Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 56

 

50 – O lobo e o cordeiro

         Estava o cordeiro a beber num córrego, quando apareceu um lobo esfaimado, de horrendo aspecto.

         – Que desaforo é esse de turvar a água que venho beber? – disse o monstro arreganhando os dentes. – Espere, que vou castigar tamanha má-criação!…

         O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeu com inocência:

         – Como posso turvar a água que o senhor vai beber se ela corre do senhor para mim?

         Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com a resposta. Mas não deu o rabo a torcer.

         – Além disso – inventou ele –, sei que você andou falando mal de mim o ano passado.

         – Como poderia falar mal do senhor o ano passado, se nasci este ano?

         Novamente confundido pela voz da inocência, o lobo insistiu:

         – Se não foi você, foi seu irmão mais velho, o que dá no mesmo.

         – Como poderia ser o meu irmão mais velho, se sou filho único?

         O lobo, furioso, vendo que com razões claras não vencia o pobrezinho, veio com uma razão de lobo faminto:

         – Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu avô! E – nhoque! – sangrou-o no pescoço.

         Contra a força não há argumentos.

                                                                       *****   

            – Estamos diante da fábula mais famosa de todas – declarou Dona Benta. – Revela a essência do mundo. O forte tem sempre razão. Contra a força não há argumentos.

            – Mas há a esperteza! – berrou Emília. – Eu não sou forte, mas ninguém me vence. Por quê? Porque aplico a esperteza. Se eu fosse esse cordeirinho, em vez de estar bobamente a discutir com o lobo, dizia: “Senhor Lobo, é verdade, sim, que sujei a água deste riozinho, mas foi para envenenar três perus recheados que estão bebendo ali embaixo”. E o lobo, já com água na boca: “Onde?”. E eu, piscando o olho: “Lá atrás daquela moita!”. E o lobo ia ver e eu sumia…

            – Acredito – murmurou Dona Benta. – E depois fazia de conta que estava com uma espingarda e pum! na orelha dele, não é? Pois fique sabendo que estragaria a mais bela e profunda das fábulas. La Fontaine a escreveu de um modo incomparável. Quem quiser saber o que é obra-prima, leia e analise a sua fábula do lobo e do cordeiro…

 

51 – O cavalo e o burro

         Cavalo e burro seguiam juntos para a cidade. O cavalo, contente da vida, folgando com uma carga de apenas sessenta quilos, e o burro – coitado! – gemendo sob o peso de cento e vinte.

         Em certo ponto o burro parou e disse:

         – Não posso mais! Esta carga excede as minhas forças e o remédio é repartirmos o peso irmãmente, noventa quilos para cada um.

         O cavalo deu um pinote e relinchou uma gargalhada.

         – Ingênuo! Quer então que eu arque com noventa quilos quando posso tão bem continuar com sessenta? Tenho cara de tolo?

         O burro gemeu:

         – Egoísta! Lembre-se de que, se eu morrer, você terá de seguir com a sua carga e mais a minha. O cavalo pilheriou de novo e a coisa ficou por isso.

         Logo adiante, porém, o burro tropica, vem ao chão e rebenta. Chegam os tropeiros, maldizem da sorte e sem demora arrumam com sua carga sobre o cavalo egoísta. E como o cavalo refuga, dão-lhe de chicote em cima, sem dó nem piedade.

         – Bem feito! – exclamou um papagaio. – Quem o mandou ser mais burro que o pobre burro e não compreender que o verdadeiro egoísmo era aliviá-lo da carga em excesso? Tome! Gema dobrado agora…

                                               *****

            – Isto aqui – disse Dona Benta – vale como lição do que é a falta de solidariedade.

            – Oh, que comprimento de palavra! – exclamou Narizinho. – Que é solidariedade, vovó?

            – É o egoísmo bem compreendido, minha filha. É o reconhecimento de que temos de nos ajudar uns aos outros para que Deus nos ajude. Quem só cuida de si de repente se vê sozinho e não encontra quem o socorra. Aprendam.

            – A coisa é bonita – comentou a menina –, mas a palavra é feia e comprida demais. So-li-da-ri-e-da-de…

 

52 – O intrujão

          Um célebre patarata propalou pela cidade que era possível ensinar a ler aos burros. O rei soube do fato e o fez vir à sua presença.   

         – É verdade o que dizem aí? – Que é possível ensinar a ler a um burro?

         – Perfeitamente, Majestade. Comprometo-me a, em dez anos, transformar o mais burro dos burros num perfeito gramático.

         – E que é preciso para isso?

         – Em primeiro lugar, um burro. Em segundo lugar, outro burro… perdão!, uma pessoa que me garanta casa e comida pelo espaço de 10 anos.

         – Pois dou-te o burro e o mais – disse o rei. – Se, porém, ao fim desse prazo não me apresentares o burro lendo e escrevendo corretamente, ai de ti!…

         O charlatão saiu do palácio esfregando as mãos de contente. E como seus amigos, assustados, viessem criticar-lhe o absurdo daquele negócio e o fim desastroso que ele, charlatão, fatalmente teria, o nosso homem piscou velhacamente o olho, dizendo:

         – Que ingênuos são vocês! Em 10 anos, o rei, eu ou o burro, um de nós três não existe mais. E assim de qualquer maneira sairei ganhando. É ou não é? Todos concordaram que era…

                                               *****

            – Gostei! – berrou Emília. – Esse é dos meus. Fez um bom negócio e provou que o verdadeiro burro era Sua Majestade.

            – Mas se se passassem os 10 anos e nenhum dos três morresse? – perguntou Pedrinho.

            – Ah, ele não se apertava! Quando faltasse um dia para inteirar os 10 anos, dava um veneno ao burro e pronto! Ficava um burro só na história: Sua Majestade Burríssimo!…

 

53 – O homem e a cobra

         Certo homem de bom coração encontrou na estrada uma cobra entanguida de frio.

         – Coitadinha! Se fica por aqui ao relento, morre gelada. Tomou-a nas mãos, conchegou-a ao peito e trouxe-a para casa. Lá a pôs perto do fogão.

         – Fica-te por aqui em paz até que eu volte do serviço à noite. Dar-te-ei então um ratinho para a ceia.

         – E saiu. De noite, ao regressar, veio pelo caminho imaginando as festas que lhe faria a cobra.

         – Coitadinha ! Vai agradecer-me tanto…

         Agradecer, nada! A cobra, já desentorpecida, recebeu-o de linguinha de fora e bote armado, em atitude tão ameaçadora que o homem enfurecido exclamou:

         – Ah, é assim? É assim que pagas o benefício que te fiz? Pois espera, minha ingrata, que já te curo…

         E deu cabo dela com uma paulada.

         Fazei o bem, mas olhai a quem.

                                                                       *****

            – A senhora arranjou uma moralidade ao contrário da sabedoria popular, que diz: “Fazei o bem e não olheis a quem”.

            – Sim, minha filha. Esse fazer o bem sem olhar a quem é lindo – mas nunca dá muito certo. Aquele grande filósofo-educador da China…

            – Confúcio, já sei!… – gritou Pedrinho.

            – Ele mesmo – confirmou Dona Benta. – Pois Confúcio, que foi o maior filósofo prático da humanidade, disse uma coisa muito certa: “Tratai os bons com bondade e os maus com justiça”.

            Emília bateu palmas. – Pois então Confúcio concorda comigo. Meu ditado é: “Para os maus, pau!”. Justiça é pau.

 

54 –  O gato e a raposa

         Gato e raposa andavam a correr mundo, pilhando capoeiras e ninhos. Muito amigos, e volta e meia a raposa dava trela à gabolice.

         – Afinal de contas, meu caro, não és dos bichos mais bem-dotados pela natureza. Só tens um truque para escapar aos cães: trepar em árvore…

         – E é quanto me basta – respondeu o gato. – Vivo muito bem assim e não troco esta minha habilidade pela tua coleção inteira de manhas.

         A raposa sorriu. Ora o gato a desfazer dela, dona de cem manhas cada qual melhor! E recordou lá consigo que sabia iludir cães de mil maneiras, ora se fingindo morta, ora se escondendo nas folhas secas, ora disfarçando as pegadas, ora correndo em ziguezague. Recordou todos os seus truques clássicos. Enumerou-os. Chegou a contar noventa. E chegaria a contar cem se o rumor de uma acuação não viesse interromper-lhe os cálculos.

         – Está aí a cachorrada! – disse o gato, subindo por uma árvore acima. – Aplica lá os teus inumeráveis recursos, que o meu recurso único já está aplicado.

         A raposa, perseguida de perto, disparou como um foguete pelos campos, pondo em prática, um por um, todos os recursos de sua coleção. Foi tudo inútil. Os cães eram mestres; não lhe deram tréguas, inutilizaram-lhe as mais engenhosas manhas e acabaram pegando-a. Só então se convenceu – muito tarde!… – de que é preferível saber bem uma coisa só a saber mal e mal noventa coisas diversas.

                                                        *****

            – Eu, se fosse a senhora, vovó, trocava esta fábula por aquela outra – a tal do Pulo do Gato. O gato ensinou à onça todos os pulos menos um – o pulo de lado. E quando acabou a lição, a onça zás! – pulou em cima do gato para comê-lo. Mas o gato fugiu com o corpo – deu um pulo de lado. Muito desapontada, a onça disse: “Mas esse pulo você não ensinou”. E o gato, de longe: “E não ensino, porque esse é o pulo do gato”.

 

55 – A malícia da raposa

         O leão convidou a bicharia inteira para uma festa em seu palácio. O primeiro a aparecer foi o urso. Vendo a caverna cheia de ossos de caça, tresandante a carniça, tapou o nariz. O leão furioso atirou-se a ele.

         – Patife! Entrar em meu palácio de mão no nariz!… E matou-o.

         Logo em seguida aparece o macaco. Sente o mau cheiro, vê o urso por terra, compreende tudo e diz:

         – Que formoso palácio! Quanto asseio reina aqui! E como é perfumado o ar! Parece-me que estou num jardim maravilhoso, florido de lindas rosas!…

         O leão enfureceu-se de novo.

         – Estás caçoando, maroto? Estás brincando com o teu rei? Pois toma lá… – E matou-o com um tabefe.

         O terceiro convidado a vir foi a raposa. Como é espertíssima, ao ver o urso e o macaco mortos percebeu que na casa dos reis não é de bom aviso ser sincero demais nem lisonjeiro fora da conta. E preparou uma escapatória.

         – Então – exclamou o rei –, que achas do meu palácio?

         – Para falar a verdade – disse a raposa –, não posso dar opinião. Venho da luz do sol e pouco estou enxergando aqui dentro…

         – E o cheiro?

         – Também não posso ajuizar porque estou sem nariz – endefluxadíssima…

         E nada lhe aconteceu.

                                                        *****

            – Gostei, gostei! – exclamou a menina. – Está aqui uma das fábulas mais jeitosas. Desta vez a raposa merece um doce. Venceu a força do leão com a esperteza de uma resposta muito certa. Eu também perco o nariz quando apanho um resfriado.

 

56 – As razões do porco

         Lá ia para o mercado a carroça de um sitiante. Dentro, três animais: uma cabra, um carneiro e um leitão. Cabra e carneiro seguiam em silêncio, muito sossegados da vida. Já o porquinho, não. Inquieto, a suspirar, volta e meia espiava pelas frestas, cheio de apreensão. E quando avistou o mercado não se conteve: abriu a boca e berrou como se estivessem a sangrá-lo no coração.

         – Para que isso? – disse a cabra. – Também eu vou para a feira e no entanto a ninguém incomodo com esse berreiro descompassado.

         – Também assim penso – ajuntou o carneiro. – Vamos ser vendidos, quer dizer, vamos mudar de dono. É tolice lamuriar dessa maneira por coisa tão sem importância.

         O porquinho berrou ainda mais e por fim explicou-se:

         – É verdade, vamos ser vendidos os três. Mas tu, cabra, teu destino é dar leite; e tu, carneiro, tua função é produzir lã. Compreendo que seja indiferente para ambos que dês leite ou lã a este ou àquele. Mas eu – eu só presto para ser comido, e ir para o mercado não me é apenas mudar de dono, mas mudar de mundo. Vou para o açougue – coim, coim! Como então quereis que me conforme com a sorte e vá nesse sossego de cabra e nessa indiferença de carneiro? Tivésseis o meu destino e havíeis de berrar ainda mais forte… E continuou a botar a boca no mundo.

                                                        *****

            – Quem o manda ser carne? – comentou Emília. – Cabra é leite. Carneiro é lã.

            – Cabra e carneiro também são carne – disse Narizinho.

            – Em segundo lugar! Em primeiro lugar são leite e lã; só depois é que são carne. Mas o pobre porco é só carne, carne e mais carne. É lombo, é linguiça, é presunto, é chouriço, é pernil, é costeleta, é entrecosto, é tripa. O porco é carníssimo. Quando sai do chiqueiro, já sabe que não é para dar leite, como a cabra, nem dar lã, como o carneiro. E por isso berra e faz muito bem. Eu berrava o dobro…

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