Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho

MONTEIRO LOBATO

 Caçadas de Pedrinho

 Capítulos 7 e 8

 

7 – O assalto das onças

               Depois de tomado o café com farinha de milho, Pedrinho pendurou o Visconde no galho mais alto duma árvore próxima, armado do binóculo de Dona Benta, para dar aviso da chegada das onças. O nobre fidalgo, porém, sempre tivera o costume de acordar tarde, ali pelas dez horas, mais ou menos. Em vista disso resolveu dormir no seu galhinho, certo de que só lá pelas dez horas as onças viriam. Dormiu e, portanto, não pôde dar aviso da chegada das onças, que já estavam bem perto. Quem percebeu a aproximação delas foi a Emília, que tinha um faro maravilhoso.

               – Estou sentindo no ar um cheirinho de onça! – exclamou, em certo momento. Por força da sugestão ou porque de fato andasse pelo ar algum cheiro de onça, todos ergueram o nariz e sentiram um forte cheiro de onça. Como é então que o Visconde não dava nenhum aviso?     Pedrinho correu ao terreiro e gritou:    

               – Avise duma vez, palerma! Não vê que as onças já estão chegando? O pobre fidalgo acordou com o berro e ainda cheio de sono espiou pelo binóculo, mas em sentido contrário, de modo que viu as onças muitíssimo longe.

               – Vêm, sim – disse ele -, mas tão longe, tão longe e tão pequenininhas, que até que cresçam e cheguem dá tempo de… Não pôde concluir. Escorregou do galho e veio de ponta-cabeça ao chão. Mas não havia tempo de acudir o pobre Visconde, caído de mau jeito bem em cima duma lama onde ficou de cabeça enterrada. O tempo era o exatamente necessário para se colocarem sobre as pernas de pau. Corre-corre geral. Cada um tratou de apanhar o par de pernas que lhe pertencia e de ajeitar-se em cima. Em três minutos o terreiro ficou povoado daqueles estranhos bípedes pernaltas. A primeira coisa que lá do alto viram foram as granadas de cera da Emília, arranjadinhas sobre o telhado. Pedrinho quis examiná-las. Não pôde. A boneca espantou-o com um grito.

               – Não se aproxime! Não bula, não me estrague o capítulo!…

               E Tia Nastácia? Essa ficou embaixo, rezando e riscando a cara e o peito de trêmulos pelo-sinais. Apesar de descrente da vinda das onças, que lhe parecia coisa impossível, começou a sentir um horrível medo. E se viessem mesmo? pensava ela. E se o tal cheirinho que a boneca sentira no ar fosse mesmo cheiro de onça? Súbito – Miau! Um horrível miado ressoou no pasto. Devia ser o sinal de ataque do onço viúvo.  Logo em seguida surgiram de dentro de todas as moitas uma infinidade de caras de onças e jaguatiricas e irarás e cachorros-do-mato, com olhos ameaçadores e dentuças arreganhadas. Só então a pobre negra se convenceu de que tinha errado. Correu qual uma desvairada às pernas de pau que Pedrinho lhe tinha feito. Nada achou. A Cléu se havia utilizado delas. Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! As onças também trepariam pelos degraus. Seus olhos esbugalhados procuravam inutilmente a salvação.

               – Trepe no mastro! – gritou-lhe a Cléu.

               Sim, era o único jeito – e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.

               Foi a continha. A onçada toda já estava no terreiro. A princípio, os assaltantes não perceberam o truque inventado por Pedrinho para lográ-los. Os animais de quatro pés raro olham para o alto e, como os pernaltas guardassem o mais absoluto silêncio, as onças não os viram lá em cima de seus espeques. Entraram pela casa adentro em procura deles e, não os encontrando, mostraram-se desapontadíssimos.

               – Fugiram, os covardes! – uivou, com os olhos chispantes de cólera, o onço viúvo. – Alguém os avisou e eles fugiram…

               Nisto, uma cuspidinha da Emília caiu-lhe bem no focinho. O onço olhou para cima e sorriu, lambendo os beiços.

               – O nosso “almoço” não fugiu, não! – exclamou, contentíssimo. – Lá estão todos os “pratos”, cada qual em cima de dois “espetos”.         Toda a bicharia olhou para cima, com água na boca. Não tinham comido na véspera, o apetite era forte e viram que iam ter uma bela variedade de petiscos – um menino, duas meninas, um leitão, uma boneca, uma velha branca e uma velha preta. Ótimo!

               – Isso é que é almoço! – observou uma irará. – Vai ser um banquete dos bons… Mas como devorar aqueles pernaltas?

               O onço, que era o mais forte do bando, experimentou o pulo. Deu quatro ou cinco pulos formidáveis, os maiores de sua vida – mas inutilmente. Os espetos tinham quatro metros de altura e os seus pulos não iam acima de três metros e noventa e cinco centímetros.

               – Com pulo não vai – disse ele. – Precisamos inventar outra coisa. Que há de ser?

               – Tenho uma ideia – latiu um cachorro-do-mato de talento. – Eles não podem ficar lá em cima toda a vida. Hão de descer logo que a fome aperte. Minha ideia é ficarmos aqui de plantão até que desçam.

               – Sim – disse o onço, que era burríssimo – mas se a fome aperta para eles, também aperta para nós – e como é?

               – Revezamo-nos – resolveu o cachorro. – Metade do bando vai caçar e almoçar no mato, enquanto a outra metade fica de guarda. Desse modo poderemos permanecer aqui a vida inteira, se for preciso.      – Eu não disse? – cochichou Dona Benta. – As malvadas vão revezar-se e estamos perdidos…

               A situação era gravíssima. Cléu, que não tinha prática de aventuras maravilhosas, fez bico de choro. As onças estavam decididas a tudo; e, se os pernaltas podiam resistir por muitas horas, o mesmo não acontecia à pobre Tia Nastácia, que já mal se aguentava no mastro.

               – Vou cair! – berrou ela, de repente. – Não aguento mais. Minhas mãos já começam a escorregar…

               – Estão vendo? – disse o onço, passando a língua pela beiçaria. – O nosso banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo que não aguenta mais e vai descer…

               – Emília! – gritou Pedrinho. – Estamos esperando por você! Que venha a surpresa das granadas.

               A boneca tratou de tirar partido da situação. – Muito bem – disse ela – mas só lançarei as minhas granadas sob três condições.

               – Diga depressa!

               – Primeiro: que todos reconheçam que sou a mais esperta e inteligente do bando. Segundo: que Dona Benta me dê um regadorzinho de jardim, dos verdes – de outra cor não quero. Terceiro que…

               – Socorro! – berrou, num tom de cortar a alma, a pobre Tia Nastácia, que não podendo mais aguentar-se no mastro vinha escorregando lentamente.

               Emília não esperou pela resposta às suas condições. Aproximou-se do telhado, tomou as granadas e – zás! – arremessou-as contra o bando de feras. As granadas romperam-se ao bater nos alvos e deixaram sair de dentro enxames de caçunungas, que são as mais terríveis vespas que existem. Foi uma tragédia! As vespas ferraram nos focinhos e olhos das onças e irarás e cachorros-do-mato, fazendo-os fugirem dali numa desabalada louca. Em meio minuto o sítio ficou inteiramente limpo de bicho feroz.

               Não foi sem tempo. Tia Nastácia já estava no chão, escarrapachada ao pé do mastro, mais morta do que viva, suando o suor frio da morte. Se as granadas da Emília não tivessem produzido aquele maravilhoso resultado, a boa negra realmente não escaparia de virar furrundu de onça…

               – Viva! Viva a Emília! – gritou Cléu, entusiasmada com a proeza da boneca.

               – Viva! Viva a rainha das bonecas! – gritaram os outros. Prática como era, Emília tratou de aproveitar aquele entusiasmo para ganhar coisas. Obteve de Dona Benta a promessa dum lindo regadorzinho verde; de Pedrinho apanhou, ali na hora, cinco tostões novos; e de Narizinho conseguiu uma mobília de boneca.

               – E você, Cléu, que me dá?

               – Um beijo, Emília. A boneca fez um muxoxo de pouco-caso. Depois, voltando-se para Tia Nastácia:

               – E você, pretura? Tia Nastácia não pôde responder. O susto por que passara fora tanto que havia perdido a voz. Foi preciso darem-lhe a beber uma caneca d’água. Só então pôde abrir a boca e dizer:

               – Você me salvou a vida, Emília, e não há o que pague semelhante coisa. Dou tudo quanto me pedir.

               – Quero aquele pito de barro em que você pita – respondeu a boneca. Foi assim que Emília ganhou o célebre pito de barro que mais tarde deu de presente ao Pequeno Polegar .

  

     8 – Os negócios da Emília

               Desde essa aventura ficou Pedrinho com mania de caçadas – mas caçadas de feras africanas. Queria leões, tigres, rinocerontes, elefantes, panteras, e queixava-se a Dona Benta (como se a boa senhora tivesse culpa) da pobreza do Brasil a respeito de feras. Chegou a propor-lhe que vendesse o sítio para comprar outro bem no centro de Uganda, que é a região da África mais rica em leões.

               – Aqui nem dá gosto morar, vovó – dizia ele, torcendo o nariz. – Fora o jaguar, que outra fera possuímos? Só paca e veado e anta – uns pobres herbívoros que têm medo de gente. Eu queria mas era enfrentar peito a peito um rinoceronte!…

               Dona Benta arrepiava-se com aquilo. Lera muita coisa sobre as grandes feras africanas e sabia que nenhuma existe mais traiçoeira e feroz do que o rinoceronte, com aquele seu terrível chifre no meio da testa. A pobre senhora esfriava da cabeça aos pés só ao lembrar-se do horror que seria uma chifrada de tal espeto.

               – Veja, Nastácia, para que deu Pedrinho agora! – dizia ela. – Quer caçar rinocerontes… Não sei por quem puxou essa terrível inclinação.

               Tia Nastácia benzia-se. Ignorava o que fosse um rinoceronte, não tendo visto nenhum, nem no cinema, nem em sonho; mas a simples palavra lhe metia medo. “Rinoceronte, credo!”

               – E o pior – continuou Dona Benta – é que quando estas crianças encasquetam fazer uma coisa, fazem mesmo. Elas viram e mexem e acabam caçando algum rinoceronte. Você vai ver.

               E assim aconteceu. Parece fábula, parece mentira do Barão de Münchausen e, no entanto, é a verdade pura: os netos de Dona Benta caçaram um rinoceronte de verdade!…

               – Como?

      – Esperem lá. Algum tempo depois do assalto das onças havia chegado ao Rio de Janeiro um circo de cavalinhos que era uma verdadeira arca de Noé. Trazia enorme bicharada – seis leões, três girafas, quatro tigres, zebras, hienas, focas, panteras, cangurus, jiboias e um formidável rinoceronte. Quando Pedrinho leu nos jornais a notícia do grande acontecimento, ficou assanhadíssimo. Quis ir ao Rio ver as feras, chegando a escrever a Dona Tonica, sua mãe, pedindo licença e meios. Antes, porém, de receber qualquer resposta, um fato sensacional se deu no Rio: o rinoceronte arrebentou as grades da jaula durante certa noite de temporal e fugiu. Fugiu para as matas da Tijuca, tomando depois rumo desconhecido.

               Esse fato causou o maior rebuliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários.

               “UM RINOCERONTE INTERNA-SE NAS MATAS BRASILEIRAS”, era o título da notícia que vinha em letras graúdas em todos os jornais. Durante um mês ninguém cuidou de mais nada. Grande número de bombeiros e soldados da polícia foram mobilizados. Os melhores detetives do Rio aplicavam toda a sua esperteza em formar planos para a captura do misterioso animal. As forças do norte que andavam caçando o Lampião deixaram em paz esse bandido para também se dedicarem à caça do monstro. Dizem até que o próprio Lampião e seus companheiros pararam de assaltar as cidades para se entregarem ao novo esporte – a caça ao rinoceronte.

               Onde estaria ele? Nas florestas do Amazonas? Nas matas virgens do Espírito Santo? Ninguém sabia. Telegramas chegavam de toda a parte sugerindo pistas. Um de Manaus dizia: “Numa floresta, a dez léguas desta cidade, foi visto, dentro dum cerrado de taquaruçus, o vulto negro dum monstro que parece ser o tal rinoceronte. Pedimos providências”.

               Cinco detetives e numerosos bombeiros foram mandados de avião para aquele ponto, a fim de investigar. Descobriram tratar-se duma vaca preta que ficara entalada na moita de taquaruçus…

               Outro telegrama do mesmo gênero veio da cidade de Cachoeiro, no Espírito Santo. “Nas matas vizinhas ouvem-se urros que não são de onça, nem de nenhum animal conhecido por aqui. Pedimos enérgicas providências.”

               O avião dos detetives voou para lá. Era um papagaio que fugira dum jardim zoológico, no qual aprendera a imitar o urro de todos os animais.

               Onde estará o rinoceronte? – eis a pergunta que, da manhã à noite, se repetia pelo país inteiro. Onde poderia ter-se escondido a tremebunda fera? Ninguém possuía elementos para responder. Ninguém sabia. Ninguém – exceto… Emília!

               Parecerá um absurdo. Parecerá invenção de gente sem serviço e, no entanto, é a verdade pura. Só a pequenina boneca do sítio de Dona Benta sabia realmente onde estava escondido o monstro!…

               O caso foi assim. Logo que, naquela noite de temporal, o rinoceronte escapou da jaula e se internou nas matas da Tijuca, deu de andar sem rumo, e foi varando, sempre para diante, num trote respeitável até que, pela madrugada, surgiu na mata virgem do sítio de Dona Benta. Gostou do lugar e resolveu ficar por ali, pastando a viçosa folhagem das ervas que encontrou.

               A presença do rinoceronte causou grande rebuliço entre os habitantes daquela mata. A capivara, que vive tanto em terra como em água, atirou-se ao rio e não teve mais coragem de sair. As onças fugiram. Os macacos empoleiraram-se na mais alta de todas as árvores. Nenhum animal podia compreender um bicho tão estranho e monstruoso. Observando aquilo, os besouros da Emília resolveram correr e avisá-la. Foram ter com a boneca. – Apareceu lá na mata um bicho, que não se parece com bicho nenhum nosso conhecido – informaram eles gemeamente.

               – Grande? – perguntou a boneca.

               – Terá o tamanho duma casinha de caipira.

               Emília calculou logo que fosse algum boi tresmalhado mas, pela descrição que os besouros fizeram, viu logo que não podia ser boi. De repente, teve uma ideia.

               – Escutem: o tal monstro não é preto?

               – Sim.

               – Não tem o couro enrugado?

               – Enrugadíssimo.

               – Não tem um chifre só no meio da testa?

               – Isso mesmo. Um chifre pontudo.

               – Come gente?

               – Não, só come capim e folhas de árvore.

               Emília pôs-se a refletir, com a mãozinha no queixo. Ou era unicórnio, animal fabuloso que não existe, pensou consigo, ou era rinoceronte, e como Emília andasse com a cabeça cheia de rinocerontes, de tanto ouvir Pedrinho ler as notícias do rinoceronte que fugira do circo, imediatamente percebeu que se tratava do mesmo.

               – É ele! – exclamou, em voz alta. – Que sorte tem Pedrinho! Quis um rinoceronte e um rinoceronte apareceu!…

               – Ele quem? – indagaram os besouros, com as testinhas franzidas.

               – ELE! – repetiu a boneca, fazendo uma tal cara de pavor que os besouros se puseram a tremer. – ELE É ELE, não sabem?

               Emília teve preguiça de ensinar àqueles burrinhos o que era um rinoceronte. E para ainda mais os assustar, fez outra cara horrendíssima e repetiu em tom cavernoso:

               – ELE!…

               Os dois besouros desmaiaram.

               Emília deixou-os lá e voltou para casa sem pressa nenhuma, pensando, pensando. Ciganinha como era, costumava tirar partido de tudo. Por isso estava se tornando a boneca mais rica do mundo. O acaso a fizera descobrir um rinoceronte. Pois bem: Emília iria vender esse rinoceronte a Pedrinho…

               Quando entrou na varanda já trazia o seu plano formado.

               – Pedrinho – disse ela -, tenho um bom negócio a propor.

               O menino estava espichado na cadeira preguiçosa, lendo os últimos jornais recebidos. Sem tirar os olhos da notícia que lia, respondeu:

               – Já vem ela com os tais negócios! Negócios de boneca – bobagens…

               – Trata-se dum negócio muito sério, Pedrinho. Quando você souber o que é, vai arregalar um olho deste tamanho!

               – Pois então desembuche logo e não amole – disse ele, sem tirar os olhos do jornal. – Estou lendo uma notícia muito interessante sobre o rinoceronte fugido.

               Emília fingiu-se interessada.

               – Sim? E que diz a notícia?

               – Diz que tudo isto, toda esta história de rinoceronte fugido não passa duma formidável peta. Não existe rinoceronte nenhum. O diretor do circo inventou o caso apenas para reclame.

               – Que pena! – exclamou a boneca, fingindo tom compungido. – Seria tão bom se fosse verdade…

               – Eu logo vi que era peta – disse Pedrinho, querendo bancar o esperto. – Percebi desde o começo que se tratava duma formidável peta. Rinoceronte no Brasil! Impossível. Esses animais não suportam o nosso clima.

               Emília sorriu de tal jeito que o menino desconfiou.

               – De que está rindo assim, boba?

               – Da sua esperteza, Pedrinho. Bem diz Tia Nastácia que você é um alho…

               – Muito obrigado pelo elogio; mas, alho ou cebola, deixe-me em paz. Olhe, Emília, vá ver se eu estou no pomar, ouviu?

               – Então não quer fazer o negócio que venho propor?

               Pedrinho queria e não queria. Por fim, a curiosidade o venceu.

               – Que negócio é? Vamos, diga logo.

               Emília preparou-se para apresentar o negócio. Antes, porém, fez um rodeio.

               – Escute cá, Pedrinho. Quanto acha você que vale um rinoceronte no Brasil? Responda!

               O menino tonteou com o disparate. Não podia haver pergunta mais absurda e boba do que aquela. Ficou danado.

               – Foi para isso que me veio interromper a leitura do jornal? Ora, vá lamber sabão, ouviu?

               Novo sorriso finório da boneca, que disse:

               – Paz, paz! Não se queime. Responda à minha pergunta. Dê um preço qualquer.

               – Não amole, Emília. Se continua a insistir, leva um peteleco.

               – Não sabe – disse ela. – É natural. Um menino que jamais saiu do Brasil, que não esteve nem no Rio de Janeiro, é natural que não saiba o preço dum rinoceronte. Está desculpado…

               – Bobagem! – exclamou Pedrinho, queimado. – Então é preciso ter saído do Brasil, ter viajado pelo mundo, para saber uma coisa à-toa como essa? Basta um pouco de raciocínio.

               – Pois raciocine e responda à minha pergunta.

               Pedrinho pensou um bocado e disse:

               – Vale contos de réis. O valor das coisas depende da raridade delas, diz vovó. Numa terra onde haja centenas de rinocerontes, um deles vale… vale quanto? Vale o mesmo que um boi aqui ou uma vaca. Mas em terra onde não há nenhum, vale o que for pedido pelo seu dono. Eu, por exemplo, se fosse rico, era capaz de dar até trinta contos por um rinoceronte.

               – Bom. Se fosse rico, dava trinta contos. E quanto dá sendo pobre? Tinha coragem de dar por um deles o carrinho de cabrito?

               Esse carrinho de cabrito constituía o orgulho do menino. Fora presente do Manuel Carapina, um carpinteiro que passara lá uns dias, reformando o assoalho da casa. Pedrinho dava mais valor ao carrinho do que a todos os coches dourados de todos os reis da Terra – pela simples razão de que o carrinho lhe pertencia e os coches pertenciam aos reis. Mas um rinoceronte era um rinoceronte, de modo que a resposta do menino foi a que podia ser.

               – Um rinoceronte vale todos os carrinhos de cabrito do mundo inteiro – disse ele.

               – Pois eu tenho um belo rinoceronte à venda e se você quiser trocá-lo pelo carrinho, o negócio está feito.

               – Basta! – gritou o menino. – Se continua a amolar-me com essa história, vou lá no seu cantinho e quebro todos os seus brinquedos. – Disse e absorveu-se de novo na leitura dos jornais.

               Emília não contara com aquela saída. Percebeu que nem Pedrinho, nem ninguém no mundo jamais acreditaria que ela realmente tivesse um rinoceronte para vender – e desse modo estava arriscada a perder um grande negócio, talvez o melhor negócio de sua vida…

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