Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 71, 72, 73, 74 e 75 (último)

 

 71 – Mal maior

         – O sol vai casar-se! – anunciou um bem-te-vi boateiro.

         – Viva o sol!

         – Viva? – exclamaram as rãs, assustadas. – Não diga isso, pelo amor de Deus… Um sol apenas já nos dá o que fazer. Seca os brejos e nos deixa às vezes a ponto de morrermos de sede. E é um só… Imaginem agora que se casa e, além do senhor sol, temos também de aturar dona sol e os sóis filhinhos… Será a maior das calamidades, porque então unicamente as pedras poderão resistir à fúria da família de fogo.

         Assim é. O mundo está bem equilibrado e qualquer coisa que rompa a sua ordem resulta em males para os viventes. Fique pois solteiro o sol e não enviúve quem é casado.

                                                        *****

            – Não gostei! – berrou Emília. – Se nada mudar, o mundo fica sempre na mesma e não há progresso.

            – Espere, Emília – disse Dona Benta. – O que a fábula quer dizer é que qualquer mudança nas coisas prejudica alguém.

            – Pode prejudicar um e fazer bem a dois – insistiu Emília. – As coisas não são tão simples como as fábulas querem. Est modus… como é aquele latim que a senhora disse outro dia, Dona Benta?

            – Est modus in rebus…     

            – Isso mesmo. Nos modos está o rebus…

            – Não, Emília. Esse latim quer dizer que em tudo há medidas.

            – Eu sei. É como nos verbos. Todos os verbos têm uma porção de modos. A gente também tem modos. As coisas têm modos.

            – Isso! Você agora pôs o dedo na significação desse latim. In rebus quer dizer “nas coisas”. Todas as coisas têm modos, ou medidas. Mas as fábulas não podem expor todos os modos das coisas – só expõem um, o principal, ou o mais frequente.

            – Por que não podem?

            – Porque ficariam compridas demais. Virariam tratados de filosofia…

 

72 – Tolice de asno

         Um asno pedantíssimo atormentava a paciência de um pobre burro de carroça, desses que reconhecem o seu lugar na Terra. Zurrava, declamava, provava que era ele um talento de primeira grandeza e sábio como nunca apareceu outro no mundo.

         O burro ouvia, de orelhas murchas, pastando. O asno danou.

         – Que bronco tu és, amigo! Falo e não me respondes! Zurro ciência e tu pastas! Vamos! Dize alguma coisa! Contraria-me, contesta-me as opiniões, que estou a arder por uma polêmica. Do contrário envergonhar-me-ei de ter-te como irmão na forma e na cor.

         Um macaco que tudo ouvia lá num galho não se conteve e disse:

         – O mundo está perdido! Esta besta a fazer-se de sábio, a zurrar centenas de asneiras, e o burro a engolir tudo caladinho…

         O burro abanou as orelhas e respondeu com a citação do verso de Bocage:

         Um tolo só em silêncio é que se pode sofrer…

                                                        *****

            – Aposto que esse burro era o nosso Conselheiro – disse Emília – e o asno não pode ser outro senão o Coronel Teodorico.

            Emília não perdoava ao Coronel o arzinho de superioridade com que ele a tratou naquela prosa contada nos Serões de Dona Benta.

            – E quem é esse Bocage, vovó? – perguntou a menina.

            – Um velho poeta português, notável pelas suas agudezas.

            – E que é agudeza? – quis saber Pedrinho.

            – É filosofia com graça, meu filho. Emília, por exemplo, tem às vezes excelentes agudezas…

            Emília derreteu-se toda.

 

73 – As duas panelas

         Duas panelas, uma de ferro, orgulhosa, outra de barro, humilde, moravam na mesma cozinha; e como estivessem vazias, a bocejarem de vadiação, disse a graúda:

         – Bela tarde para um giro pela horta! A cozinheira não está, e até que venha teremos tempo de dizer adeus à alface e fazer uma visita aos repolhos. Queres ir?

         – Com todo o prazer!… – respondeu a panela de barro, lisonjeadíssima da honrosa companhia.

         – Dá-me o braço então, e vamo-nos depressa antes que “ela” venha.

         Assim fizeram, e lá se foram as duas, desajeitadonas, gingando os corpos ventrudos, cheias de amabilidades para com as hortaliças. “Bom dia, Dona Couve!”, “Comendador Repolho, como passa?”, “Coentrinho, adeus!”

         No melhor da festa, porém, a panela de ferro falseou o pé e esbarrou na amiga.

         – Ai que me trincas! – exclamou esta.

         – Não foi nada, não foi nada…

         Uns passos mais e novo choque.

         – Ai que me desbeiças, amiga!

         – Em casa arruma-se, não é nada.

         Minutos depois, terceiro esbarrão, este formidável.

         – Ai! Ai! Ai! Fizeste-me em pedaços, ingrata!…

         E a mísera panela de barro caiu por terra a gemer, reduzida a cacos.

         Sempre que o fraco se associa ao forte sai trincado, desbeiçado, despedaçado…

                                                        ***** 

            – A moralidade desta fábula também podia ser o tal “lé com lé, cré com cré” – lembrou Pedrinho.

            – Exatamente, meu filho. Se tivessem saído a passeio duas panelas de ferro ou duas panelas de barro, nada teria acontecido.

            – Se fosse escrever esta fábula – berrou Emília –, eu punha uma moralidade diferente.

            – Qual? – Fé com fé, bá com bá, isto é, ferro com ferro, barro com barro.

            Todos acharam engraçadinho.

 

74 – A pele do urso

         Dois caçadores precisados de dinheiro tiveram a ideia de vender a pele de um urso que morava na floresta próxima. Feito o negócio e recebida a importância, tomaram das espingardas e saíram em procura da fera. Encontraram-lhe sem demora o rasto e seguiram-no cautelosos. Súbito, um deles, batendo na testa, exclamou:

         – Que caçadores das dúzias somos nós! Pois não é que deixamos em casa os cartuchos?

         Era verdade aquilo, e, mal os caçadores deram pela coisa, o mato estaleja e o urso aparece.

         Rápido como o relâmpago, um deles consegue trepar por uma árvore acima. Já o outro, mais lerdo, o remédio que teve foi deitar-se no chão e fingir-se de morto.

         O urso chegou, bamboleando o corpo. Dá com o “cadáver”, fareja-o nos olhos, no nariz, nos ouvidos e exclama:

         – Carniça! Isto é coisa que só aos urubus pode interessar. – E retirou-se, bamboleante.

         Assim que o urso desapareceu ao longe, os caçadores, até então imóveis, respiraram e criaram alma nova. E, muito satisfeitos de se verem livres das unhas da “pele” vendida, foram correndo para casa. Lá chegados, riram-se da aventura; e o que trepara à árvore perguntou ao que se fingira de morto:

         – Que é que te disse o urso ao ouvido, compadre?

         – Disse-me que não se deve contar com o ovo antes de a galinha o botar!…

                                                        *****

            Ouvindo falar em ovo, Tia Nastácia veio lá da cozinha saber que história de ovo era aquela. Ovo é uma coisa que bole no coração das cozinheiras. Dona Benta teve de repetir o caso da pele do urso.

            A pobre preta não entendeu nada. Só gostou daquele ovo ali no fim, mas não achou nenhuma relação entre a pele do urso e o ovo da galinha.

            – Será que esse caçador pensa que urso bota ovo? – disse ela tolamente.

            Todos riram-se.

            – A cara de Tia Nastácia está me sugerindo uma fábula que esqueci de contar – disse Dona Benta –, a do galo e da pérola. Um galo estava ciscando no terreiro. De repente encontrou uma pérola. “Que pena!”, exclamou. “Antes fosse um grão de milho.”

            A boa negra ainda ficou mais atrapalhada. Urso, ovo de galinha, pérola, grão de milho… Que embrulhada era aquela? E voltou para a cozinha resmungando:

            – Até Sinhá está ficando que a gente não entende. Credo…

 

75 – Liga das Nações

         Gato-do-mato, jaguatirica e irara receberam convite da onça para constituírem a Liga das Nações.

         – Aliemo-nos e cacemos juntos, repartindo a presa irmãmente, de acordo com os nossos direitos.

         – Muito bem! – exclamaram os convidados.

         – Isso resolve todos os problemas da nossa vida.

         E sem demora puseram-se a fazer a experiência do novo sistema. Corre que corre, cerca daqui, cerca dali, caiu-lhes nas unhas um pobre veado. Diz a onça:

         – Já que somos quatro, toca a reparti-lo em quatro pedaços.

         – Ótimo!

         Repartiu a presa em quatro partes e, tomando uma, disse:

         – Cabe a mim este pedaço, como rainha que sou das florestas.

         Os outros concordaram e a onça retirou a sua parte.

         – Este segundo também me cabe porque me chamo onça.

         Os sócios entreolharam-se.

         – E este terceiro ainda me pertence de direito, visto como sou mais forte do que todos vós.

         A irara interveio.

         – Muito bem. Ficas com três pedaços, concordamos (que remédio!); mas o quarto tem de ser dividido entre nós.

         – Às ordens! – exclamou a onça. – Aqui está o quarto pedaço às ordens de quem tiver coragem de agarrá-lo.

         E arreganhando os dentes assentou as patas em cima.

         Os três companheiros só tinham uma coisa a fazer: meter a cauda entre as pernas. Assim fizeram e sumiram-se, jurando nunca mais entrar em Liga das Nações com onça dentro.

                                                        *****

            – Chega de fábulas, vovó! – disse Pedrinho. – Já estamos empanturrados. A senhora precisa nos dar tempo de digerir tanta sabedoria popular. Estou com a cabeça cheia de “moralidades”.

            Dona Benta concordou. Tudo tem conta, e a maior sabedoria da vida é usar e não abusar. Mas, querendo saber se tinham aproveitado a lição, disse:

            – Muito bem. Vamos agora ver se não perdi meu tempo. Que é que você conclui de tudo isto, Pedrinho?

            – Concluo, vovó, que as fábulas, mesmo quando não valem grande coisa, têm sempre um mérito: são curtinhas…

            – Muito bem. E você, minha filha?

            – Para mim, vovó, as fábulas são sabidíssimas. No momento a gente só presta atenção na fala dos animais, mas a moralidade nos fica na memória e de vez em quando, sem querer, a gente aplica “el cuento”, como a senhora diz.

            – Muito bem. E você, Emília?

            – Eu acho que as fábulas são indiretas para um milhão de pessoas. Quando ouço uma, vou logo dando nome aos bois: este mono é o Tio Barnabé; aquele asno carregado de ouro é o Coronel Teodorico; a gralha enfeitada de penas de pavão é a filha de Nhá Veva. Para mim, fábula é o mesmo que indireta.

            Dona Benta voltou-se para o Visconde.

            – E que pensa das fábulas, Visconde?

            O sabuguinho assoprou e disse:

            – Na minha opinião, as fábulas mostram só duas coisas: 1a) que o mundo é dos fortes; e 2a) que o único meio de derrotar a força é a astúcia. Essa da Liga das Nações, por exemplo. Os animais formaram uma liga, mas que adiantou? Nada. Por quê? Porque lá dentro estava a onça, representando a força, e contra a força de nada valeram os direitos dos animais menores. Bem que a irara fez ver o direito desses animais menores. Mas nada conseguiu. A onça respondeu com a razão da força. A irara errou. Em vez de alegar direito, devia ter recorrido a uma esperteza qualquer. Só a astúcia vence a força. Emília disse uma coisa muito sábia em suas Memórias…

            – Que foi que eu disse? – perguntou Emília, toda assanhadinha e importante.

            – Disse que se tivesse um filho só lhe dava um conselho: “Seja esperto, meu filho!”. Se não fosse a esperteza, o mundo seria de uma brutalidade sem conta…

            – Seria a fábula do lobo e do cordeiro girando ao redor do sol que nem planeta, com todas as outras fábulas girando ao redor dela que nem satélites – concluiu Emília dando um pinote.

            Dona Benta calou-se, pensativa.

 

1922.

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