, de bule, de panela, como eu já disse, que são as pontas por onde a gente pega nesses objetos. Há os cabos da geografia, que são terras que se projetam mar adentro. Há os cabos do exército, que são soldados. Há os cabos submarinos, que são uns fios de cobre compridíssimos por meio dos quais os homens passam telegramas dum continente a outro por dentro dos mares. E há um tal ‘dar cabo’ que é destruir qualquer coisa.”

            – “Mas por que é assim?”

            – “Para atrapalhar a gente. Eu penso que todas as calamidades do mundo vêm da língua. Se os homens não falassem, tudo correria muito bem, como entre os animais que não falam. As formigas e as abelhas, por exemplo. Esses bichinhos vivem na maior ordem possível, com suas comidinhas a hora e a tempo – e que comidas! O mel é uma perfeição que você nem sonha! Exatinho da cor de seus cabelos, mas sem cachos; em vez de cachos tem favos. E qual o segredo da felicidade desses animaizinhos? Um só: não falam. No dia em que derem de falar, adeus ordem, adeus paz, adeus mel! A língua é a desgraça dos homens na terra.”

            – “Se é assim, por que eles não cortam a língua?”

            Emília ria-se, ria-se.

            – “Cortar a língua? Essa palavra língua quer dizer duas coisas: um órgão da boca, onde está localizado o paladar e também a fala dos homens. Há línguas do Rio Grande, que vêm em latas e servem para comermos e há as línguas da falação – a língua latina, a grega, a portuguesa, a inglesa. Estas não servem para comer – só para armar bate-boca…”

            – “Que é isso?”

            – “Brigas sonoras. Antes de brigar com socos e tapas e tiros, as criaturas brigam com desaforos.”

            – “Que é desaforo?”

            – “Desaforo é fazer certos elogios a uma pessoa. Vou dar um exemplo. Temos por aqui um animal chamado cachorro ou cão, bicho de muito bons sentimentos, o mais amigo do homem. É tão dedicado e amoroso, que o consideram o símbolo da fidelidade. É o cão que guarda os quintais contra os homens ladrões. É o cão que descobre a caça no mato. É o cão que puxa os trenós nas regiões só de gelo. É no cão que o homem faz experiências de laboratório. O cão é um colosso. Pois bem. Quando um homem compara outro homem ao cão, dizendo ‘Tu és um cão’, o outro puxa faca. Desaforo é isso…”

            – “Não estou entendendo – murmurou o anjinho. – Se o cão é um animal com tais qualidades, chamar cão a um homem devia até ser uma honra.”

            – “Pois é coisa de puxar faca ou dar tiro. Outro exemplo. Há por aqui certo animal ainda mais precioso que o cão – a vaca. A maior maravilha de bondade e utilidade que existe no mundo é a vaca. Dá leite para os filhotes dos homens. Dá queijo. Dá manteiga. Além disso dá os bezerros, que crescem, viram bois e vão puxar os carros dos homens e os arados com que eles remexem a terra para fazer suas plantações. Dá a carne com que os homens fazem bifes e picadinhos. Dá o couro com que os homens se calçam. Dá o mocotó com que as cozinheiras preparam as geleias, um doce gostosíssimo. Dá os ossos com que se fazem botões e mil coisas.”

            – “Então é a maravilha das maravilhas!” – observou o anjinho, entusiasmado com a vaca.

            – “Se é! Tão maravilha que em certos países, como no Egito, a vaca era adorada, virou deusa. Além disso, a vaca é de uma docilidade infinita. Basta dizer que eu, que sou deste tamanhinho, faço o que quero da Vaca Mocha de Dona Benta. Aquele animalão me obedece em tudo – vai para lá, vem para cá, vira para a esquerda, vira para a direita – é só eu falar com ela. E de medo de mim não é, porque com uma chifrada a Mocha me joga longe. Por bondade apenas, por docilidade de gênio. Pois muito bem. A vaca é tudo isso que acabo de dizer e ainda muito mais. No entanto, se você comparar a mais suja negra da rua com uma vaca, dizendo: ‘Você é uma vaca’, a negra rompe num escândalo medonho e se estiver armada de revólver dá tiro…”

            – “Que coisa interessante!” – exclamou o anjinho, assombrado.

            – “E vice-versa – continuou Emília. – Há por aqui uns animais que são malvadíssimos, umas verdadeiras pestes, como a tal cobra, que tem veneno nos dentes e o tal tigre, que é estúpido e crudelíssimo. Todos os homens têm tamanho ódio às cobras e aos tigres que não podem ver um só sem o destruir imediatamente. Mas se num verso um poeta compara uma mulher a uma cobra, dizendo, por exemplo, que ela tem movimentos de serpente (serpente é o mesmo que cobra), a ‘elogiada’ rebola-se de gosto. E se um homem compara outro a um tigre, este outro sorri. Existiu na França um célebre Clemenceau que foi apelidado o Tigre. Pensa que ele puxou faca? Nada disso. Babava-se todo quando o tratavam de tigre. Mas fosse alguém tratá-lo de cão ou vaca!… Ah, vinha tiro na certa…”

            O anjinho ouvia, ouvia e ficava a cismar. Realmente, era-lhe impossível entender as coisas da terra.

            – “Todo o mal vem da língua – afirmava a boneca. – E para piorar a situação existem mil línguas diferentes, cada povo achando que a sua é a certa, a boa, a bonita. De modo que a mesma coisa se chama aqui de um jeito, lá na Inglaterra de outro, lá na Alemanha de outro, lá na França de outro. Uma trapalhada infernal, anjinho.”

            Quem ficava atrapalhado era o anjinho. Emília tinha um modo desnorteado de pensar. Assim, por exemplo, as suas célebres “asneirinhas”. Muitas vezes não eram asneiras, eram modos diferentes de encarar as coisas, como quando explicou ao anjinho o caso das frutas do pomar.

            – “Frutas são bolas que as árvores penduram nos ramos, para regalo dos passarinhos e das gentes. Dentro há caldos ou massas de todos os gostos. As maçãs usam massas. As laranjas usam caldo. E as pimentas usam um ardor que queima a língua da gente.”

            – “Então têm fogo dentro? Fogo é que queima.”

            Emília ria-se.

            – “Ah, anjinho! Você vai custar a compreender os segredos da língua humana. Este ‘queima’ é outro caso. Queimar é uma arte que só o fogo faz, mas quando uma coisa arde na língua nós dizemos que queima.”

            – “Mas queima mesmo?”

            – “Não queima, mas nós dizemos assim. Um ácido que pingamos na pele nós também dizemos que queima. Uma loja que está em liquidação nós dizemos que está ‘queimando’ as suas mercadorias. No brinquedo do esconde-esconde, quando o que está de olhos vendados chega perto do escondido, nós dizemos que está ‘queimando’.”

            – “Então… então… então – dizia o anjinho – a trapalhada deve ser medonha.”

            Emília ria-se, ria-se.

            – “Eu já estive no País da Gramática, onde todos os habitantes são palavras. E um dia hei de contar por miúdo como a Gramática lida com elas e consegue dar ordem ao pensamento.”

            – “Dar ordem não é mandar uma pessoa fazer uma coisa?”

            – “É e não é. Às vezes é, outras vezes não é. Dar ordem pode ser mandar fazer uma coisa e também pode ser botar cada coisa no seu lugar.”

            – “E como a gente sabe quando é de um jeito ou de outro?”

            – “Pelo sentido.”

            – “E que é sentido?”

            Emília desanimou. Não há nada mais difícil do que ensinar anjinhos.

            – “Escute cá, Flor. Quem entende bem disto de línguas e gramáticas é o Quindim. Tome umas aulas com ele.”

            – “Que é aula?”

            Emília saiu correndo, senão ficava louca…

 

3 – A história do anjinho corre mundo. O Rei da Inglaterra manda ao sítio de Dona Benta um navio cheio de crianças.

            As conversas de Emília com o anjinho não tinham fim, e por mais que ela explicasse as coisas da terra ele cada vez as entendia menos. Uma terrível embrulhada foi se formando em sua cabecinha.

            Enquanto isso as duas velhas tratavam-lhe da asa quebrada com unguentos e emplastros. Emília não gostou daquilo.

            – “Se o anjinho sarar – disse ela -, é bem possível que voe e fuja daqui, e como é?”

            – “Não voa, não! – sossegou Tia Nastácia, que tinha muita prática de criaturas que voam -, galinhas, marrecos e patos. – Corto a ponta de uma asa dele e quero ver.”

            A presença do anjinho no sítio foi causa de muitas brigas, porque a boneca se considerava dona dele. Ela o descobrira: logo, era seu. Daí os terríveis pegas com Pedrinho e Narizinho.

            – “Ela está monopolizando o anjo, vovó! – queixava-se a menina. – Não o larga, atropela o dia inteiro o coitadinho com as tais filosofias da vida. Eu, se fosse a senhora, tomava o anjinho dela.”

            Mas Dona Benta achava graça naquilo e ia deixando.

            A história do anjinho começou a correr mundo. Toda gente das redondezas veio vê-lo. Os jornais deram notícias. O rádio e o telégrafo transmitiram essas notícias para todos os países. E de tal modo a novidade se espalhou que as crianças do mundo inteiro ficaram assanhadíssimas para conhecer o anjinho. Queriam à viva força vir ao sítio brincar com ele.

            Mas virem como, se as crianças do mundo são milhões? Os pais e as mães explicavam aos filhos que era o maior dos absurdos pensarem em semelhante coisa. Acontece, porém, que quando uma criança quer vivamente uma coisa e não consegue dá de emagrecer, fica doentinha, cheia de bichas. E as crianças do mundo inteiro começaram a ficar doentinhas e lombriguentas de tanto desejo de virem ao sítio.

            A situação tornou-se tão grave que o Rei da Inglaterra, o Presidente Roosevelt, o Führer da Alemanha, o Duce da Itália, o Imperador do Japão e o Negus da Etiópia se reuniram em conferência para tratar do assunto. Depois de muita discussão ficou assentado que todas as crianças do mundo seriam levadas ao sítio de Dona Benta. Mas por partes. Primeiro as de um país; depois as de outro – e assim até o último.

            Para saber quais iriam primeiro, foi preciso tirar a sorte. O Presidente Roosevelt escreveu o nome de cada país num pedacinho de papel e os botou, bem dobrados, dentro do chapéu de dois bicos do Imperador do Japão. Em seguida pediu ao Negus, que era o mais velho, para tirar um. A sorte favoreceu as crianças da Inglaterra.

            Quando saiu nos jornais a notícia desse fato, foi um hurra imenso no Império Britânico e uma choradeira ainda maior nos outros países.

            O Rei da Inglaterra, então, mandou preparar um grande navio cheio de doces, brinquedos e livros de figuras, e nele embarcou a criançada inglesa sob as ordens de um dos seus melhores almirantes – o Almirante Brown. Ele iria levá-las ao sítio de Dona Benta.

            Viva! Viva! Viva! A criançada inglesa, no dia marcado para o embarque, encheu o enorme transatlântico Wonderland, na maior algazarra e pinoteamento. Ficou aquilo que nem um enorme viveiro de periquitos louros. O pobre Almirante levava as mãos aos ouvidos, murmurando:

            – “Será possível que este barulho dure até chegarmos ao sítio de Dona Benta?”

            Quase ficou doido o pobre homem, porque, como era a única gente grande de bordo (sem contar os marinheiros da tripulação), tinha de atender a tudo, apaziguar as terríveis brigas que a cada instante surgiam, por causa de um doce maior que outro ou de um livro de figuras que várias crianças queriam ver ao mesmo tempo.

            Felizmente não houve temporal durante a viagem, de modo que as crianças não enjoaram, chegando ao Brasil em perfeito estado.

            O momento da invasão do sítio de Dona Benta foi importante. A boa senhora não fora avisada, de modo que teve a maior surpresa de toda a sua longa vida de mais de sessenta anos.

            Estava Dona Benta na varanda, remendando umas meias furadas de Pedrinho, quando viu lá longe uma poeira na estrada.

            – “Nastácia – gritou ela -, traga o meu binóculo. Estou vendo uma poeira muito esquisita lá longe. Será boiada?”

            A negra trouxe o binóculo. De nada valeu. Pedrinho havia tirado os vidros para fazer aquele célebre telescópio com que espiou o dragão de São Jorge na Lua. Dona Benta, que ignorava isso, olhou pelos canudos vazios e ficou na mesma.

            – “Minha vista está tão cansada que nem com este binóculo, que é excelente, consigo enxergar melhor. Não está vendo uma poeirada, Nastácia?”

            – “Estou, sim, Sinhá. Mas boi não é. Por este caminho nunca passa boiada. Coisas dos meninos, Sinhá vai ver. Alguma nova reinação com o tal pó de pirlimpimpim. Eles não dormem…”

            Nisto apareceu Narizinho, que estivera no pomar ensinando Flor das Alturas (nome do anjo) a descascar tangerinas.

            – “Vovó! – gritou ela assanhadíssima. – Vem vindo um bando enorme de crianças! Juro que souberam lá fora do nosso anjinho e vêm brincar com ele…”

            – “Credo! – exclamou Tia Nastácia. – Se aquilo tudo é criançada, onde vamos parar, Sinhá? Cada um é uma fome – e onde vou arranjar bolinho para tanta fome? Nem uma barrica inteira de farinha dá para contentar metade do povaréu que vem vindo…”

            Dona Benta começou a sentir palpitações do coração.

            – “Não se aflija, vovó – disse a menina. – Havemos de dar um jeito. A senhora bem sabe que sabemos dar jeito a tudo.”

            Disse e foi correndo conferenciar com Pedrinho e Emilia. Encontrou-os no alto da pitangueira, espiando a estrada.

            – “Estamos fritos, Narizinho! – gritou o menino lá do galho. – Vem um tal bando de crianças, que se entenderem de nos furtar o anjo não haverá meio de resistir, furtam mesmo…”

            Pedrinho desceu da árvore. A ideia de que a criançada de fora vinha raptar o anjinho enchia-o de apreensões. Criança é criança. Isoladas ainda passam, mas em bandos são os bichos mais daninhos do mundo.

            – “E agora? – dizia ele. – Que havemos de fazer?”

            Emilia meteu o bedelho.

            – “Só há um jeito – disse ela -: escondermos o anjinho no oco da figueira e vestirmos o Visconde de anjo. Se a criançada o raptar, raptará um anjo falso – o verdadeiro ficará aqui.”

            Pedrinho e Narizinho entreolharam-se.

            – “Não está má a ideia da Emilia – disse o menino. – Tenho aquelas asas do gavião que o Compadre Teodorico matou outro dia. Temos a camisola nova que vovó fez para a Emilia. Com isso e mais alguma coisa faremos do Visconde um anjo bem regular.”

            – “Mas anjo tem asas brancas – objetou a menina -; as do gavião são pintadinhas.”

            – “Com farinha de trigo eu faço asa de qualquer cor ficar branca como neve – resolveu Pedrinho. – É isso. Vamos! Corra, Emilia, e pegue o Visconde. E você, Narizinho, veja barbante para amarrar as asas e o resto. Não temos um minuto a perder.”

            Nunca se viu no sítio correria tamanha. O anjinho verdadeiro, muito assustado sem compreender coisa nenhuma, foi escondido por Pedrinho no oco da figueira.

            – “Fique aqui muito quietinho. Não se mexa, não faça o menor barulho.”

            – “Tenho medo deste escuro – disse ele. – Aqui há ratos de asas.”

            – “E lá há raptores, que vêm vindo em bando enorme. – Antes ratos do que raptores. Fique quietinho, senão tudo está perdido.”

            Largou-o lá bem no fundo do oco e voltou correndo. Narizinho já trouxera as asas do gavião, barbante e a camisola nova da Emília. Só faltava eu, Visconde.

            – “Depressa, Emília!” – gritou o menino.

            – “Ele está resistindo – respondeu de longe a boneca. – Diz que não tem vocação para anjo…”

            – “Traga-o à força! Depressa! Não há tempo a perder.”

            Emília puxou-me pelo braço e eles me agarraram, me enfiaram na camisola, me pregaram as asas e polvilharam tudo com uma nuvem de farinha de trigo. Fiquei um anjo esquisitíssimo, mas anjo.

            – “Muito bem – disse Pedrinho, afastando-se para apreciar o efeito. – Parece um fantasma, mas serve. Agora vou pô-lo naquele galho da pitangueira. Assim todos poderão vê-lo e ninguém poderá pegá-lo. Ficando embaixo, os inglesinhos o espandongam num minuto. Criança é o diabo.”

            Fui então enganchado numa forquilha da pitangueira, onde fiquei suspirando. Era impossível imaginar-se anjo mais triste e cômico. As asas foram arrumadas com tanta pressa que uma logo pendeu.

            – “Não faz mal – disse Pedrinho. – Todos sabem que o anjinho tem uma asa quebrada. Escute, Visconde: saiba comportar-se como anjo, está entendendo? Cruze os braços no peito, e quando as crianças chegarem faça carinha de riso celestial, com os olhos erguidos. E não se meta a falar. Quem fala somos nós, aqui embaixo.”

            Narizinho, que subira à pitangueira, berrou lá de cima:

            – “Estão chegando, Pedrinho! Quase na porteira já. É hora de ir recebê-los.”

            Pedrinho foi. Trepou à porteira e ficou à espera. À frente do bando de crianças vinha um velho fardado, de grande chapéu de dois bicos na cabeça. A criançada parou. O velho adiantou-se. Fez uma saudação e disse:

            – “Senhor, a notícia da viagem ao céu que os netos de Dona Benta fizeram chegou até nós lá na Inglaterra, e Sua Majestade o Rei Eduardo VII houve por bem permitir que as crianças inglesas, comandadas por mim, que sou o Almirante Brown, viessem visitar o anjo que a Senhora Marquesa de Rabicó trouxe da Via Láctea.”

            Pedrinho correspondeu à saudação do Almirante e disse:

            – “Temos muita honra em receber no sítio de vovó as crianças inglesas comandadas pelo ilustre Almirante Brown. Estamos, entretanto, muito receosos de que no meio de tanta criança venham alguns elementos perversos, que nos queiram fazer mal, raptando o anjinho. Em vista disso resolvemos só dar entrada a essas crianças se por acaso o Senhor Almirante nos entregar um refém.”

            Aquelas palavras, ditas em tom firme, aborreceram o velho Almirante, que não havia pensado em semelhante hipótese.

            – “A sua desconfiança, senhor – disse ele -, nos ofende. Os inglesinhos que trago são todos da mais fina educação.”

            – “Sei disso – tornou Pedrinho. – Mas como pode o Senhor Almirante provar que entre eles não se acha oculto algum malfeitor? Eis por que resolvemos exigir um refém, sem que isso queira significar a menor ofensa ao Rei da Inglaterra, nem a Vossa Honra, nem a toda esta criançada.”

            O Almirante pensou por uns instantes e disse:

            – “Muito bem. Compreendo tudo e aceito as condições propostas. Eu mesmo ofereço-me. Ficarei na sala, conversando com a sua excelentíssima avó, enquanto o meu bandinho de crianças se diverte no pomar.”

            – “Perfeitamente, Senhor Almirante – disse Pedrinho. – Está aceita a sua proposta. Vou abrir a porteira.”

            Disse e, descendo da porteira, abriu-a.

            – “Podem entrar…”

            Aquilo foi o mesmo que erguer a portinhola duma tulha de café bem cheia. Rolou criança para dentro do terreiro como rolam grãos de café da tulha aberta. Lindas todas, de todos os louros possíveis e de um corado de maçã ou pêssego. Olhos azuis, pele alvíssima. Como são lindas as crianças inglesas! Para transformá-las em anjos bastaria colar nas costas de cada uma duas asinhas.

            Enquanto a onda de crianças inundava o terreiro, Narizinho, lá no pomar, me fazia as últimas recomendações, a mim, Visconde.

            – “E comporte-se, hein? – dizia ela. – Mãos cruzadas no peito, olhos no céu – assim… E levante um pouco a asa esquerda… Está muito caída. Assim…”

            Emília veio com um caixão vazio, que colocou rente ao tronco da pitangueira.

            – “Para que isso, Emília?” – indagou a menina.

            – “Para guardar os presentes. Impossível que não tragam muitos presentes. Ninguém visita anjo com as mãos abanando.”

            Lá no oco o anjinho tremia de medo. Um dos tais “ratos de asas” viera pendurar-se bem sobre sua cabeça. Mesmo assim o anjinho não deu o menor grito, nem fez o menor movimento. Era obedientíssimo.

            Dona Benta estava na varanda, muito bonitona no seu vestido preto de babados. Pedrinho conduziu para lá o Almirante.

            – “Vovó – disse ele – tenho a honra de apresentar o Senhor Almirante Brown, que Sua Majestade o Rei da Inglaterra mandou comandando as crianças que morriam de vontade de brincar com o anjinho. O Almirante concordou em ficar como refém aí na sua sala.”

            Dona Benta empertigou-se toda e respondeu:

            – “Tenho imenso orgulho em conhecer Vossa Honra, Senhor Almirante Brown. Só não estou entendendo essa história de refém a que meu neto acaba de referir-se…”.

            Pedrinho explicou rapidamente que era uma garantia contra qualquer depredação que as crianças fizessem no sítio.

            – “Que absurdo, meu filho! – exclamou Dona Benta. – Só me admiro de o Almirante não ter-se magoado com uma desconfiança dessa ordem. A honra altíssima que nos faz o Rei da Inglaterra é a maior com que poderíamos sonhar, e se você, Pedrinho, mostrou desconfiança, a ponto de obrigar o Almirante Brown a oferecer-se como refém, bem triste ideia ficará ele fazendo da nossa hospitalidade…”

            – “Tudo isso é muito lindo, vovó – respondeu Pedrinho -, mas a senhora bem sabe como são crianças. Podem revoltar-se contra o Almirante e nos furtar o anjinho, e como é? Ele é um e elas são muitas.”

            O velho inglês sorriu.

            – “Se fosse assim, meu menino, não poderia haver exércitos no mundo, nem esquadras. Os generais e almirantes, que comandam exércitos e esquadras enormes, não os mantêm na disciplina por meio da força física – sim da força moral. Com a força moral, um homem sozinho domina milhões.”

            – “Ele é bobinho, Almirante – explicou Dona Benta. – Não faça caso do que disse. Vá entrando sem a menor cerimônia, porque esta casa é sua. E a criançada que vá com Pedrinho e brinque à vontade. Laranjas temos bastante.”

            O Almirante subiu os seis degraus da varanda, com o chapéu de dois bicos debaixo do braço. Apertou a mão de Dona Benta com tal força que ela fez uma careta.

            – “Queira sentar-se, Senhor Almirante – disse a boa velha disfarçando a dor. E para dentro: – Nastácia, veja depressa um cafezinho.”

            – “Eu preferiria um uísque, minha senhora – murmurou o Almirante, que estava morto de sede, mas sede de inglês, dessas que só uísque mata.”

            Não havendo uísque na casa, Dona Benta fez sinal a Pedrinho para que mandasse buscar na venda do Elias Turco uma garrafa. E depois, para o ilustre personagem:

            – “Creia, Almirante, que esta sua visita em nada me espanta. E sabe por quê? Porque estou acostumada aos maiores prodígios do mundo. O que acontece neste sítio, meu Deus do céu!, nem queira saber, Almirante! No começo está claro que muito nos assustávamos, eu e Tia Nastácia. Mas hoje… As aventuras dos meus netos não têm conta. Até pelo céu já andaram – pela Via Láctea, imagine…”

            – “Sei disso, minha senhora. Os jornais de Londres trataram do caso dos astrônomos que aqui estiveram em comissão, e com o saudoso Rei Jorge V, que Deus haja, tive ensejo de conversar a respeito. Ele achava a Marquesa de Rabicó um serzinho muito interessante, embora um tanto shocking às vezes…”

            – “Pobre Rei Jorge! – suspirou Dona Benta. – Senti imensamente a morte sua. Que carga pesada não há de ser a do rei dum grande império! Eis uma vida que eu não invejo.”

            – “Nem eu – ajuntou o Almirante. – Prefiro comandar os meus cruzadores a reinar sobre o mundo.”

            – “E a Rainha Viúva, como vai indo? Mais consoladinha já?”

            – “Vai vivendo, minha senhora. O golpe foi terrível.”

            Dona Benta suspirou.

            – “Não valemos nada nesta vida, Almirante. Quando chega o nosso dia, o gancho da morte nos pesca, sejamos reis ou mendigos. Mas… parece que está bem cansado, Almirante…”

            – “Mais que cansado, minha senhora. Estou meio morto. É então brincadeira uma viagem destas, de duas semanas no mar, lidando com um carregamento de mil crianças endemoninhadas? Uf!…”

            – “Realmente! Eu aqui no sítio, com dois netos apenas, às vezes me vejo doida. São dois que valem por dois mil, tais as maluquices que inventam, ou as reinações, como eles dizem. Mas não faça cerimônia, Almirante. Tenho ali a minha redinha. Deite-se e tire um corte de sono.”

            O Almirante não esperou segundo convite. Acomodou-se como pôde na redinha de Dona Benta e foi fechando os olhos.

            Quando Tia Nastácia apareceu com a bandeja de café, ele roncava.

            – “Pssiu! Não o acorde… – sussurrou Dona Benta. – O Almirante está morto de canseira. Imagine que passou duas semanas no mar, lidando com mil crianças, isso da Inglaterra até aqui…”

            – “Credo! – exclamou a preta. – Esses ingleses têm cada uma!… Bem diz Seu Pedrinho que eles são ‘cêntrico’.”

            – “Excêntricos, Nastácia – corrigiu Dona Benta. – E a criançada? Como está se comportando lá no pomar?”

            – “Nem sei, Sinhá. Não espiei ainda – nem tenho coragem de espiar. Estou só imaginando os ‘horrores’…”

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