o dia sem nome, 10

O dia sem nome, 10.

O que foi que acordou Mieco?, que estranho pressentimento a fez abrir os olhos tão antes de soar a campainha do despertador? Procurou o vidro de champu, colocou-o na cabeceira, ficou olhando o jovem que continuava à espera, que continuaria à espera, sem entender que assovio era aquele que começara a soar. O jovem foi ficando curvo, de repente, Mieco assustou-se, sentindo que seus olhos se desmanchavam, quis levar a mão ao rosto mas a mão colara nos panos, ela colara nos panos, Mieco não sentia mais seu corpo que afundava, se desfazia, não ouvia mais o ruído lá fora, que mãos misteriosas estavam abafando, fez-se o silêncio de um sepulcro no seu apartamento e em todos os outros e também lá fora e pela primeira vez, em milhares de anos, Tóquio mergulhou numa quietude que duraria uma eternidade.
Nas praças, nas igrejas, nos edifícios, nas prisões, nos hospitais e nas escolas, nas repartições públicas e nas enormes mansões, nos casebres humildes, nos estúdios de cinema, nas imensas estações e nos aeroportos, era tudo silêncio.
Mas houve alguns desastres, sim, panelas ao fogo que derreteram, aquecedores ligados até que se romperam os circuitos, aparelhos que fundiram ao calor, incêndios isolados que cresciam e se transformavam num só incêndio, explosões que derrubaram algumas construções, contrabalançadas por águas de torneiras que não foram fechadas, derramadas e espalhadas enquanto houve energia a encher as caixas. 
Nalgum lugar uma janela bateu durante dois dias, até que o vento parou. Noutro lugar um incêndio irrompeu durante sete horas e um tanto mais longe um outro incêndio devorara alguns quarteirões silenciosos, durante três dias. Nada se movia, a não ser os escombros e o fogo e a água e a poeira, sobre a farinha do que tinha sido um formigueiro humano.
Mas não houve pânico. Não havia viv’alma para temer desabamentos, inundações, explosões ou incêndios. Os homens estavam mortos, os cães e os gatos e os ratos, as baratas e as moscas, caracóis, vermes, formigas, bactérias, o ciclo tinha sido interrompido.
Durante quantos milênios, depois, só os elementos da natureza incansável, que desmanchavam sem pressa aquele amontoado de pretensão, transformando-o num árido deserto?
Tóquio, como todo o resto, estava morta.
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