O dia sem nome, 7.
Tóquio, dia 15 de abril, uma hora da madrugada.
Mieco, quarenta e dois anos, separada do marido, num apertado quitineti em movimentada rua de Tóquio, Mieco entra, tranca à chave sua porta, passa o trinco sobressalente, olha as horas, uma hora da madrugada, pega com cuidado a pesada barra de ferro com que sela a segurança do seu apartamento, coloca-a nos dois ganchos e respira aliviada. Mieco é lenta. Olha novamente o relógio. Pensou que o filme terminasse mais cedo, não gostava de caminhar naquela rua àquela hora, mas não tivesse saído e não teria sono e mesmo tendo saído talvez demorasse a dormir. Abriu a bolsa e tirou um embrulhinho com um vidro de comprimidos para dormir, a venda só era permitida mediante receituário médico, mas o farmacêutico já a conhecia de longa data, era amigo de seu filho. Colocou o vidro junto de outro fechado, aquele ainda ia demorar a acabar mas gostava de ser prevenida, sempre fora muito prevenida e muito raramente a vida a tinha apanhado de surpresa nalguma cilada, porque Mieco, quarenta e dois anos, separada do marido e mãe de um casal de filhos, sempre fora muito previdente.
Mieco sabia que ia demorar a dormir. Era assim desde muito tempo, ela dedilharia conta por conta todo o rosário de sua vida, seria, como há tantas noites, menina, moça, mulher, até chegar aos dias de hoje, solitária e insone, consciência viva das noites de Tóquio, e, aí, já seria de manhã e quando ela sentisse o doce esquecimento do sono havia de acordar para esperar soar a campainha do seu despertador que imitava uma preciosidade do barroco ocidental mas que mostrava pequenino, em caracteres romanos, a inscrição tão repetida made in Japan.
Mieco pegou o reloginho antigo, acertou o horário de despertar, deu as duas cordas, primeiro, sempre, a corda do maquinismo, que um relógio precisa antes de tudo trabalhar e, a seguir, só então, girou a corda da campainha, que o relógio já estava alimentado para ir até o fim do dia seguinte. Rotina vã, pois Mieco sabia que acordaria meia hora antes do trinado.
Mieco ligou a pequenina televisão e se sentou, os olhos parados, o corpo cansado, as mãos pendentes, que deixavam, todavia, escapar, algumas vezes, tremores quase que imperceptíveis. A imagem surgiu mas ela não levantou o volume do aparelho. Sempre gostava de entrar em contato com a imagem, antes de ouvir o som. Depois que se sentisse acostumada com aquela mulher que sorria e mexia com os braços, depois, sim, levantaria o volume, para saber do que estava acontecendo.
Os olhos de Mieco, quarenta e dois anos, já meio gastos, meio brancos, começaram a lacrimejar. Ela se levantou, desligou a televisão e se sentou novamente. Suas mãos se encontraram, ela se encolheu um pouco e quis parar de pensar.
Mieco trabalhava numa oficina de ótica, recebia os pedidos, atendia as pessoas e todos sempre falavam de sua meiguice. Aos que se iam, se despedia com um sorriso, demorava o mais que podia, mas sempre chegava a hora em que o vigia precisava fechar. Nessa hora, ela pegava a bolsa e saía silenciosa. No caminho, olhava as pessoas, esperando encontrar um rosto amigo, um rosto conhecido, até que fosse um rosto inimigo, mas Mieco, quarenta e dois anos, olhos mansos e suaves, não tinha inimigos. Então ela entrava no apartamento, trancava-se três vezes e comia ou não, via televisão ou não, folheava ou não uma revista.
Mieco não queria estar pensando. Mieco nunca fez as contas mas se as tivesse feito, ficaria sabendo que havia cinco anos, dois meses e quinze dias que ninguém, a não ser ela mesma, tinha estado ali dentro, naquele apartamento acanhado de uma tumultuada rua de Tóquio. Ela tinha trocado lâmpadas, tinha desentupido uma pia, que nunca mais deixou entupir, o gás era ligado lá embaixo, as contas colocadas sob a porta e acertadas na portaria escura. Uma vez ou outra esta mulher solitária pretendeu chamar um pintor ou um eletricista ou um bombeiro mas tinha medo de ser assassinada ou roubada. Nas suas fantasias noturnas, jovens robustos e delicados a procuravam e algumas vezes ela tinha algo como um orgasmo, enquanto sonhava. Até quando precisou renovar a pintura, acabou fazendo o serviço sozinha, nas noites desoladas de três finais de semana. O porteiro levara as tintas, ela apenas entreabriu a porta e com muita suavidade, sorrindo, pediu que deixasse tudo ali mesmo, do lado de fora, que dali a pouco ela recolheria. Quando ouviu a porta do elevador fechar-se foi que Mieco saíu e pegou as tintas. Trêmula e comovida.
Mieco não queria estar pensando. Mecanicamente encheu um copo com água e abriu o vidro de comprimidos. Não. Se o tomasse agora, não dormiria nunca, era preciso resistir um pouco mais. Não o recolocou no vidro, entretanto. Deixou-o junto do copo, que ficaria mais fácil tomá-lo, quando fosse finalmente a hora de tomá-lo. Foi até a janela e olhou a rua escura. Dava pra ver as pessoas passeando, aquela rua não dormia nunca, sempre estava passando alguém. Uma vez tinha divisado dois corpos que se misturavam na madrugada, de pé, ofegantes, movimentos rápidos. Mieco se escondera e, quando voltou a coragem, o jovem já estava guardando o membro inflado, enquanto a mulher ajeitava a saia.
Mieco não queria pensar. O comprimido, que ela sabia já fora do vidro, junto à água, flutuava na sua cabeça. Mieco tinha clara noção de que noite era aquela. Ela estava mais agitada, os olhos lacrimejavam, as mãos tamborilavam nos lugares o ritmo desconsolado e febril da sua solidão. Tudo aconteceria do mesmo jeito. Ela sentia que estava chegando a hora e esperava, porque cada coisa deveria acontecer no seu exato momento. Mieco não tinha pressa em sofrer. Ela sabia que depois daquela noite tudo se acalmaria por um tempo determinado. Ela estava, inclusive, anotando os dias exatos, para calcular o período de duração de cada ciclo mas não tinha chegado ainda a nenhuma conclusão porque os intervalos variavam de maneira muito desconcertante.
Num dia qualquer, há dois anos atrás, Mieco recebera pelo correio um volume com outro nome, mas com o seu exato endereço. Quis devolver, mas a curiosidade a fez abrir o pacote. Era uma revista pequena, em japonês e inglês, contendo fotos coloridas de um grupo de dois homens e uma mulher em acrobacias sexuais. Mieco olhou assustada figura por figura, recompôs dentro do envelope, tinha rasgado um pedaço, resolveu queimar tudo. Pensou que demoraria a queimar e o cheiro provocaria suspeita de incêndio. Então separou lentamente as páginas, com uma tesourinha de unha, e, uma por dia, as foi queimando. Enquanto a folha ardia, ela ia selecionando a do dia seguinte. Finalmente sobrou a última página e Mieco, quarenta e dois anos, não teve coragem de queimá-la. Era um jovem atleta, ocidental, peito cabeludo, deitado provocadoramente, de frente, com o enorme membro ereto, grosso e rijo. Mieco escondeu a foto. Do outro lado havia um texto qualquer, ela não conseguia jamais terminar de lê-lo porque virara a página para olhar com suavidade aquele jovem que a esperava.
Mieco não queria pensar. Sabia que daí a pouco abriria a gaveta, tiraria os panos e apanharia a fotografia generosa, choraria na cama, ouvindo aqueles zumbidos e aqueles sons de sangue percorrendo as têmporas e ela acabaria por se masturbar, utilizando aquele estranho vidro de xampu, tão semelhante.
Levantou-se aflita, sentindo que nesse momento mais insuportávelmente pesava a sua solidão, quando, diabos, serei visitada pelo meu homem, os olhos parados mas injetados, tomou o comprimido, abriu o vidro, tomou outros dois, fechou o vidro, guardou-o, lavou o copo, colocou-o emborcado, correu desesperada ao banheiro, abraçou o recipiente que brilhava no meio da penumbra, colocou-o na cama, delirando abriu a gaveta e retirou a fotografia, já chorando de desespero e de prazer.
Mieco não estava mais pensando. A foto, de pé, na cabeceira, ela desajeitada sobre o objeto, comprimindo-se, tentando diminuir o forte tremor da mão, atingia o limite da sua resistência e trincava os dentes e estremecia dos pés à cabeça, soluçando baixinho, gemendo, rangendo, roncando, debatendo-se furiosa e vitoriosa, Mieco, finalmente, voltava a ser feliz.
Meia hora depois, ela dormia.
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