Monteiro Lobato

Memórias de Emilia

Capítulos 10, 11 e 12

 

10 – Diálogo entre a boneca e o Visconde. A esperteza de Emília e a resignação do Milho.

            Estava o Visconde nesse ponto das Memórias, quando Emília entrou.

            – Como vai o serviço? – indagou ela. – Já escreveu alguma coisa?

            – Um colosso, Emília! Contei toda a história do anjinho, a vinda das crianças inglesas, a luta de Popeye com o Capitão Gancho, com os marinheiros do Wonderland e depois com Pedrinho e Peter Pan…

            – Contou que fui eu quem salvou tudo? Que se não fosse a minha ideia da couve a situação teria sido um horror?

            – Contei tudo direitinho.

            – Então leia.

            O Visconde leu todos os capítulos já prontos, aos quais Emília aprovou e gabou, achando-os muito bem escritinhos.

            – Está bem – disse ela.

            – Minhas Memórias vão a galope. Quero provar ao mundo que faço de tudo, que sei brincar, que sei aritmética, que sei escrever memórias…

            – Sabe escrever memórias, Emília? – repetiu o Visconde ironicamente. – Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber escrever memórias?

            – Perfeitamente, Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama com a cabeça da gente é não saber fazer as coisas. Olhe, Visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já aprendi a viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um só conselho: “Seja esperto, meu filho!”

            – E como lhe explicar o que é ser esperto? – indagou o Visconde.

            – Muito simplesmente – respondeu a boneca. – Citando o meu exemplo e o seu, Visconde. Quem é que fez a “Aritmética”? Você. Quem ganhou nome e fama? Eu. Quem é que está escrevendo as Memórias? Você. Quem vai ganhar nome e fama? Eu…

            O Visconde achou que aquilo estava certo, mas era um grande desaforo.

            – E se eu me recusar a escrever? Se eu deixar as Memórias neste ponto, que é que acontece?

            Emília deu uma grande risada.

            – Bobo! Se fizer isso, pensa que me aperto? Corro lá com Quindim e ele me acaba o livro. Bem sabe que Quindim me obedece em tudo, cegamente. É inútil, Visconde, lutar contra os espertos. Eles acabam vencendo sempre. Por isso, abaixe a crista e continue.

            O pobre Visconde deu um suspiro. Era assim mesmo…

            – E agora? – indagou. – Que mais quer que conte?

            – O resto da história do anjinho. Conte como foi a fuga do anjinho para o céu. Vá escrevendo que eu já volto. Estou brincando de pegador com o Quindim.

            Disse e saiu correndo.

            O Visconde tomou da pena e com toda a resignação continuou.

 

11 – A fuga do anjinho. Grande tristeza. Depedida da criançada e do almirante Brown.

            Depois dos fatos que acabamos de narrar, prosseguiu o Visconde no capítulo seguinte, tudo correu sem novidades no sítio. As crianças inglesas passaram lá três dias, brincando de mil brinquedos, no maior contentamento possível. Os caminhões do Wonderland vinham duas vezes por dia, de manhã e à tarde, com o carregamento de comedorias – e eram tantas que Tia Nastácia descansou do fogão. Ela e Dona Benta aderiram aos sanduíches, geléias e queijos do Rei da Inglaterra.

            Só quem não gostou da festa foi o anjinho. As crianças o atropelavam demais. Não havia para ele um só momento de sossego. Isso acabou dando-lhe uma ideia: escapar, voltar para o céu. No terceiro dia, Flor das Alturas experimentou as asas. Voou um bocadinho, como se fosse para a criançada ver. Sentiu-se bem. A quebradura estava perfeitamente soldada. Foi então que resolveu fugir para sempre.

            Mas como já estivesse gostando dos meninos do sítio não fugiu como um fujão qualquer. Despediu-se, lá do jeitinho dele. Chegando perto de Narizinho, murmurou:

            – “Narizinho, deixe-me dar um grande abraço e um beijo em você. Gosto tanto da minha amiga…”

            Narizinho deixou-se abraçar e beijar inúmeras vezes.

            Depois foi ter com Pedrinho e falou em outro tom.

            – “Pedrinho – disse ele -, fique certo de uma coisa: se algum dia eu desaparecer (por morte, está claro), levarei uma lembrança eterna de todos daqui, e principalmente de você.”

            E abraçou-o e beijou-o também.

            Em seguida foi ter com a boneca.

            – “Emilinha, venha dar-me um abraço e um beijo.”

            – “Para que tanta coisa, meu anjo? Será que quer deixar-nos?”

            – “Não. Apenas quero dar parabéns pelo que você fez.”

            Emília abraçou-o e beijou-o – mas desconfiou, indo dizer à menina:

            – “Estou desconfiada do anjinho. Esses abraços e beijos parecem-me fora de propósito. Para mim, ele está pensando mais é em fugir. Já sarou. Já voa. E se Tia Nastácia não cortar logo a ponta de uma das suas asinhas, prrr!… lá se vai ele a qualquer momento.”

            – “Não seja boba, Emília! Juro que o anjinho não pensa mais no céu. Está acostumadíssimo conosco.”

            – “Pode ser – disse a boneca -, mas, por causa das dúvidas, vou insistir com Tia Nastácia para que lhe corte a asinha, já, já. E se ela não tiver coragem eu mesma a cortarei.”

            Emília foi e intimou a preta a cortar a asa do anjinho naquele mesmo dia.

            – “Deus me livre! – respondeu Tia Nastácia. – Cortar a asa de um anjo do céu, como se fosse galinha?… Deus me livre de cometer semelhante sacrilégio. Os anjos são criaturas celestes.”

            – “Pois então eu mesma corto – gritou Emília. – Ele está mudado e hoje me deu um abraço e um beijo com cheirinho de despedida. E já voa perfeitamente, sabe?”

            Disse e correu ao quarto de Dona Benta em procura da tesoura. Estava a remexer na cesta de costura, quando um imenso berreiro se levantou no pomar. Emília correu à janela.

            – “O anjinho voou! – gritava a criançada. – Vai voando alto! Vai sumindo no céu!…”

            Emília ainda pôde vê-lo nos ares. Lá se ia que nem uma garça, subindo, subindo sempre. Já era um ponto no espaço. Por fim desapareceu…

            Ninguém descreve o desespero das crianças. O chão do pomar ficou ensopado de lágrimas. Pedrinho dava pontapés raivosos nas cascas de laranja. Narizinho, no colo de Dona Benta, soluçava com desespero. Só Emília não chorou. Apenas enfureceu-se contra Tia Nastácia.

            – “Aquela burrona! Prometeu que cortava a asinha dele e não cortou. Agora, está aí…”

            Foi correndo à cozinha tomar satisfações.

            – “Viu o que a senhora fez? Por causa da sua lerdeza, do seu medo, do tal ‘sacrilégio’, perdemos o nosso anjinho. Voou! Foi-se para sempre…”

            Nastácia enxugou uma lágrima na ponta do avental.

            – “Mas eu não tinha coragem de cortar a asinha dele, Emília. Tive medo. Essas criaturinhas do céu são as aves de Deus. Deus podia me castigar…”

            – “Castigar, nada! – berrou Emília. – Todas as aves são de Deus e no entanto prendemos canários e sabiás nas gaiolas e comemos pombos assados sem que Deus se importe. Pensa que Ele fica o tempo todo prestando atenção nas aves do quintal do céu? Tem mais que fazer, boba. Além disso anjo é coisa que há lá por cima aos milhões. Um de menos, um de mais, Deus nem percebe. Perdemos o anjinho por sua culpa só. Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo.”

            Tia Nastácia rompeu em choro alto – tão alto que Dona Benta veio ver o que era.

            Emília explicou:

            – “Esta burrona teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. Eu vivia insistindo. Hoje mesmo insisti. E ela, com esse beição todo: ‘Não tenho coragem… É sacrilégio…’. Sacrilégio é esse nariz chato.”

            – “Emília! – repreendeu Dona Benta. – Respeite os mais velhos! Não abuse!”

            – “Bolas!” – gritou Emília retirando-se e batendo a porta.

            – “Como está ficando insolente!” – murmurou Dona Benta.

            Era o dia da volta da criançada. Logo depois o Almirante Brown deu aos marinheiros as ordens necessárias e apitou. Todos se reuniram em torno dele.

            – “Meus meninos e meninas – disse o velho inglês, de pé no topo da escadinha da varanda. – A nossa festa chegou ao fim. Passamos neste sítio três dias inigualáveis, na companhia desta boa gente e do anjinho que acaba de desaparecer nas nuvens, saudoso das estrelas do céu. Vamos reembarcar para a Inglaterra. Quero agora que vocês desfilem diante de Dona Benta e lhe agradeçam com um bom shake-hands (aperto de mão) a maravilhosa hospedagem que nos proporcionou. Mas antes disso vão me acompanhar num hurra de saudação.”

            E berrou: – “Hurra! Hurra! Dona Benta!”

            – “Hurra!…” – ecoaram as crianças num coro de vozes que encheu os ares.

            Peter Pan subiu à escadinha. – “Hurra! Hurra! Pedrinho…” – gritou ele.

            E as crianças ecoaram: – “Hurra! Hurra! Pedrinho!”

            Alice trepou à escada. – “Hurra! Hurra! Narizinho e Emília.”

            E mil vozes ecoaram: – “Hurra! Hurra! Narizinho e Emília.”

            Ao ouvir o berreiro, Tia Nastácia, lá no fogão, murmurou consigo: – “Como estes inglesinhos urram, meu Deus!…”.

            Em seguida as crianças desfilaram diante de Dona Benta, que teve a pachorra de apertar a mão de todas, uma por uma.

            – “Goodbye!” – iam elas dizendo a cada shake-hand.

            Chegou a vez de o Almirante despedir-se.

            – “Minha senhora – disse ele -, não sei como agradecer a boa acolhida que tivemos neste abençoado sítio. Vou com recordações que conservarei pelo resto da vida. E de tudo saberei dar boa conta a Sua Majestade britânica.”

            Dona Benta respondeu:

            – “Senhor Almirante, a honra que o Rei da Inglaterra nos fez mandando aqui a flor da criançada inglesa é dessas coisas que até deixam uma pessoa com um nó na garganta. Não encontro palavras de agradecimento. Peço que apresente a Sua Majestade as minhas homenagens e diga à Rainha Viúva que senti profundamente a morte de seu augusto esposo. Adeus, Senhor Almirante Brown! Que sejam muito felizes na viagem, são os meus mais sinceros votos. Adeus!…”

            A criançada, com o velho Almirante à frente, pôs-se em marcha. Quando chegaram à porteira, Emília gritou:

            – “Adeus, Alice! Adeus, Peter Pan! Adeus, Almirante! Não se esqueça da minha caixa de latas de leite condensado, nem da vaca prometida à Dona Benta…”

            Narizinho danou.

            – “Esta sirigaita! Numa hora assim a gente comporta-se. É o momento solene. Que ideia não irá fazendo o Almirante de você, gulosa?”

            – “Que bem me importa! – exclamou Emília. – O que quero é que venha a minha caixa de leite.”

            Depois de tudo acabado, Dona Benta pediu à Tia Nastácia que lhe trouxesse uma bacia de água de sal.

            – “Para quê, Sinhá?”

            – “Para me curar, Nastácia. Os tais shake-hands desta inglesada escangalharam com a minha pobre mão…”

            Nesse ponto das Memórias o Visconde lembrou-se de que ele também tinha mãos e parou para esfregá-las. Releu o último capítulo. Gostou. Riu-se, pensando lá consigo: “Sou um danadinho para escrever! Mas por muito que escreva jamais conquistarei fama de escritor. Emília não deixa. Aquela diaba assina tudo quanto eu produzo…”

            -Muuuul… – soou um vozeirão na janela do quarto.

            O Visconde voltou-se. Era Quindim. O rinoceronte enfiara o focinho pela abertura da janela. Emília, montada no chifre dele, gritou:

            – Já acabou o serviço, Visconde?

            – Acabei a história do anjinho. A criançada inglesa lá se vai embora, com o Almirante na frente. Contei a história do leite condensado – aquela tremenda rata que você deu…

            Emília escorregou do chifre do rinoceronte e entrou pela janela. Foi examinar a obra do Visconde. Fê-lo ler a última parte escrita. Deu a sua aprovação.

            – Está bem. Falta agora aquele caso do Peninha – disse ela. – Bem sabe que depois do passeio ao País das Fábulas ficamos aqui numa dúvida a respeito do Peninha. Uns queriam que ele fosse o Peninha mesmo; outros achavam que era o próprio Peter Pan. Os dois meninos eram igualmente invisíveis, quando queriam ser invisíveis, e ambos cantavam cocoricocó. O meio de sair da dúvida, na minha opinião, seria fazer uma consulta a Peter Pan – e logo que a criançada inglesa partiu, com o Almirante à frente, eu me lembrei disso.

            – “Pedrinho – disse eu – aproveite a ocasião para saber de Peter Pan se o Peninha é ele.”

            – “Ótima lembrança!” – respondeu Pedrinho – e mandou Rabicó atrás do bando já longe, com um recado que me lembro muito bem. Um recado assim: “Amigo Peter: faça o favor de responder se o Peninha é ou não é você. Há muito tempo que andamos aqui na dúvida. Mas não minta. Responda a sério. Seu amigo Pedrinho”.

            Esse recado foi escrito às pressas num dos papéis que vinham embrulhando os sanduíches de presunto de York. Lembro-me disso porque fui eu quem apanhou do chão o papel em que Pedrinho escreveu o recado. Pedrinho escreveu o recado, dobrou o papel muito bem dobradinho, e disse a Rabicó:

            – “Vá correndo atrás do bando e entregue isto a Peter Pan. E espere a resposta.”

            Nesse ponto o Visconde interrompeu Emília e continuou a história.

            – Exatamente – disse ele. – E Rabicó foi correndo, mas parou logo adiante da porteira, atrás do cupim. O cheirinho a presunto de York daquele papel engordurado perturbou a cabeça dele… Rabicó, então, comeu o recado sem nem sequer ter a lembrança de ler o bilhete, de modo a poder dar o recado verbalmente. E meia hora depois…

            Emília tapou a boca do Visconde.

            – Deixe-me contar o resto. Meia hora depois Rabicó reapareceu, fingindo-se cansadíssimo, com aquela cara de boi ladrão que ele tem quando faz algumas das suas.

            – “Pronto! – disse ele a Pedrinho. – Já entreguei o recado a Peter Pan.”

            – “E qual foi a resposta?” – perguntou Pedrinho. – Rabicó atrapalhou-se, começou a mascar.

            – “A resposta? – repetiu. – A resposta… a resposta foi que… que ele agradecia muito as suas palavras de despedida e que quando chegasse à Inglaterra ia… ia…”

            Pedrinho avermelhou de cólera.

            – “Palavras de despedida? Eu lá escrevi palavras de despedida? Naquele bilhete eu apenas perguntava se o Peninha era ou não era ele…”

            – “É verdade! – exclamou Rabicó. – Não sei onde ando com a cabeça. Isso mesmo. Assim que entreguei a Peter Pan o papel, ele o leu, pensou um minutinho… e… e respondeu assim: ‘Diga ao Senhor Pedro que… que pode ser que sim, pode ser que não’. Foi isso…”

            – “Ficamos na mesma! – exclamou Pedrinho, danado. – Peter Pan está se fazendo de misterioso.”

            Mas eu, que não sou tola, desconfiei logo. Aproximei-me disfarçadamente da boca de Rabicó e cheirei – e senti um cheirinho de bilhete comido.

            – “Você devorou o bilhete, Rabicó! – fui gritando. – Tanto devorou que está com cheiro de bilhete devorado na boca!”

            – “Não devorei, Emília! Juro que não devorei…” – mentiu o miserável.

            – “Devorou! Devorou! Devorou!…”

            – Você, Visconde, vinha entrando, lembra-se?, ainda de camisola branca e asas – isto é, com uma asa só; a outra já havia caído. Eu, então, disse:

            – “Visconde, o senhor que é um Sherlock, venha resolver esse caso. Aplique a sua ciência na boca de Rabicó e veja se ele devorou um recado escrito em papel de sanduíche, que Pedrinho mandou a Peter Pan.”

            – Você, Visconde, foi buscar a lente dos detetives e examinou todos os pelinhos do focinho de Rabicó. E disse:

            – “Por aqui há sinais de ter andado um recado.”

            Rabicó defendeu-se:

            – “Nada mais natural, visto que levei o recado na boca” – disse ele.

            – Você, Visconde, prosseguiu na investigação, examinou-lhe os dentes e descobriu, entaladinhos neles, os sinais do crime. E gritou:

            – “Vejo nos vãos dos dentes deste quadrúpede pedacinhos de papel mascado” – não foi assim mesmo, Visconde?

            Pedrinho, então, não quis saber de mais nada. Pregou no Marquês tamanho pontapé que ele foi parar a cinco metros de distância, fazendo – coin, coin – e sumiu-se. –

            A eterna gulodice de Rabicó fez que perdêssemos a melhor oportunidade de saber se Peninha era o mesmo Peter Pan ou não.

            – Escreva este caso, Visconde. E depois pode contar a história inteira do Quindim aqui no sítio. Vá escrevendo, que eu já volto – concluiu Emília – e saiu correndo.

 

12 – O Visconde desabafa. Seu retrato da Emília. A boneca pensa em Hollywood.

           O Visconde já estava com os dedos cansados de tanto escrever, e também revoltado contra as exigências de Emília. Súbito riu-se. “Vou pregar-lhe uma peça”, pensou lá consigo. “Vou escrever uma coisa e quando ela voltar e me mandar ler eu pulo o pedaço ou leio outra. É isso…”

            E pôs-se a escrever contra a boneca, assim:

            “Emília é uma tirana sem coração. Não tem dó de nada. Quando Tia Nastácia vai matar um frango, todos correm de perto e tapam os ouvidos. Emília, não. Emília vai assistir. Dá opiniões, acha que o frango não ficou bem matado, manda que Tia Nastácia o mate novamente – e outras coisas assim.”

            “Também é a criatura mais interesseira do mundo. Tudo quanto faz tem uma razão egoística. Só pensa em si, na vidinha dela, nos brinquedinhos dela. Por isso mesmo está ficando a pessoa mais rica da casa. Eu, por exemplo, só possuo um objeto – a minha cartola. Jamais consegui ser proprietário de outra coisa, porque se arranjo qualquer coisa Emília encontra jeito de me tomar. Até aquele ditonguinho que raptei no País da Gramática e escondi na boca a diaba descobriu e me fez cuspir fora.”

            “Ela, entretanto, possui um colosso de coisas. O quartinho da Emília está cheio – mais ainda que este quarto de badulaques. É dona de grande número de pernas e braços e cabeças de bonecas – das que Narizinho quebrou. Tem uma coleção de panelinhas de barro, e outra de caquinhos coloridos de louça. Uma vez quebrou de propósito uma linda xícara verde de Dona Benta só para completar a sua coleção de caquinhos – porque estava faltando um caquinho verde…”

            “Tem besouros secos, um morcego seco, flores secas, borboletas secas e até um camarão seco. Tem coleção de fios de cabelo, que ela enrola um por um como cordinhas. Cabelos de Dona Benta, de Narizinho e Pedrinho, do Capitão Gancho, do Popeye. Na sua coleção, diz ela, só falta uma coisa: fio de cabelo de um homem totalmente careca.”

            “E tem mais coisas. Tem uma coleção de selos, todos cortados. Emília recorta as cabecinhas e mais figurinhas dos selos e prega-as num álbum. Não há o que não haja naquele quarto. Durante uns tempos andou com mania de colecionar verrugas, das que têm um fio de cabelo plantado no meio. Isso por causa da sogra do Compadre Teodorico, que veio um dia aqui. Essa velha possui uma verruga na cara. Emília começou a namorar aquela verruga. Por fim ofereceu à velha um tostão por aquilo – imaginem!”

            “Emília é uma criaturinha incompreensível. Faz coisas de louca, e também faz coisas que até espantam a gente, de tão sensatas. Diz asneiras enormes, e também coisas tão sábias que Dona Benta fica a pensar. Tem saídas para tudo. Não se aperta, não se atrapalha. E em matéria de esperteza não existe outra no mundo. Parece que adivinha, ou vê através dos corpos.”

            “Um dia, em que muito me impressionei com qualquer coisa que ela disse, propus-lhe esta pergunta:

            – Mas, afinal de contas, Emília, que é que você é?”

            “Emília levantou para o ar aquele implicante narizinho de retrós e respondeu:

            – Sou a Independência ou Morte.” “Fiquei pensativo. Na realidade, o que Emília é, é isso: uma independenciazinha de pano – independente até no tratar as pessoas pelo nome que quer e não pelo nome que as pessoas têm. Para ela eu sou o Milho; o Almirante é o Bife…”

            “Aqui no sítio quem manda é ela. Por mais que os meninos façam, no fim quem consegue o que quer é a Emília com os seus famosos jeitinhos.

            Certa vez…” Emília entrou nesse momento.

            – Como vão as Memórias, Visconde? Mais um capítulo?

            – Sim – respondeu o Visconde, meio atrapalhado. – Escrevi mais um capítulo…

            – Sobre quê?

            O Visconde, que não queria ler aquele capítulo contra ela, começou a inventar.

            – Escrevi – disse ele – sobre… sobre a nossa volta da viagem ao céu. Contei o… o tombo que vocês deram de cima daquele cometa.

            Emília desconfiou.

            – Visconde, Visconde! O senhor está me tapeando!… Esse seu ar de cachorrinho que quebrou a panela está me dizendo que o senhor escreveu uma coisa e quer impingir outra.

            O pobre Visconde corou até a raiz das palhinhas. Impossível enganar aquele azougue! A boneca arrancou-lhe das mãos o capítulo. Leu-o… Mas com grande assombro do Visconde não fez a cena que ele esperava. Emília ficou uns instantes meditativa. Depois disse:

            – O senhor me traiu. Escreveu aqui uma porção de coisas perversas e desagradáveis, com o fim de me desmoralizar perante o público. Mas, pensando bem, vejo que sou assim mesmo. Está certo.

            Leu mais uma vez o capítulo.

            – É isso mesmo. Sou tudo isso e ainda mais alguma coisa. Pode ficar como está. Cada um de nós dois, Visconde, é como Tia Nastácia nos fez. Se somos assim ou assados, a culpa não é nossa – é da negra beiçuda.

            Cada vez que Emília falava na negra lembrava-se do anjinho fugido, de modo que naquele momento esqueceu das Memórias para pensar nele.

            – Não posso falar nessa negra beiçuda sem que o sangue não me venha à cabeça, Visconde! Perdemos Florzinha das Alturas só por causa de um tal “sacrilégio” que a burrona inventou! Impossível conformar-me com a perda do meu anjinho…

            E depois de uns instantes de meditação:

            – Estou a ver-me com ele em Hollywood, no cinema…

            Súbito, teve uma ideia.

            – Pode ir embora, Visconde. Eu mesma quero acabar estas Memórias. Vou contar o que teria acontecido se Tia Nastácia houvesse cortado a ponta da asa do anjinho.

            Disse e empurrou o Visconde para fora do quarto. Tomou da pena e escreveu:

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