MONTEIRO LOBATO
Caçadas de Pedrinho
Capítulos 5 e 6
5 – A defesa estratégica
– Eles mataram minha esposa! – clamava com voz trêmula de cólera um enorme onção (como dizia a Emília). – Estou viúvo da minha querida onça por artes daqueles meninos daninhos do sítio de Dona Benta. Mataram-na e levaram-na de arrasto, amarrada com cipós, até o terreiro da casinha onde moram. Tiraram-lhe a pele, que depois de esticada e seca ao sol está servindo de tapete na varanda. Ora, isto é crime que pede a mais completa vingança. Guerra, pois! Guerra de morte a essa ninhada de malfeitores.
– Guerra! Guerra! – exclamaram as jaguatiricas e suçuaranas e cachorros-do-mato e irarás ali reunidas (como queria a Emília).
O onço agradou-se daquele entusiasmo.
– Combinemos o seguinte – disse ele. – Amanhã de manhã cercaremos a casa de modo que ninguém escape. As irarás e cachorros-do-mato guardarão os lados e nós, onças, atacaremos pela frente.
– Bravos! Bravos! Assim o faremos! – gritaram, em coro, as feras.
– Assaltaremos a casa – prosseguiu o viúvo – e mataremos todos os seus moradores.
– Sim, matá-los-emos a todos! – repetiu o coro.
– E depois os comeremos um por um!
– Sim, sim, comê-los-emos a todos, um por um! – uivou a bicharia, com as línguas vermelhas a lamberem a beiçaria feroz.
A assembleia dissolveu-se, indo cada qual para sua toca sem que nenhuma daquelas feras pensasse em caça naquele dia. Estavam a preparar uma fome especial para o almoço de carne humana que iam ter no dia seguinte.
Os besouros espiões tudo ouviram do seu galhinho e lá se foram, a zumbir, dar parte a Emília dos grandes acontecimentos. A boneca estava ansiosa por eles, visto como não os tinha visto na véspera.
– Então? – perguntou logo que os dois sonsos entraram na varanda como se fossem besouros à-toa, desses que se deixam atrair pela luz dos lampiões.
– É amanhã o ataque – responderam os dois besouros, que eram gêmeos e sempre falavam e agiam juntos. — As onças acabam de resolver isso numa reunião que tiveram debaixo da Figueira-Brava. Os cachorros-do-mato e as irarás guardarão os lados da casa, e as onças, guiadas pelo onço viúvo, darão o assalto. Também juraram matar e comer a todos.
Emília não empalideceu de susto, nem tremeu que nem vara verde, como aconteceria se ela fosse gente de verdade. Emília era a mais corajosa boneca que ainda existiu no mundo. Apenas disse:
– Isso de dizer que cerca e assalta e mata e devora é fácil. O difícil é cercar, assaltar, matar e devorar realmente. Nós saberemos defender-nos. Que venham as tais onças duma figa!
Os dois besouros não deixaram de admirar-se daquele espantoso sangue-frio.
– Mas de que armas dispõem vocês para lutar contra tantas feras raivosas? – perguntaram eles gemeamente, isto é, cada um dizendo uma palavra. O modo dos besouros conversarem com a boneca era esse. Um dizia as palavras pares e o outro dizia as palavras ímpares.
– Não sei – respondeu Emília. – Isso é com Pedrinho, o nosso generalíssimo. Ele está estudando o assunto – e eu também. Não sei ainda o que o General Pedrinho vai fazer, mas sei o que vou fazer. Pensei, pensei e repensei sobre o caso e já tenho cá uma ideia que vale ouro em pó.
– Qual – disse o primeiro besouro, é – disse o segundo, essa – continuou o primeiro, ideia? – concluiu o segundo.
– Não posso dizer em voz alta – respondeu Emília. – Só ao ouvido – e chegando-se bem pertinho dos gêmeos cochichou-lhes ao ouvido a sua ideia pelo mesmo sistema, isto é, dizendo a palavra par ao besouro número 1 e a palavra ímpar ao besouro número 2. Os besouros admiraram-se da esperteza da boneca e partiram – zunn! – a fim de cumprir as ordens recebidas.
Logo que os viu se sumirem no espaço, Emília foi correndo contar a Pedrinho o que acabava de ouvir dos seus espiões de casaca preta.
Pedrinho já havia resolvido o problema da defesa.
— Como não temos armas de fogo para enfrentar as onças – disse ele – lembrei-me do seguinte. Faço uma porção de pernas de pau bem compridas; um par de pernas para cada morador do sítio, inclusive o Marquês e as galinhas. Quando as onças nos atacarem, subiremos sobre essas pernas de pau, bem lá no alto – e quero ver!…
– E se as onças também subirem pelas pernas de pau acima? – perguntou a menina.
– Impossível – respondeu ele. – Além de serem pernas muito compridas e de bambu, que é liso, ainda serão ensebadas. Cada uma corresponderá a um verdadeiro pau-de-sebo. Nem macaco será capaz de subir.
Foi considerada ótima a ideia e Pedrinho correu em busca da foice e do serrote. Com a foice cortou no bambuzal próximo meia dúzia de compridas varas de bambu, e com o serrote serrou-as do tamanho necessário. Depois, com um formão, abriu furos, nos quais fixou um estribo, isto é, uma travessinha em que um pé pudesse apoiar-se.
Prontas que foram as pernas de pau, tinham de exercitar-se um bocado. Nada mais fácil do que o equilíbrio sobre pernas de pau, mas mesmo assim não dispensa um pouco de prática. Quem começou foi Pedrinho, e como as pernas fossem muito altas teve de trepar a uma escada para colocar-se sobre elas. Assim fez, dando em seguida umas passadas tontas pelo terreiro, até acertar o equilíbrio. Em poucos minutos ficou tão hábil naquele pernilonguismo que até parecia ter anos de experiência.
Vendo a facilidade, Narizinho imitou-o. Trepou à escada e ajeitou-se sobre o par de pernas que lhe cabia. Também em minutos ficou adestrada a ponto de dar carreirinhas.
Emília e o Visconde não ficaram atrás. Eram jeitosos. Restava Rabicó.
– Vai começar a encrenca – disse Narizinho, quando chegou a hora do ilustre Marquês.
Assim aconteceu. A dificuldade principiou com aquele negócio de Rabicó ter quatro pernas, em vez de duas, como todas as criaturas decentes – os homens, as galinhas, as escadas. Rabicó tinha duas pernas mais que os outros, inutilíssimas pernas, porque se uma criatura pode viver muito bem com duas, ter quatro é ter pernas demais.
– Se eu tivesse clorofórmio e instrumentos cirúrgicos, fazia uma operação em Rabicó, transformando-o em bípede. Não deixa de ser uma vergonha um quadrúpede em nosso bando – disse Pedrinho.
Seguramente uma hora foi gasta naquilo de amarrar quatro pernas de pau nas perninhas do leitão e fazê-lo equilibrar-se sobre os espeques. Bem que ele esperneou, gritou, como se o estivessem matando com uma faca de ponta bem pontuda. Atraída pelos seus gritos, Tia Nastácia apareceu na porta da cozinha para ver o que era – e quase desmaiou de susto vendo o bandinho lá em cima, pernejando pernilongalmente pelo terreiro.
– Corra, sinhá! – gritou para dentro. – Venha ver o “felómeno” que
aconteceu com a criançada. Está tudo pernilongo!…
Dona Benta apareceu à janela e assombrou-se da habilidade com que seus netos corriam e brincavam sobre pernas daquele comprimento, como se tivessem nascido pernaltas.
– Cuidado! – exclamou ela. – Se um de vocês perde o equilíbrio e vem ao chão, esborracha o nariz para o resto da vida. Mas que ideia foi essa, meninos?
Não houve remédio senão explicar-lhe tudo, mesmo porque Dona Benta e Tia Nastácia tinham também de colocar-se sobre tais pernas quando as onças chegassem.
— Às onças vão atacar o sítio amanhã, vovó, umas cinquenta – disse Pedrinho – e como não temos carabinas com que nos defender, a defesa que achei foi esta.
– Onças? Cinquenta? – repetiu Dona Benta, com os olhos arregaladíssimos.
– Quem contou semelhante coisa?
– Os besouros gêmeos da Emília, vovó – disse Narizinho. – Acabam de nos avisar que as onças, para vingarem a morte da que matamos, organizaram um ataque ao sítio para amanhã.
As duas pobres velhas ficaram na maior aflição do mundo, como era natural. Com semelhantes travessuras, o terrível bandinho acabaria dando cabo delas, não havia dúvida. Tia Nastácia, de olhos arregalados do tamanho de xícaras de chá, até perdeu a fala. Limitava-se a fazer pelo-sinais, um em cima do outro.
– Mas isto não tem propósito, Pedrinho! – ralhou Dona Benta. – Vocês põem-me doida. Onças e logo cin-quen-ta!… Como irei arranjar-me aqui embaixo, sozinha com Tia Nastácia?
– O remédio, vovó, é a senhora e Tia Nastácia meterem-se em pernas de pau também. Olhe, as suas já estão ali prontinhas, feitas sob medida – e as de Tia Nastácia são aquelas acolá…
A aflição das duas velhas cresceu ainda alguns pontos. O medo de serem comidas pelas onças se somou ao medo de caírem de cima de tão compridas pernas. Mas que fazer? Ficarem embaixo, sozinhas, era suicídio puro, porque seriam fatalmente comidas pelas onças.
Dona Benta cocou a cabeça, desanimada.
– Inútil procurar outra saída, vovó – disse Pedrinho. – As onças amanhã de manhã estarão aqui para o assalto e ou a senhora se utiliza desta defesa pernil que inventamos, ou deixa-se devorar viva. Escolha.
Não havia escolha possível e, apesar dos seus sessenta anos e dos seus vários reumatismos, a pobre Dona Benta teve de trepar na escada e ajeitar-se sobre o par de andaimes que Pedrinho lhe destinara.
Custou! Além de ter os músculos emperrados, a boa velhinha era medrosíssima. Por várias vezes quis desistir, e só não desistiu porque os meninos não cessavam de lembrar que nesse caso seria fatalmente devorada, como a avó da Menina da Capinha Vermelha. Afinal aprendeu o equilíbrio, dando uns passos muito desajeitados pelo terreiro.
– Serve – disse Pedrinho, que dirigia a aprendizagem. – Já dá para escapar de onça. Tratemos agora de Tia Nastácia.
Aí é que foi a dificuldade. A pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó e Dona Benta somados. Quando depois de inúmeras tentativas, ia se tenteando sobre as pernas de pau, perdeu de súbito o equilíbrio e veio ao chão, num berro.
Felizmente caiu sobre um varal de roupa e não se machucou.
– Não trepo mais nesses andaimes – exclamou ela, ainda enganchada no varal. – Prefiro que as onças me comam viva. Figa, rabudo!…
Mas isso de preferir que as onças nos comam vivos é conversa. Na hora em que onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir. A pobre da Tia Nastácia ia ficar sabendo disso no dia seguinte…
6 – Aparece uma nova menina
De noite houve discussão das hipóteses que poderiam dar-se no dia seguinte. Dona Benta disse:
– Concordo que, se estivermos sobre pernas de pau, as onças não poderão apanhar-nos. Mas depois? E se elas resolverem ficar por aqui até que nos cansemos e sejamos forçados a descer?
Era uma hipótese bastante provável, que não havia ocorrido a Pedrinho. Sim; se as onças ficassem por lá, como era?
– Hão de cansar-se e ir-se embora – sugeriu Narizinho. – Quando a fome apertar, não fica nenhuma aqui.
– E se se revezarem? – lembrou Dona Benta. – E se, enquanto a metade das onças for caçar, a outra metade ficar montando guarda?
Pedrinho não soube responder, nem Narizinho, nem o Visconde. Ficaram todos de nariz caído, pensando nessa terrível hipótese. Quem respondeu foi a Emília, que andava toda misteriosa, piscando cavorteiramente, como quem tem no bolso a solução dum grande problema.
– Não tenham medo de coisa nenhuma – disse ela, por fim. – Arranjei umas granadas de mão, ótimas para espantar onças.
– Granadas de mão? – repetiu Pedrinho franzindo a testa. – Que história é essa, Emília?
– Uma surpresa. Preparei as granadas com a ajuda dos meus besouros. Fiz cinco, número suficiente para espantar até cem onças.
– E onde estão?
– No telhado.
– Por que no telhado?
– Botei-as lá para estarem ao meu alcance na hora em que as onças aparecerem e nós estivermos sobre as pernas de pau. Também botei lá pão com manteiga, um guarda-chuva e mais coisas. Pode nos apertar a fome, pode chover…
Narizinho estava intrigadíssima com o negócio das granadas.
– Explique isso melhor, Emília. Que granadas são essas?
– Nada posso dizer. É segredo. Só adiantarei que são de cera e do tamanho de laranjas-baianas.
Granadas de cera, do tamanho de laranjas-baianas! Ou a boneca estava de miolo mole… ou… Em todo o caso, como a Emília era uma danadinha capaz de tudo, os meninos e as velhas sossegaram um pouco mais.
A razão de Tia Nastácia haver desistido das pernas de pau era que não acreditava muito no tal assalto das onças. “Isso há de ser imaginação dessas crianças”, refletia de si para si. “Os diabretes vivem com a cabeça quente e inventam coisas para atormentar os mais velhos. Não acredito.”
Dona Benta igualmente não acreditou – no princípio. Depois, lembrando-se de outras coisas inda mais espantosas que já tinham acontecido, achou melhor acreditar.
– Qual nada, sinhá! – insistiu a negra. – Onde já se viu onça andar em bando a atacar casa de gente? Estou com setenta anos e nunca ouvi falar de semelhante coisa.
– Nem eu. Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma gentinha – e aí estão a Emília e o Visconde de Sabugosa.
– Lá isso é – resmungou a preta, pendurando o beiço.
– Se isso é, como vai você arranjar-se amanhã, se as onças vierem mesmo e nos atacarem aqui?
– Como vou me arranjar? – repetiu Tia Nastácia, cocando a cabeça. – Não sei. Francamente não sei. Na hora veremos…
Ela continuava com a esperança de que o tal ataque das cinquenta onças não passasse duma “pulha” de Pedrinho para meter medo aos “mais velhos”.
Foram dormir. Cada qual sonhou pelo menos com uma onça. Emília, porém, teve sonhos cor-de-rosa, a avaliar-se pelos sorrisos que animaram seu rostinho durante a noite inteira. É que estava sonhando com as suas famosas granadas de cera…
Pela madrugada alguém bateu na porta da rua – toque, toque, toque… Pedrinho pulou da cama, assustado. “Seriam já as onças?” Os outros também se ergueram, inclusive Dona Benta e Tia Nastácia. Reuniram-se todos na sala de jantar, à escuta.
Nova batida – toque, toque, toque…
– Parece batida de nó de dedo – sussurrou Narizinho. – Onça não bate assim.
Pé ante pé, a menina aproximou-se da porta e espiou pelo buraco da fechadura.
Não viu onça nenhuma. Em vez disso viu… outra menina!
– Uma menina! – exclamou Narizinho, batendo palmas. – Assim do meu tamanho, lindinha! Quem sabe se não é Capinha Vermelha?…
Abro ou não a porta, vovó?
– Pois se é uma menina, abra. Veja primeiro se não vem algum lobo atrás,
como aquele que acompanhou Capinha.
Narizinho espiou de novo e não viu lobo nenhum. Em vista disso, abriu. Uma menina muito desembaraçada, da mesma idade que ela, entrou.
– Boa madrugada para vocês todos! Boa madrugada, Dona Benta! Boa madrugada, Tia Nastácia!
A menina conhecia a todos da casa e, no entanto, não era conhecida de nenhum dali. Quem seria?
– Quem é você, menina? – perguntou Dona Benta, meio desconfiada.
– Não me conhecem? – tornou a desconhecidazinha com todo o
espevitamento. – Pois sou a Cléu…
Foi uma alegria geral. Não havia ali quem não conhecesse de nome a famosa Cléu, que falava pelo rádio e de vez em quando escrevia cartas a Narizinho, dando ideias de novas aventuras.
– Viva, viva a Cléu! – exclamaram todos, numa grande alegria.
– Pois é – disse a menina sentando-se sobre a mesa – cá estou para conhecê-los pessoalmente. Desde que li as primeiras aventuras de Narizinho, fiquei doida por entrar para o bando. Moro em São Paulo, uma cidade muito desenxabida, com um viaduto muito feio e gente apressada, passeando pelas ruas. Enjoei do tal São Paulo e vim morar aqui. Fiquem certos duma coisa: o único lugar interessante que há no Brasil é este sítio de Dona Benta.
Todos mostraram-se contentíssimos. Dona Benta, entretanto, disse:
– Mas veio em má ocasião, Cléu. Imagine que justamente hoje o sítio vai ser atacado por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato.
– Ótimo! – respondeu a menina. – Um dos meus sonhos sempre foi ser atacada por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato, de modo que adivinhei vindo em momento tão propício…
– Ché… – exclamou lá consigo Tia Nastácia. – Agora é que o sítio pega fogo mesmo. Menina de “propícios”… Credo!
O dia estava clareando e, como as onças podiam chegar dum momento para outro, Pedrinho tratou de ensinar a Cléu o uso das pernas de pau, explicando-lhe que fora esse o meio que descobrira para se defenderem do ataque.
Tia Nastácia foi para a cozinha acender o fogo para o café. Estava de olho parado, pensando, pensando…
– A Cléu aqui! – murmurava ela, olhando para o fogo. – Ché…