Monteiro Lobato – O Saci

O SACI

Capítulos 13, 14, 15 e 16

 

13 – Novas discussões

Tinham de esperar a meia-noite, porque só a essa hora, é que os duendes da floresta saem de suas tocas. Para matar o tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida na natureza.

— Você nunca poderá fazer ideia da vida encantada que temos por aqui — disse ele.

— Ora, ora! — exclamou o menino. — Não há o que os homens não saibam. Vovó tem lá uma História Natural que conta tudo.

O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho.

— Tudo? Ah, ah, ah!… Livros como esses não contam nem isca do que é, e estão cheios de invenções ou erros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteiro só para contar alguma coisa da vidinha deles. E quantos insetos existem? Milhões…

— Em todo caso — volveu Pedrinho — nós, homens, pomos o que sabemos nos livros e vocês sacis não escrevem coisa nenhuma. Nunca houve livros entre vocês, e quem não escreve obras não pode ensinar aos filhos o que sabe.

— Não temos livros — disse o saci — porque não precisamos de livros. Nosso sistema de saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a sabedoria de nossos pais, como vocês, homens herdam propriedades ou dinheiro. Nascer sabendo! Isso é que é o bom. Um pernilongo, por exemplo. Sabe como é a vidinha dele? Nasce na água, saído de um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda não é pernilongo — é o que vocês chamam “larva” — uma espécie de peixinho que nada e mergulha muito bem. Um dia essa larva cria asas, pernas compridas e voa. E que faz quando voa?

— Vai cantar a música do fiun e picar as pessoas que estão dormindo em suas camas. E isso o que esses malvadinhos fazem.

— Muito bem! — tornou o saci. — E quem ensina o pernilongo a fazer isso? Os pais? Não, por que depois de soltar os ovos na água os pais dos pernilonguinhos morrem. Os livros? Não, porque eles não têm livros. Pois apesar disso sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que no corpo das gentes há sangue, e que o sangue é o alimento deles. Sabem que as gentes moram em casas. Sabem que a melhor hora de sugar o sangue das gentes é de noite, porque estão dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma, ou que as aprendam nos livros, os pernilonguinhos logo que saem da água vão em busca das casas, entram, escondem-se nos escuros, esperam que todos durmam e sossegadamente picam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas. Depois escapam pelas janelas e voltam à mata ou outros sítios, em procura de aguinhas paradas onde porem os ovos. E assim eternamente. Sabem tudo direitinho — e ninguém os ensina. Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de si mesmos, como vocês têm tripas e estômago e pacuera.

Pedrinho teve de concordar que era assim mesmo. O saci continuou:

— E como fazem os pernilongos, assim também fazem todas as outras vidinhas aqui da floresta. Cada qual nasce sabendo fazer o certo — e não erram. Os grilos nascem sabendo abrir buracos. Há um inseto chamado bombardeiro. Se outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe no focinho um líquido que se evapora imediatamente e tonteia o inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro já está longe. Quem o ensina a fazer isso? Ninguém. Nasce sabendo. Certos besouros, quando querem pôr ovos, fazem o seguinte: pegam uma pequena quantidade de esterco e a vão rolando pelo chão com as patas detrás. Para quê? Para formar uma bola. Quando o esterco está uma bola bem redondinha, eles a furam e botam lá dentro os ovos. Quem ensina esses besouros a fazer essas bolas tão redondinhas? Os pais? Não! Algum livro? Não! Eles nascem sabendo.

— Sim — disse Pedrinho. — Nascem sabendo e nós temos de aprender com os nossos pais ou nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em não saber e aprender pelo estudo.

— Perfeitamente — concordou o saci. — Não nego o mérito do esforço dos homens. O que digo é que eles são seres atrasadíssimos — tão atrasados que ainda precisam aprender por si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não precisamos aprender coisa nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda a ciência da vida lá dentro ou ter de ir aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos erros?

O menino foi obrigado a concordar que o mais cômodo seria nascer sabendo.

— Sim, nesse ponto você tem razão, saci. Mas que é que faz todas essas vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende.

— Ah, isso é o segredo dos segredos! — respondeu o saci. — Nem nós sabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de cada criatura, bichinho ou plantinha, há uma força que a empurra para a frente. Essa força é a Vida. Empurra e diz no ouvido das criaturinhas o que elas devem fazer. A vida é uma fada invisível. E ela que faz o pernilongo ir picar as pessoas nas casas de noite; e que manda o grilo abrir buraco; e que ensina o bombardeiro a bombardear seus atacantes.

— Mas é invisível até para vocês sacis, que enxergam mais coisas do que nós homens? — perguntou Pedrinho.

— Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude ver a fada Vida. Só vejo os efeitos dela. Quando um passarinho voa, eu vejo o voo do passarinho, mas não vejo a fada dentro dele a empurrá-lo.

— Então ela deve ser como a gasolina dos automóveis. Sem gasolina os carros não andam.

— Perfeitamente — concordou o saci — mas com uma diferença: nos automóveis a gente vê e cheira a gasolina, mas a Gasolina-Vida ninguém ainda conseguiu ver nem cheirar.

— E morrer? Que é morrer? A Vida então acaba, como a gasolina do automóvel?

— A Vida muda-se de um ser para outro. Quando o ser já está muito velho e escangalhado, a Vida acha que não vale mais a pena continuar lidando com ele e abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A fada invisível diverte-se com isso.

Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisível também morava dentro dele, e o empurrava para a frente. Era quem o fazia ter fome e comer, ter sede e beber, ter sono e dormir, querer coisas e procurá-las. Mas um dia essa boa fada se enjoaria dele. Por quê? Porque ele já estaria de cabelos brancos e sem os dentes naturais, e com reumatismo nas juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o coração tão fraco que até para subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então a fada torceria o nariz e se enjoaria dele: — “Sabe que mais, Senhor Pedrinho, Você está um caco velho e eu não gosto disso. Vou procurar outro ente” — e o abandonaria e ele então morreria.

Essa ideia entristeceu Pedrinho, porque a ideia que não entristece ninguém é bem outra: é a ideia de não morrer nunca, nunca…

Conversou a respeito com o saci.

— Ora, ora! — disse este. — O que morre é o corpo só, a parte que em nós tem menos importância. A grande coisa que há em nós, e nos diferencia das pedras e dos paus podres, que é? A Vida. E essa não acaba nunca — muda-se dum ser para outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequena bateria daquela lâmpada elétrica que você tem se descarrega, a bateria morre — mas morreu a eletricidade? Não. Apenas mudou-se. Saiu daquela bateria e foi para outra, ou foi para as nuvens, ou foi para onde quis. Assim como a eletricidade não morre, a Vida também não morre. A Vida é uma espécie de eletricidade.

— Mas eu não queria que fosse assim — lamentou Pedrinho. — Tenho dó do meu corpo. Estas mãos, por exemplo, disse ele abrindo-as. Estou tão acostumado com elas… Desde pequenininhos que estas mãos fazem tudo o que eu quero, e fico triste de lembrar que um dia vão ficar paradas, mortas…

— Pior do que perder as mãos é perder os olhos — disse o saci. — Já reparou como é triste não ter olhos, ou tê-los e não ver nada? Feche os olhos bem fechados.

Pedrinho fechou-os bem fechados. O saci disse;

— Pois quando a fada invisível abandonar o seu corpo, Pedrinho, seus olhos vão ficar assim, cegos — como se não existissem, e nunca mais serão olhos, que hoje veem tanta coisa, verão coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais…

Pedrinho sentiu uma tristeza tão grande que quase chorou — mas o saci deu uma grande risada.

— Bobo! O que nesses seus olhos enxerga, não são os olhos: é a fada invisível que há dentro de você. A fada é como o astrônomo no telescópio; e os olhos são como o telescópio do astrônomo. Qual é o mais importante: o telescópio ou o astrônomo?

— E o astrônomo — disse Pedrinho.

— Pois então alegre-se, porque o astrônomo não morre nunca. O telescópio é que se desarranja e quebra…

 

14 – O medo

Longamente filosofaram os dois, lá debaixo da grande peroba que os abrigava do sereno da noite. A vida noturna tão intensa quanto a vida diurna. Entre os homens tudo para durante certa parte da noite, mas na floresta a vida continua, porque uns seres dormem de dia e vivem de noite e outros dormem de noite e vivem de dia. Assim que os sabiás, sanhaços e tico-ticos se recolhem aos seus pousos ou ninhos, começam a sair das tocas as corujas e morcegos. E as borboletas e mariposas noturnas vêm substituir as borboletas e mariposas diurnas, que adormecem logo que chega a noite. E as caças medrosas, tão perseguidas pelos homens, saem de noite a pastar e beber água nos rios. E os vaga-lumes que de dia não deixam os lugares escuros, começam a piscar por toda parte com as suas lanterninhas.

— Esses eu sei — disse o menino. — A vida desses animais eu conheço mais ou menos. O que me interessa agora é a vida dos tais “entes das trevas”, como diz tia Nastácia — os misteriosos — os que uns dizem que existem e outros juram que não existem.

— Compreendo — disse o saci. — Você refere-se aos chamados “duendes”, “monstros”, “capetas”, “gnomos” etc…

— Isso mesmo, amigo saci. Ando desconfiando que tudo não passa de sonho. Eu não via nada na garrafa, antes de ter caído naquela modorra. Assim que a modorra chegou, você apareceu na garrafa e começou a falar. Desconfio que estou sonhando… Desconfio que isto é um pesadelo… Nos pesadelos é que aparecem monstros horríveis. Por quê? Por que é que há coisas horríveis?

— Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o que é medo?

O menino gabava-se de não ter medo de nada exceto de vespa e outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é uma coisa e saber que o medo existe é outra. Pedrinho sabia que o medo existe porque diversas vezes o seu coração pulara de medo. E respondeu:

— Sei, sim. O medo vem da incerteza.

— Isso mesmo — disse o saci. — A mãe do medo é a incerteza e o pai do medo é o escuro. Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo. E enquanto houver medo, haverá monstros como o que você vai ver.

— Mas se a gente vê esses monstros, então eles existem.

— Perfeitamente. Existem para quem os vê e não existem para quem não os vê. Por isso digo que os monstros existem e não existem.

— Não entendo — declarou Pedrinho. — Se existem, existem. Se não existem, não existem. Uma coisa não pode ao mesmo tempo existir e não existir.

— Bobinho! — declarou o saci. — Uma coisa existe quando a gente acredita nela; e como uns acreditam em monstros e outros não acreditam, os monstros existem e não existem.

Aquela filosofia do saci já estava dando dor de cabeça no menino, o qual suspirou e disse:

— Basta, amigo saci. Não quero mais saber de filosofias, quero conhecer os segredos da noite na floresta. Mostre-me os filhos do medo que você conhece. Desde que há tanta gente medrosa no mundo, deve haver muitos filhos do medo.

— Se há! — exclamou o saci. — Os medrosos são os maiores criadores das coisas que existem. Não tem conta o que lhes sai da imaginação. As mitologias daqueles velhos povos estão cheias de terríveis criações do medo. Aqui nestas Américas, temos também muitas criações do medo, não só dos índios chamados aborígenes, como dos negros que vieram da África.

Pedrinho lembrou-se do tio Barnabé, que era africano.

— Tio Barnabé, por exemplo — disse ele — é um danado para saber essas coisas. Conhece todos os filhos do medo. Foi ele quem me explicou o caso dos sacis. Conte-me no que é que os índios acreditavam.

— Os índios — começou o saci — não usavam durante a noite aquelas luzes que Dona Benta usa lá no sítio — aqueles lampiões de querosene. Nem usavam a luz elétrica que há nas cidades. Só usavam fogueirinhas de pouca luz e, por isso o medo entre os índios era grande. Quanto maior é o escuro, maior o medo; e quanto maior o medo, mais coisas a imaginação vai criando. Já ouviu falar no Jurupari?

— Não…

— Pois é o diabo dos índios, o espírito mau que aparece nos sonhos e transforma os sonhos em pesadelos horríveis. Insônia, mal-estar, inquietação, tudo que é desagradável, vem desse Jurupari.

— Mas como é ele?

— Um espírito sem forma, tipo o espírito mau que se diverte em agarrar os que estão dormindo e causar-lhes todos os horrores dos pesadelos. E parece que segura as vítimas pela garganta, porque elas esperneiam e se debatem, mas não podem gritar.

— Oh, eu já tive um pesadelo assim! — disse o menino. — Lembro-me muito bem. Eu ia caindo num buracão enorme. Quis gritar por vovó, mas foi inútil. A voz não saía…

— Pois era o Jurupari que estava apertando a sua garganta. O divertimento dele é esse. Anda de casa em casa provocando pesadelos horríveis nos que encontra dormindo.

Nesse momento um ruído entre as folhas chamou a atenção de ambos.

— Psit!… — fez o saci. — Atenção… Qualquer coisa vem vindo…

Ficaram os dois imóveis. O coração de Pedrinho batia apressado.

— O Curupira! — sussurrou o saci, quando um vulto apareceu. — Veja… Tem cabelos e pés virados para trás.

— Parece um menino peludo — murmurou Pedrinho.

— E é isso mesmo. É um menino peludo que toma conta da caça nas florestas. Só admite que os caçadores cacem para comer. Aos que matam por matar, de malvadeza, e aos que matam fêmeas com filhotes que ainda não podem viver por si mesmos, o Curupira persegue sem dó.

— Bem feito! Mas como os persegue?

— De mil maneiras. Uma das maneiras é disfarçar-se em caça e ir iludindo o caçador até que ele se perca no mato e morra de fome. Outra maneira é transformar em caça os amigos, os filhos ou a mulher do caçador, de modo que sejam mortos por ele mesmo.

Pedrinho achou que não podia haver nada mais justo. O saci prosseguiu:

— Esse que vai passando está a pé, mas em regra o Curupira anda montado num veado e traz na mão uma vara de japecanga.

— Que é japecanga?

— Uma planta que é remédio para doença do sangue. Também é conhecida como salsaparrilha.

— E por que anda com essa vara de japecanga? Que ideia!

— Não sei. Ele é que sabe. E o Curupira tem um cachorro de nome Papamel que não o larga. Assim que avista um caminhante na estrada, começa logo a cantar:

Currupaco, papaco

      Currupaco, papaco…

— Isso é cantiga de papagaio! — lembrou Pedrinho. — Na casa do Coronel Teodorico há um que só diz isso.

— Pois foi com o Curupira que os papagaios aprenderam o currupaco. Papagaio não inventa palavras, apenas repete as que ouve.

Mas o Curupira, com os seus pés voltados para trás, não se demorou muito por ali. Descobriu um rasto de paca e lá se foi, com certeza para ver como ela ia passando em sua toca.

— Que horas serão? — perguntou o menino.

O saci respondeu que faltava pouco para meia-noite.

— Como sabe?

— Por aquela flor — respondeu o saci indicando uma flor que não estava de todo aberta. — É o meu relógio aqui. Só abre completamente à meia-noite…

 

15 – O Boitatá

— Eu ouço falar na Iara e no Boitatá. Será que poderei ver um deles hoje? — perguntou Pedrinho.

— A Iara pode — respondeu o saci — porque há uma que mora por aqui em certo ponto do rio; mas Boitatá, não. Só existe lá pelo Sul.

— Como é?

— Pois o Boitatá é um monstro muito interessante. Quase que só tem olhos — uns olhos enormes, de fogo. De noite vê tudo. De dia não enxerga nada —tal qual as corujas. Dizem que certa vez houve um grande dilúvio em que as águas cobriram todos os campos do Sul, e o Boitatá, então, subiu ao ponto mais alto de todos. Lá fez um grande buraco e se escondeu durante todo o tempo do dilúvio. E tantos anos passou no buraco escuro que seu corpo foi diminuindo e os olhos crescendo — e ficou como é hoje, quase que só olhos. Afinal 48 as águas do dilúvio baixaram e o Boitatá pôde sair do buraco, e desde esse tempo não faz outra coisa senão passear pelos campos onde há carniça de animais mortos. Dizem que às vezes toma a forma de cobra, com aqueles grandes olhos em lugar de cabeça. Uma cobra de fogo que persegue os gaúchos que andam a cavalo de noite.

— Eu sei dessa história. É o fogo-fátuo. Vovó já nos explicou que esses fogos são fosforescências emitidas pelas podridões. No Sul também existe a célebre história do Negrinho do Pastoreio. Conhece? Não será uma espécie de saci dos Pampas?

— Não. Trata-se de coisa muito diferente. Esse negrinho foi apenas um mártir. Sofreu os maiores horrores dum senhor de escravos muito cruel; morreu e virou santinho.

— Conte a história dele.

E o saci contou.

 

16 – O negrinho

— Havia um fazendeiro, ou estancieiro, como se diz lá no Sul, que era muito mau para os escravos — isso foi no tempo em que havia escravidão neste País. Uma vez comprou uma ponta de novilhos para engordar em seus pastos. Era inverno, um dos piores invernos que por lá houve, de tanto frio que fazia.

— “Negrinho” — disse o estancieiro para um molecote da fazenda, que andava por ali. — “Estes novilhos precisam acostumar-se nos meus pastos, por isso você vai tomar conta deles. Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para o curral, onde dormirão fechados, depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na contagem um só que seja, você me paga.”

O pobre molecote só tinha quatorze anos de idade; mesmo assim não teve remédio senão ir para o campo tomar conta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciado naquela fazenda, de modo que, para começar, logo no primeiro dia um dos novilhos faltou na contagem.

O estancieiro não quis saber de explicações. Vendo que o número não estava certo, botou o cavalo em que estava montado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremenda sova de chicote. Depois disse:

— “E agora é ir procurar o novilho que falta. Se não me der conta dele, eu dou conta de você, seu grandíssimo patife!”

E left! — outra lambada por despedida.

O moleque, com as costas lanhadas e em sangue, montou no seu cavalinho e saiu pelos campos atrás do novilho. Depois de muito procurar, encontrou por fim o fujão, escondido numa moita.

— “E agora?” — pensou consigo. — “Tenho de laçar este novilho, mas meu laço está que não vale nada, de tão velho, e eu estou tão escangalhado pela sova que ainda valho menos que o laço. Mas não há remédio. Tenho que ir até o fim…”

E, aproximando-se com muito jeito, laçou o novilho.

Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de trazer o boizinho por diante, até o curral. Teria ele forças para isso? O laço aguentaria?

Não aguentou. Com meia dúzia de sacões o novilho desembaraçou-se do laço, arrebentando-o, e lá se foi pelos campos a fora, na volada.

E agora? Voltar para casa sem novilho e sem laço? O furor do estancieiro iria explodir como bomba.

Voltou.

— “Que é do novilho?” — indagou o patrão assim que o negrinho apareceu no terreiro.

— “Escapou, patrão. Lacei ele, mas o laço estava podre e não aguentou, como sinhô pode ver por este pedaço.”

Se o estancieiro não fosse um monstro de maldade, convencer-se-ia logo, vendo pela ponta do laço que o negrinho andara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa escapar não é do laçador, sim do laço. Não pode haver nada mais claro no mundo. Mas o estancieiro, que tinha comido cobra naquele dia, em vez de dar-se por convencido, mais colérico ainda ficou.

— “Cachorro!” — exclamou espumando de raiva. — “Você vai ter o castigo que merece.”

O dito, o feito. Agarrou o negrinho, amarrou-o pelos pés com a ponta do laço e depois de bater nele com o cabo do relho até cansar, teve uma ideia diabólica: botá-lo num formigueiro para ser devorado vivo pelas formigas.

Assim fez. Arrastou-o para um sítio onde existia um enorme formigueiro de formigas carnívoras, arrancou as roupas do coitadinho e deixou-o amarrado lá.

No dia seguinte foi ver a vítima, com a ideia de continuar o castigo, caso o grande criminoso não estivesse morto e bem morto. Chegando ao formigueiro, levou um grande susto. Em vez do negrinho, viu uma nuvem que se erguia da terra e logo se sumiu nos ares.

A notícia desse acontecimento correu mundo. Os homens daquelas bandas começaram a considerar o negrinho como um mártir que tinha ido direto para o céu.

Com o tempo virou um verdadeiro santo. Quem quer qualquer coisa, na campanha do Rio Grande, antes de pedi-la a Santo António ou a outro santo qualquer, pede logo ao Negrinho do Pastoreio.

— E ele faz?

— Está claro que faz — sempre que pode. Como sofreu muito, sabe avaliar os apertos dos outros e ajuda-os no possível.

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