Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho

MONTEIRO LOBATO

 Caçadas de Pedrinho

Capítulos 1 e 2

1 – E era onça mesmo!

          Dos moradores do sítio de Dona Benta o mais andejo era o Marquês de Rabicó. Conhecia todas as florestas, inclusive o capoeirão dos Taquaruçus, mato muito cerrado onde Dona Benta não deixava que os meninos fossem passear. Certo dia em que Rabicó se aventurou nesse mato em procura das orelhas-de-pau que crescem nos troncos podres, parece que as coisas não lhe correram muito bem, pois voltou na volada.

          – Que aconteceu? – perguntou Pedrinho, ao vê-lo chegar todo arrepiado e com os olhos cheios de susto. – Está com cara de Marquês que viu onça…

          – Não vi, mas quase vi! – respondeu Rabicó, tomando fôlego. – Ouvi um miado esquisito e dei com uns rastos mais esquisitos ainda. Não conheço onça, que dizem ser um gatão assim do tamanho dum bezerro. Ora, o miado que ouvi era de gato, mas muito mais forte, e os rastos também eram de gato, mas muito maiores. Logo, era onça.

        Pedrinho refletiu sobre o caso e achou que bem podia ser verdade. Correu em procura de Narizinho.

          – Sabe? Rabicó descobriu que anda uma onça no capoeirão dos Taquaruçus!…

          — Uma onça? Não me diga! Vou já avisar vovó…

          – Não caia nessa – advertiu o menino. – Medrosa como ela é, vovó ou morre de medo ou trata de nos levar hoje mesmo para a cidade. Muito melhor ficarmos quietos e caçarmos a onça.

          A menina arregalou os olhos.

          – Está louco, Pedrinho? Não sabe que onça é um bicho feroz que come gente?

          – Sei, sim, como também sei que gente mata onça.

          – Isso é gente grande, bobo!

          – Gente grande!… – repetiu o menino, com ar de pouco-caso. – Vovó e Tia Nastácia são gente grande e, no entanto, correm até de barata. O que vale não é ser gente grande, é ser gente de coragem, e eu…

          – Bem sei que você é valente como um galo garnisé, mas olhe que onça é onça. Com um tapa derruba qualquer caçador, diz Tia Nastácia.

          O menino bateu no peito com arrogância.

          – Pois quero ver isso! Vou organizar a caçada e juro que hei de trazer essa onça aqui para o terreiro, arrastada pelas orelhas. Se você e os outros não tiverem coragem de me acompanhar, irei sozinho.

          A menina arrepiou-se de entusiasmo diante de tamanha bravura e não quis ficar atrás.

          – Pois vou também! – gritou. – Uma menina de nariz arrebitado não tem medo de coisa nenhuma. Vamos convidar os outros.

          Saíram os dois em busca dos demais companheiros. O primeiro encontrado foi o Marquês de Rabicó, que estava na porta da cozinha, ocupadíssimo em devorar umas cascas de abóbora.

          – Apronte-se, Marquês, para tomar parte na expedição que vai caçar a onça aparecida lá na mata.

          Aquela notícia fez o leitão engasgar com a casca de abóbora que tinha na boca.

          – Caçar a onça? Eu? Deus me livre!… – Pedrinho impôs energicamente:

          – Vai, sim, ainda que seja para servir de isca, está ouvindo, seu covarde?

          Rabicó tremia que nem geleia fora do copo.

          – Um fidalgo! – prosseguiu Pedrinho, em tom de desprezo. – Um filho do grande Visconde de Sabugosa a tremer assim de medo! Que vergonha…

          Rabicó não replicou. Bebeu um gole d’água para acalmar os nervos e voltou às suas cascas de abóbora com esta ideia na cabeça: “No momento hei de dar um jeito qualquer. Não tem perigo que eu me deixe comer cru pela onça”.

          O luxo dos leitões é serem comidos assados ao forno, com rodelas de limão em redor e um ovo cozido na boca…

          O segundo convidado foi o Visconde de Sabugosa, o qual aceitou a proposta com aquela dignidade e nobreza que marcavam todos os seus atos de fidalgo dos legítimos. Iria para vencer ou morrer. Viscondes da sua marca mostram o que valem justamente nos momentos perigosos.

          Depois convidaram Emília, que recebeu a ideia com palmas.

          – Ora, graças! – exclamou. – Vamos ter enfim uma aventura importante. A vida aqui no sítio anda tão vazia que até me sinto embolorada por dentro. Irei, sim, e juro que quem vai matar a onça sou eu…

          Esse dia e o outro foram passados em preparativos. Pedrinho levaria uma espingarda que ele mesmo tinha fabricado escondido de Dona Benta, com cano de guarda-chuva e gatilho puxado a elástico. Estava carregada com a pólvora duns pistolões sobrados da última festa de São Pedro.

          A arma que Narizinho escolheu foi a faca de cortar pão, instrumento mestiço de faca e serrote.

          O Visconde recebeu um sabre feito de arco de barril, bastante pontudo, mas danado para entortar. Em vista da sua importância e do seu título, também recebeu o comando da expedição.

          – E você, Emília, que arma leva? – perguntou Narizinho.

          – Levo o espeto de assar frangos. Tenho mais fé naquele espeto do que nas armas de vocês todos.

          Restava o Marquês. Como fosse um grande medroso, em vez de arma Pedrinho deu-lhe arreios. Rabicó iria puxando um canhãozinho feito dum velho tubo de chaminé, que o menino havia montado sobre as rodas do seu carrinho de cabrito. Para carregar o canhãozinho foi necessário empregar a pólvora de três pistolões. Servia de bala uma pedra bem redondinha, encontrada nos pedregulhos do rio. Indo atrelado ao canhão, o grande Marquês ficaria impedido de fugir.

          No dia marcado tomaram o café da manhã com farinha de milho e saíram na ponta dos pés, para que as duas velhas nada percebessem. Passaram a porteira do pasto, atravessaram a mata dos Tucanos Vermelhos e de lá seguiram rumo ao capoeirão da onça.

          Rabicó não havia mentido. Os rastos da onça estavam impressos na terra úmida. Ao fazerem tal descoberta o coração dos cinco heróis bateu mais apressado. Dos cinco, não; dos quatro, porque, como todos sabem, Emília não tinha coração.

          – Que é isso, Pedrinho – disse a boneca, notando a palidez do chefe. – Será medo?

          – Não é medo não, Emília. É…

          – É… receio, eu sei – caçoou a terrível bonequinha.

          – Não brinque comigo, Emília! – gritou Pedrinho, avermelhando de raiva. – Você e toda gente sabe que só tenho medo duma coisa neste mundo – maribondo. De mais nada, hem?

          O Visconde, que havia trazido a tiracolo o binóculo de Dona Benta, ajustou-o aos olhos para examinar “detetivamente” os rastos.

          – É de onça, sim, e de onça-pintada – disse ele.

          – Como sabe?

          – Estou vendo no chão dois pelos, um amarelo e outro preto.

          Aquela confirmação de que era onça mesmo, e das grandes, desanimou profundamente Rabicó. Gotas de suor frio começaram a pingar da sua testa. Teve ímpetos de soltar-se do canhãozinho e disparar para casa; só não o fez de medo que Pedrinho lhe despejasse no lombo a carga de chumbo destinada à onça. E resignou-se ao que desse e viesse.

          Orientados pelos rastos da onça, os caçadores não podiam errar. Era seguir na direção deles, que fatalmente dariam com a bicha.

          – Avante, Sabóia! – gritou Pedrinho, espichando no ar a espingarda como se fosse espada.

          – Avante! – repetiram todos os outros, menos Rabicó, que estava sem fala.

          E com o maior entusiasmo os heroizinhos foram caminhando durante meia hora.     Súbito, o Visconde, que ia na frente, de binóculo apontado, gritou com voz firme:

          – A onça…

          – Onde? – indagaram todos, ansiosos.

          – Lá longe, naquela moita – lá, lá…

          Realmente, alguma coisa se mexia na moita indicada e não tardou que uma enorme cara de onça aparecesse por entre as folhas, espiando para o lado dos cinco heróis. Pedrinho dispôs tudo para o ataque. Assestou na direção da moita o canhãozinho e ordenou ao artilheiro Rabicó, enquanto o desatrelava:

          – Fique nesta posição. Quando ouvir a voz de “Fogo!” risque um fósforo, acenda a mecha e dispare.

          – Disparo para casa? – perguntou o artilheiro, mais trêmulo do que uma fatia de manjar branco.

          – Dispare o canhão, idiota! – berrou Pedrinho.

          Enquanto isso, a onça deixava a moita e com o andar manhoso dos gatos dirigia-se, agachada, para o lado deles. Era o momento. O Visconde ergueu a espada e com voz grossa de comandante superior deu um berro de comando:

          – Fogo!

          Rabicó, todo treme-treme, não conseguiu nem riscar o fósforo. Foi preciso que Pedrinho viesse ajudá-lo. Por fim riscou-o e deitou fogo à mecha. Ouviu-se um chiado e logo depois um tiro soou – Pum! Mas um tiro chocho que não valeu nada. A bala de pedra rolou a dois passos de distância, imaginem: Havia falhado a artilharia, na qual eles depositavam tantas esperanças.

          Pedrinho então disparou a sua espingardinha. Outro tiro chocho que nada valeu e só serviu para irritar a fera. Viram-na arreganhar os dentes e apressar a marcha na direção dos atacantes.

          A situação tornava-se muito séria e Pedrinho, desapontado com o nenhum efeito das armas de fogo, berrou a plenos pulmões:

          – Salve-se quem puder!

          Foi uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores. Felizmente havia ali um pé de grumixama que dava para abrigar o grupo inteiro. Nele treparam, sem dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emília. Já o velho Visconde embaraçou as pernas na bainha da espada e com toda a sua importância estendeu-se no chão, ao comprido. Foi preciso que o menino o pescasse com o gancho dum galho seco.

          Rabicó fez coisa de que ninguém nunca o julgaria capaz: botou-se à árvore que nem gato e conseguiu enganchar-se na forquilha do primeiro tronco. Pedrinho e Narizinho, que estavam no galho acima, puderam agarrá-lo pela orelha e içá-lo fora do alcance da onça. Quando a fera chegou, estavam já todos muito bem empoleirados e livres dos seus botes.

          A onça, desapontadíssima, ali permaneceu, sentada sobre as patas de trás, com os olhos fixos nos caçadores que a tinham logrado. Parece que sua intenção era ficar de guarda até que eles descessem.

          – Espera que te curo – disse Pedrinho, lembrando-se que trazia no bolso um pouco da pólvora dos pistolões. Tomou um punhado e, ajeitando-se no galho que ficava bem a prumo sobre a onça, derramou-lhe a pólvora em cima dos olhos.

          A ideia valeu. Completamente cega pela pólvora, a onça pôs-se a corcovear que nem doida, enquanto esfregava os olhos com as munhecas, como se quisesse arrancá-los.

          – É hora! Avança, macacada! – gritou Pedrinho, escorregando pela árvore abaixo.

Todos o imitaram. Apanharam as armas e se arrojaram contra a fera com verdadeira fúria. Narizinho esfregou-lhe a faca no lombo, como se a onça fosse pão e ela quisesse tirar uma fatia. O Visconde conseguiu, depois de várias tentativas, enterrar-lhe no peito o seu sabre de arco de barril. Emília fez o mesmo com o espeto de assar frango. Pedrinho macetou-lhe o crânio com a coronha da sua espingarda. Até Rabicó perdeu o medo e, depois de carregar de novo. o canhão, deu-lhe um bom tiro à queima-roupa. Assim atacada de todos os lados, a onça não teve remédio senão morrer. Estrebuchou e foi morrendo. Quando deu o último suspiro, Pedrinho, no maior entusiasmo de sua vida, entoou um canto de guerra:

          – Ale guá, guá, guá…

          E todos responderam em coro:

          – Hurra! Hurra! Pica-Pau Amarelo!…

 

2 – A volta para casa

         Foi um delírio de contentamento. Os caçadores rodearam a onça morta, discutindo as peripécias da formidável aventura. Emília reclamou logo todas as honras para si.

         – Se não fosse a minha espetada com o espeto de assar frango, queria ver…

         – O que decidiu tudo foram as facadas que eu dei – alegou Narizinho.

          Qual nada! Juro que foi o meu tiro de canhão – disse Rabicó.

          Pexote! – berrou Pedrinho. – A bala de canhão nem arranhou a pele da onça, não está vendo?

          Vendo que daquela disputa pudesse sair briga, o Visconde ponderou gravemente:

         – Todos ajudaram a matar a onça e todos merecem louvores. Mas se não fosse a pólvora de Pedrinho, estaríamos perdidos; de maneira que a Pedrinho cabe a melhor parte da vitória. Depois de cegar a onça, tudo ficou mais fácil e cada qual fez o que pôde. Basta de discussões. Em vez disso, tratemos mas é de levá-la para casa.

         Os heróis concordaram com o sensatíssimo Visconde e Pedrinho afundou no mato para tirar cipós, visto não terem trazido corda. Logo depois reapareceu com um rolo de cipó ao ombro.

         – Segure aqui! Puxe lá! Força! Vamos!…

         Pedrinho conduziu o trabalho da amarração da onça ajudado por todos, menos Emília, que se afastara dali e estava numa grande prosa com dois besouros que tinham vindo assistir à cena. Bem amarrada que foi a onça, era preciso conduzi-la até a casa.

         Foi o que mais custou. Em certo ponto do caminho, Rabicó, que suava em bicas, parou para tomar fôlego.

         – Francamente – disse ele – prefiro matar dez onças a puxar uma só! Estou que não posso mais…

         Pararam todos para um bem merecido descanso e sentaram-se em cima do pelo macio da fera morta. Vendo que o sol já ia alto, Narizinho disse:

          Pobre vovó! Passa bem maus momentos por nossa causa. A estas horas deve estar aflitíssima a procurar-nos por toda parte…

          Mas vai consolar-se vendo a bichona que matamos – disse Pedrinho.

         “Que matamos, uma ova!”, pensou, lá consigo, Rabicó. “Que eu matei com o meu tiro de canhão, isso sim.”

         Pensou apenas. Não teve coragem de o dizer em voz alta, de medo do pontapé que Pedrinho fatalmente lhe pregaria.

         Descansados que foram, prosseguiram na caminhada. Duas horas depois avistavam a casa, e viram Dona Benta e Tia Nastácia, muito aflitas, procurando-os pelo pomar. Pedrinho pôs na boca dois dedos e desferiu um célebre assobio que só ele sabia dar. As velhas voltaram-se na direção do som e Tia Nastácia, que tinha melhor vista, enxergou-os logo.

         – Lá vêm vindo eles, sinhá! E vêm puxando uma coisa esquisita… Quer ver que caçaram alguma paca?

         Aproximaram-se os heróis. Penetraram no terreiro. Narizinho, de longe, gritou:

         – Adivinhe, vovó, o que matamos!

         Dona Benta respondeu:

         – Uns danadinhos como vocês são bem capazes de terem matado alguma paca…

         A menina deu uma risada gostosa.

         – Qual paca, nem pêra paca, vovó! Suba!

         – Então, algum veado – lembrou a velha, começando a arregalar os olhos.

         – Suba, vovó!

         – Porco-do-mato, será possível?

         – Suba, suba!

         Dona Benta principiou a abrir a boca.

         – Então foi capivara…

         – Vá subindo, vovó!

         A boa senhora não sabia como subir além duma capivara, que era o maior animal existente por ali. Narizinho, então, chegou-se para ela e disse, fazendo uma careta de apavorar:

         – Uma onça, vovó!

         O susto de Dona Benta foi o maior da sua vida – tão grande que caiu sentada, com sufocação, exclamando:

         – Nossa Senhora da Aparecida! Esta criançada ainda me deixa louca…

         Mais corajosa, a negra aproximou-se, viu que era mesmo onça e:

         – O mundo está perdido, sinhá – murmurou, de mãos postas. – É onça mesmo…

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