O Sítio… Nona Parte

REINAÇÕES  DE  NARIZINHO

Nona Parte: O Circo De Cavalinhos

1 – A operação cirúrgica

            Depois do concurso para a fabricação do irmão de Pinóquio, houve no sítio de dona Benta outro concurso muito engraçado – o concurso de “quem tem a melhor idéia”. Quem venceu foi a Emília, com a sua estupenda idéia de um “círculo de escavalinho”. Dona Benta, que era o juiz do concurso, achou muito boa a lembrança, mas deu risada do título.

            — Não é “círculo”, Emília, nem “escavalinho”. É circo de cavalinhos.

            — Mas toda gente diz assim — retorquiu a teimosa criaturinha.

            — Está muito enganada. Eu também sou gente e não digo assim. O Visconde, que está quase virando gente, também não diz assim.

            Emília teimou, teimou, e por fim acabou aceitando só metade da emenda.

            — Já que a senhora “faz tanta questão”, fica sendo circo de escavalinho.

            Dona Benta ainda insistia, dizendo que o diminutivo de cavalo é cavalinho e que portanto escavalinho era asneira. Mas a boneca não se deu por vencida.

            — É que a senhora não está compreendendo a minha idéia — explicou. — Escavalinho é o nome do diretor do circo, o célebre Senhor Pedro Malasarte

Escavalinho da Silva, está entendendo?

            Dona Benta riu-se da esperteza, mas Pedrinho gostou da idéia e aceitou que o circo teria o nome inventado pela boneca. Em vista disso começaram os três a formular planos e a distribuir papéis.

            Emília seria a dama que corre no cavalo e pula os arcos. João Faz-de-conta seria o homem que engole espada e come fogo. E palhaço? Estava faltando justamente o principal, que era o palhaço.

            — O Visconde daria um bom palhaço, se não fosse a sua mania de ciência; mas creio que podemos curá-lo. Vou chamar o doutor Caramujo.

            — Acho boa a idéia — concordou Narizinho. — Além disso…

            Mas não pôde concluir. Rompera um bate-boca na cozinha, no qual se ouvia a voz de tia Nastácia gritando:

            “Puxe daqui pra fora”! Os meninos correram a ver do que se tratava e encontraram-na tocando o Visconde com o cabo da vassoura.

            — Que é? Que foi?

            — Pois é este senhor Visconde que está me bobeando — explicou a negra. — Eu aqui bem quieta escamando estes lambaris para o almoço, e o “estrupício” aparece de livrinho na mão e começa a mangar comigo, com uma história de “seno” e “co-seno” e não sei que história de “mangaritmos”. Eu estou cansada de dizer que não sei inglês, mas o diabo parece que não acredita…

            — “Mangaritmos!” — exclamou o Visconde erguendo os braços para o céu — e plaf! caiu por terra com o ataque.

            Narizinho correu a socorrê-lo e levou-o para a casinha dele, onde o acomodou dentro da lata que lhe servia de cama. Depois gritou:

            — Depressa, Pedrinho. Mande Rabicó chamar o doutor Caramujo. O nosso Visconde está muito mal.

            A casa do Visconde era um vão de armário na sala de jantar. Dois grossos volumes do Dicionário de Morais formavam as paredes. Servia de mesa um livro de capa de couro chamado O Banquete, escrito por um tal Platão que viveu antigamente na Grécia e devia ter sido um grande guloso. A cama era formada por um exemplar da Enciclopédia do Riso e da Galhofa, livro muito antigo e danado para dar sono.

            Mas desde que o Visconde ficou uma semana inteira atrás da estante e criou bolor pelo corpo inteiro, não era ali que ele dormia, para não sujar o chão com o seu pozinho verde; dormia na lata. Outros “móveis” — armarinhos, cadeiras, estantes, também eram formados dos livros de capa de couro, que dona Benta havia herdado de um seu tio, o Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira. Era naquela casinha que o Visconde passava a maior parte do tempo, lendo, lendo que não acabava mais. E tanto leu que empanturrou.

            Rabicó fora chamar o médico. Meia hora depois chegava o célebre doutor Caramujo, afobadíssimo, de malinha debaixo do braço.

            — Quem é o doente? — foi logo indagando.

            — É o senhor Visconde de Sabugosa, que teve hoje um ataque. Venha vê-lo, doutor.

            O médico dirigiu-se para a lata do Visconde, examinou-o e franziu a testa.

            — Hum! O caso é dos mais graves. Tenho de operá-lo imediatamente. Sua Excelência está empanturrado de Álgebra e outras ciências empanturrantes. Tragam-me uma bacia d’água, toalha e também uma pedra de amolar.

            Pedrinho trouxe as coisas pedidas; o médico amolou na pedra a sua faquinha e abriu de alto a baixo a barriga do Visconde.— Xi! — exclamou fazendo uma careta. Vejam como está este pobre ventre. Completamente entupido de corpos estranhos.

            Pedrinho e Narizinho espiaram aquela barriga aberta e viram que em vez de tripas o Visconde só tinha uma maçaroca de letras e sinais algébricos, misturados com “senos” e “co-senos” e “logaritmos” — ou “mangaritmos”, como dizia a tia Nastácia.

            — Coitado! — exclamaram ambos, compungidos. Está mesmo muito mal.

            O doutor Caramujo tomou uma colherzinha e começou a tirar para fora toda aquela tranqueira científica, depositando-a num pequeno balde que Pedrinho segurava.

            — Não tire todas as letras — advertiu o menino. Se não ele fica bobo demais. Deixe algumas para semente.

            — É o que estou fazendo. Estou tirando só o que é Álgebra. Álgebra é pior que jabuticaba com caroço para entupir um freguês.

            Terminada a operação, o doutor colou a barriga do doente com um pouco de cola-tudo.

            — Temos agora de deixá-lo em repouso durante três dias — recomendou.

            Depois desse prazo poder dar seus passeios pelo campo, a fim de tomar sol e respirar as brisas da manhã. Também é preciso esconder quanto livro de Álgebra exista por aqui, para evitar recaída.

            Pedrinho pediu a conta, pagou-a e despediu-se do doutor, recomendando-lhe que desse muitas lembranças ao príncipe Escamado, a dona Aranha e outros personagens do reino.

            — Que bom médico! — exclamou a menina logo que o doutor Caramujo

partiu. Com um doutor assim até dá gosto ficar doente. Mas estou notando que esquecemos duma coisa, Pedrinho.

            — Que foi?

            — Esquecemos de botar casos engraçados dentro da barriga do Visconde. Como vai ser palhaço de circo, ficaria ótimo se nós o recheássemos como tia Nastácia faz com os perus.

            — Recheio de quê? — indagou o menino.

            — De anedotas, por exemplo.

            — Bem pensado! Mas ainda está em tempo, porque a cola não secou.

            E abrindo de novo o Visconde, puseram dentro três páginas bem dobradinhas dum livro do Cornélio Pires. Depois colaram-no outra vez e deixaram-no a secar em paz.

            — Venha ver, Emília, quanta letra saiu de dentro do coitado — disse a menina, indo ao quintal despejar o balde. — Eu bem digo que é muito perigoso ler certos livros, Os únicos que não fazem mal são os que têm diálogos e figuras engraçadas.

            Passados os três dias de repouso, o Visconde pulou da sua lata e foi passear pelo terreiro, conduzido pela Emília, ainda muito fraco mas perfeitamente curado das suas manias.— Agora sim — disse Pedrinho — nosso circo vai ter um palhaço ainda melhor que o tal Eduardo das Neves que tia Nastácia tanto gaba. Você, Narizinho, precisa fazer-lhe uma roupa bem pândega.

            — Estou pensando em fazer-lhe uma roupa de palhaço de verdade, com um grande sol amarelo atrás.

            — Pois vá cuidar do sol que eu vou organizar o programa da festa.

            Dali a pouco o programa estava pronto — e que lindo!

            — Está muito bom — aprovou a menina. — Só falta a música.

            — Já pensei nisso e está difícil de resolver. Vovó não pode ser música, porque precisa ficar recebendo os convidados. Tia Nastácia também não pode, porque precisa ficar tomando conta das cocadas.

            — Rabicó! — sugeriu a menina. — Rabicó pode ser músico. Não é muito afinado, mas passa.

            — Esse não; preciso dele para outra coisa. — e Pedrinho cochichou-lhe ao ouvido um segredo.

            — Ótimo! — exclamou a menina batendo palmas. — Vai ser uma sensação!

            Acho que é a melhor idéia que você já teve, Pedrinho!

            — Mas veja lá! Não diga nada a ninguém — nem à Emília, senão a coisa perde a graça.

            E ainda cochicharam por vários minutos, dando grandes risadas espremidas.

 

 2 – O plano de Emília

            Pedrinho tirou várias cópias do programa e as pôs dentro das cartas de convite que ia enviar aos seus amigos e às amigas de Narizinho.

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GRANDE CIRCO DE ESCAVALINHO

eqüestre e pedestre dirigido por

PEDRO MALASARTE

ESCAVALINHO DA SILVA

no Sítio do Pica-Pau Amarelo

A famosa Emília correrá

no seu cavalo de rabo de pena

O incrível homem que

come fogo e engole espadas

O célebre palhaço Sabugueira

(rir, rir, rir. . .)

A monumental pantomima o

Phantasma da Ópera

O espetáculo terminará

com uma sensacionalíssima

SURPRESA

Os espectadores terão direito a

uma cocada ou um pé-de-moleque

da célebre doceira ANASTAZIMOVA

HOJE             HOJE              HOJE

VER PARA CRER

Preços: cadeiras: 1 real;

arquibancadas: 10 centavos

Observação: é expressamente

proibido entrar por baixo do pano

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            Quem levou as cartas? Quem mais se não esses preciosos portadores chamados Envelopes? Mas como os senhores Envelopes não sabem chegar ao destino se não forem acompanhados dos senhores Sobrescritos e de diversos senhores Selos, Pedrinho arranjou diversos senhores Sobrescritos e diversos senhores Selos para acompanharem os senhores Envelopes na longa viagem que tinham de fazer. E esses portadores se comportaram muito bem.

            Nenhum deles se distraiu pelo caminho com brincadeiras, de modo que as cartas foram parar direitinhas nas mãos de cada um dos convidados.

            — Muito bem! — disse a menina depois que os portadores partiram. — Só resta agora convidarmos os nossos amigos do País das Maravilhas. Eles nunca viram um circo e hão de gostar.

            — É no que estou pensando — disse Pedrinho. — Acho melhor fazer um convite geral e incumbir o senhor Vento de ser o portador.

            E o menino assim fez. Escreveu um lindo convite numa folha de papel de seda, picou o papel em mil pedaços e subiu à mais alta pitangueira do pomar para jogá-los ao vento lá de cima. E jogou em verso, porque o Vento, o Ar o Fogo e outras forças da natureza só devem ser faladas em verso.

             Vento que vento frade,  

            Estas cartas levade,

            Norte, sul, leste, oeste,  

            E direitinho, se não…

            Temos complicação!

              Narizinho, de nariz para o ar embaixo da árvore, riu-se daqueles versos.

            Depois lembrou-se de uma coisa.

            — Você fez asneira, Pedrinho. Mandou convites para todos, o que não é prudente. Podem aparecer o Barba Azul, o capitão Gancho e outras pestes.

            — Não tenha medo. Se algum deles cair na tolice de aparecer, atiço-lhe o cachorro em cima.

            — Que cachorro? Não temos nenhum aqui.

            — Mas vamos ter. Pedirei ao tio Barnabé que nos empreste o Maroto por uma semana. Preciso dele para não deixar que ninguém penetre por baixo do pano — e também para ser atiçado contra Barba Azul, capitão Gancho ou qualquer outro pirata que apareça. Que acha da idéia?

            — Serve.

            — Neste caso, apare no avental estas lindas pitangas.

            E começou a derriçar lindas pitangas, vermelhas e graúdas. Depois desceu, com os bolsos cheios e sentou-se na raiz da árvore ao lado da menina. Ia comendo e falando.

            — Tenho agora de levantar um empréstimo — disse ele. – Sem comprar uma peça de algodãozinho não poderei fazer o circo. Mas custa R$ 10,00 e no meu cofre só há R$ 5,30.

            A menina fez a conta na areia com um pauzinho.

            — Estão faltando R$ 4,70, se a minha conta estiver certa.

            — Menos — advertiu Pedrinho. — Podemos contar com a renda do circo.

            — Grande renda! Você bem sabe que todos vão pagar de mentira, e com dinheiro de mentira não se compra nada nas lojas.

            — Sim, mas há duas cadeiras de um cruzeiro cada uma, reservadas para vovó e tia Nastácia. Elas têm que pagar com dinheiro de verdade. E vou fazer já os bilhetes, porque precisamos vender essas cadeiras hoje mesmo e receber o dinheiro adiantado.

            Pedrinho engoliu apressadamente as últimas pitangas e foi fazer os dois bilhetes especiais.

      1. de E.

            Cadeira Reservada  ……………………………….   R$ 1,00

            Narizinho, como era muito jeitosa para negócios, encarregou-se de vendê-las.

            Dona Benta não botou dúvida; comprou e pagou com uma nota muito velha, mas que ainda corria.

            Tia Nastácia, porém, era a negra mais regateadeira deste mundo, de tanto regatear com os mascates sírios que passavam por lá. Fez a choradeira do costume e tanto barateou que obteve a sua entrada por 80 centavos.

            — Com uma condição! — disse a menina. — Você tem que arranjar um tabuleiro de cocadas e pés-de-moleque. Circo sem cocadas não tem graça.

            A negra resmungou, mas acabou prometendo. Obtidos assim mais R$ 1,80, ainda ficavam faltando R$ 2,90. Como fazer para consegui-los? Estavam os dois meninos atrapalhados com aquele difícil problema, quando a boneca apareceu com a sua colherzinha torta.

            — Eu sou capaz de arranjar esse dinheiro! — disse ela depois de refletir um momento. — Mas só o arranjarei se Pedrinho me der aquele carro de rodas de carretel que ele fez outro dia.

            Pedrinho soltou uma gargalhada.— Você está pensando que dinheiro é biscoito, Emília? Por mais ativa que seja uma boneca não é capaz de arranjar nem um tostão.

            — Não duvide de mim, Pedrinho. Bem sabe que sou uma boneca diferente das outras. Se me promete o carrinho, juro que arranjo o dinheiro.

            — Pois vá lá, prometo!

            A boneca deu uma risadinha cavorteira e foi correndo para dentro.

            — Grande boba! — exclamou Pedrinho. — Pensa que dinheiro é cisco.

            — Não duvide de Emília — advertiu a menina. — Ela tem lábias e não me admirarei se aparecer com o dinheiro.

            — Como?

            — Sei lá. Isso é com ela.

            — Muito bem — disse Pedrinho mudando de assunto. – Tenho agora de ir ao mato cortar paus e cipós para a armação do circo. Enquanto isso, trate de fazer a roupa dos artistas.

            — E a roupa da “surpresa”?

            — Essa fica para o fim — concluiu o menino, pondo o machadinho ao ombro e partindo para a floresta.

            Na tarde daquele dia dona Benta caiu numa grande aflição. Imaginem que tinha perdido os óculos e não podia costurar, nem fazer coisa nenhuma. “Sem óculos não sou gente” – costumava dizer. Nastácia e Narizinho já haviam batido a casa inteira, mas nem rasto encontraram dos “olhos de dona Benta”. Nisto a boneca aproximou-se da pobre senhora, dizendo com o seu arzinho de santa:

            — Todos já procuraram os seus óculos, menos eu. Quer que os procure?

            — Que bobagem, Emília! Pois se Nastácia e Narizinho, que são gente, não acharam meus óculos, você, que é uma simples boneca de pano, os há de achar?

            — Tudo é possível neste mundo de Cristo, como a senhora mesma costuma dizer. Se quer experimentar a minha habilidade de achar coisas…

            — Pois procure. Quem a impede disso?

            — Quanto me paga?

            — Interesseira! Pago o que você quiser. Um tostão, por exemplo.

            Emília deu uma risada gostosa.

            — Tinha graça! Era só o que faltava eu procurar óculos para ganhar um tostão! Meu preço é R$ 3,00.

            — Você está louca? Não sabe que R$ 3,00 é quase o preço de um par de óculos novos?

            — Não sei, nem quero saber. Só sei que meu preço para procurar óculos de velha é R$ 3,00 — e em notas novas. Se quer, bem; se não quer…

            — Quero, quero — respondeu dona Benta já meio danada. – E quero também que vá brincar e não me atormente mais.

            Emília saiu a procurar os óculos por todos os cantos e dali a cinco minutos gritava:

            — Achei, achei o fujão! — e veio correndo, a sacudir os óculos no ar.

            Dona Benta abriu a boca, de espanto.

            — Onde estavam, Emília?

            — Dentro do bolso de sua saia de gorgorão amarelo. Dona Benta abriu ainda mais a boca. Não podia compreender aquilo. Havia muito tempo que não punha aquela saia; como, pois, os óculos tinham ido parar lá, e logo no bolso? Mistério…

            — Agora passe-me para cá os três cruzeiros em notas novas. Promessa é dívida — como diz tia Nastácia.

            Dona Benta não teve remédio. Foi ao baú, escolheu três notas novas e deu-as à boneca. Emília dobrou-as, bem dobradinhas, e foi correndo procurar o menino que já havia voltado da floresta.

            — Pronto! Aqui está o dinheiro! Passe-me um tostão de troco.

            Pedrinho arregalou os olhos, assombrado, e apalpou as notas para ver se eram verdadeiras. Depois tirou um tostão do bolso e deu-o à boneca.

            — Não aceito tostão velho e feio — disse Emília torcendo o nariz. — Quero um novo, alumiando.

            Pedrinho teve de procurar pela casa inteira um tostão novo e teve também de consertar uma das rodas do carro de carretel, que estava solta. Só depois disso é que Emília entregou o dinheiro.

            — Para que quer tostão, Emília? Dinheiro de nada vale para quem é boneca.

            — Quero para rodar — respondeu ela — e saiu, muito contente da vida, rodando o tostão pela sala.

            Enquanto isso, dona Benta e tia Nastácia cochichavam na cozinha a respeito do estranho acontecimento.

            — Foi cavorteiragem dela, sinhá! — dizia a preta. — Emília está ficando sabida demais. Juro que foi ela quem escondeu os seus óculos para apanhar os cobres. A gente vê cada coisa neste mundo! Uma bonequinha que eu mesma fiz, e de um pano tão ordinário, tapeando a gente desta maneira! Credo!…

 

3 – O circo

             A construção do circo deu muito trabalho. Pedrinho tinha de fazer tudo, mas o pior era abrir buracos para fincar os esteios e o mastro. E quantos buracos. Mais de trinta. Suou que não foi brincadeira; chegou a criar calos d’água nas mãos. Emília, que de vez em quando vinha sapear as obras, deu-lhe uma idéia.

            — Eu, se fosse você, arranjava um tatu para fazer esse buracos. Os tatus são melhores do que cavadeira para buracos bem redondinhos.

            — E eu, se fosse você — respondeu o menino de mau humor – ia pentear macacos.

            Emília pôs-lhe a língua e começou a brincar com o carro de carretel. Atrelou nele o cavalo de rabo de pena, botou o tostão dentro e disse de brincadeira: “Agora, senhor cavalo, vá correndo ao palácio do rei e entregue-lhe este queijo de prata, que eu mando. Ao palácio do rei, não; ao palácio do príncipe. Ao palácio do príncipe, não; ao palácio do duque. Ao palácio do duque, não; ao palácio do marquês.Ao palácio do… Abaixo de marquês o que é, Pedrinho? Perguntou ela, já esquecida da zanga.

            Mas o menino não estava para prosa, porque justamente naquele instante havia dado uma martelada no dedo.

            — É martelo — respondeu assoprando a machucadura.

            — Martelo, martelo! Como é bonito! Por que você não vira o marquês de Rabicó em martelo?

            — E por que você não vai lamber sabão, Emília?

            A boneca botou-lhe a língua outra vez e foi queixar-se a Narizinho lá dentro.

            A menina estava justamente acabando o sol da roupa do palhaço; ia começar o saiote da dama que corre no cavalo.

            — Aquele bobo! — disse a boneca fazendo um muxoxo.— Dei lhe uma idéia tão boa e o bobo me mandou lamber sabão. Bobão!

            — Pedrinho, quando está trabalhando, não gosta que ninguém o atrapalhe, você sabe.

            — Mas eu…

            — Cale a boca e venha me ajudar na costura. Estou acabando este sol para começar o saiote com que você vai correr no cavalo.

            — Que bom! Mas eu também quero um sol atrás.

            Narizinho deu uma risada.

            — Isso é um despropósito, Emília! Sol, só os palhaços usam. Você, quando muito, poderá ter uma lua.

            — Lua cheia ou minguante?

            — Acho que quarto crescente fica melhor. Emília bateu o pé.

            — Quarto não quero. Quero sala crescente! A menina riu-se de novo e

abraçou-a, dizendo:

            — Assim, é assim que gosto de você, Emília. Bem asneirentazinha — e não sabichona como tem andado ultimamente. Asneira de boneca é a única coisa interessante que há neste mundo.

            — E no outro mundo?

            — No outro há muitas. Há fadas, ninfas, sacis, sereias e há o famoso Peter Pan que Faz-de-conta ficou de convidar.

            — E ele vem?

            — Não sei, mas acho que vem. Peter Pan me parece um grande moleque — e os moleques gostam muito de circo.

            A conversa das duas continuou naquela toada por longo tempo.

            Enquanto isso Pedrinho fez os últimos buracos e começou a fincar os paus.

            Finca que finca, bate que bate, soca que soca — três dias levou na luta suando que nem vidraça em manhã de frio lá fora. O circo foi tomando cara de circo de verdade e quando Pedrinho armou o pano, ficou tal qual o Circo Spinelli.

            A alegria do menino foi imensa. Botou as mãos no bolso e extasiou-se diante de sua obra, cheio de orgulho. Depois gritou:

            — Gentarada, venham ver!

            Todos se reuniram no terreiro e admiraram a obra e bateram palmas.— É extraordinário! — disse dona Benta à preta. — Este meu neto quando crescer vai virar um grande homem, não resta dúvida.

            — É o que eu sempre digo, sinhá — confirmou tia Nastácia. — Pedrinho é um menino que promete. Na minha opinião, ainda acaba delegado.

            Ser delegado de polícia era para tia Nastácia a coisa mais importante que um homem podia ser — “porque prendia gente” — explicava ela.

            Depois de construído o circo, começaram os ensaios. Pedrinho e a menina lá se trancaram com os artistas, não consentido que ninguém os fosse espiar. Maroto havia chegado e já estava no serviço de montar guarda à porta, para que nem dona Benta, ou a preta pudessem aproximar-se. Maroto tinha ordem de latir, de morder não.

            Terminados os ensaios da primeira parte, Pedrinho cuidou da pantomima. Foi um custo! Essa pantomima tinha sido imaginada por Pedrinho de um certo jeito mas como todos metessem o bedelho saiu uma mexida completa. Emília fez questão de dar o título — e deu um título muito sem pé nem cabeça: O PANTASMA DA ÓPERA.

            — Phantasma, Emília, — corrigiu Narizinho. Ph é igual a F, como você pode ver nesta caixa de “phosphoros”. Ninguém lê POSPORO.

            — Sei disso muito bem — replicou a boneca. — Mas quero que seja Pantasma, se não saio da companhia e não empresto o meu cavalinho, nem o meu carro, nem o meu tostão novo.

            — Como é birrenta! A gente quando quer uma coisa precisa dar as razões e não ir dizendo quero porque quero. Isso só rei é que faz.

            — Mas eu tenho minhas razões — tornou Emília. – Pantasma nada tem que ver com fantasma. Pantasma é uma idéia que tenho na cabeça há muito tempo, de um bicho que até agora ainda não existiu no mundo. Tem olhos nos pés, tem pés no nariz, tem nariz no umbigo, tem umbigo no calcanhar, tem calcanhar no cotovelo, tem cotovelos nas costelas, tem costelas no…

            — Chega! — berrou a menina tapando os ouvidos. — Não precisa contar o bicho inteiro. Fica Phantasma, como você quer. Mas esse ÓPERA, que é?

            — Não sei. Acho ópera um nome bonito e por isso o escolhi. Se você faz muita questão, eu tiro o ER e fica o PANTASMA DA OPA. É o mais que posso fazer.

            Os dois primos se entreolharam.

            — Acho que ela está ficando louca — cochichou Pedrinho ao ouvido da menina.

 

4 – Chegam os convidados

             Bum! Bum! Bum! Chegou afinal o grande dia. O terreiro estava  enfeitado de bandeirolas e arcos de bambu. Às sete e meia ia começar o espetáculo. O diretor sentou-se à porta do circo para esperar os convidados. Dali a pouco a porteira do terreiro ringiu e apareceu o doutor Caramujo, muito sério, de casca nova, carregando a sua maleta debaixo do braço. Contou que vinha muita gente do reino das Águas Claras, menos o príncipe Escamado.

            — Por que não vem o príncipe? — indagou Narizinho.

            — Porque o príncipe já não existe mais — murmurou o médico baixando os olhos.

            — Como não existe mais? Que aconteceu? Fale!…

            — Não sei o que aconteceu. Mas depois daquela viagem ao sítio de dona Benta, o nosso amado príncipe nunca mais voltou ao reino.

            Narizinho recordou-se da cena. Lembrou-se de que o falso Gato Félix havia aparecido para avisá-la de que o príncipe estava se afogando por ter desaprendido a arte de nadar. Lembrou-se de que correra ao rio para salvá-lo, mas nada encontrou.

            Ter-se-ia mesmo afogado?

            — Acha que ele morreu afogado, doutor?

            — Isso é absurdo, menina. Um peixe nunca desaprende a arte de nadar. O que aconteceu, sabe o que foi?

            — Diga…

            — Foi comido pelo falso gato Félix, aposto.

            O choque sentido pela menina foi enorme, e não caiu com um desmaio unicamente porque os convidados estavam chegando e isso estragaria a festa.

            Mesmo assim puxou do lenço para enxugar três lágrimas bem sentidinhas.

            Nisto a porteira ringiu. Era dona Aranha com as suas seis filhas.

            Narizinho fez-lhes grande festa, e contou que tinha estado com Branca de Neve e mais outras princesas para as quais dona Aranha havia costurado.

            — Branca de Neve ainda é muito branca? — perguntou a famosa costureira.

            — Cada vez mais — respondeu a menina. — Até dói na vista olhar para ela.

            Em seguida chegaram os dois Bernardos Eremitas — o que havia casado Narizinho e o que conduzira a salva com a coroa do príncipe. E chegaram os siris couraceiros, e chegou o Major Agarra.

            De repente soou um miado ao longe.

            — Será o falso gato Félix? — disse Pedrinho. Se — for aquele patife, meu bodoque vai ter trabalho.

            Mas não era, e sim o Gato Félix verdadeiro. Pedrinho ia fazendo as apresentações e acomodando os convidados nos seus lugares. Não houve nenhum que não pedisse notícias de Rabicó, do Visconde e do João Faz-de-conta. A resposta do menino era sempre a mesma:

            “Eles são agora artistas do circo e estão se vestindo para a função.”

            — E há cocadas? — quis saber o Gato Félix.

            — Cocadas só no intervalo — respondeu Emília. — São de três qualidades. Umas brancas como neve, outras cor-de-rosa como rosa, outras queimadinhas como rapadura. Tia Nastácia é uma danada para toda sorte de doces e quitutes. Só não sabe fazer bonecos de pau. Faz-de-conta saiu tão feio que não tem coragem de aparecer para ninguém.

            Chegada a hora de se acenderem os lampiões, entrou no picadeiro um “casaca-de-ferro”. Era o pobre Faz-de-conta, com a sua ponta de prego furando as costas da casaca verde que a menina lhe havia feito. Foi uma vaia.

            — Olha o arara! — gritou o capitão dos couraceiros.

            — Arranca o prego! — urrou o sapo major. O pobre boneco, que tinha muito bom gênio, não fez caso. Arrumou os lampiões muito bem, deixando o circo tão claro como o dia. Nisso um dos Bernardos berrou:

            — Palhaço! Que venha o palhaço!

            Todos o imitaram — e foi um berreiro de deixar a gente surda. Pedrinho teve de aparecer para explicar que ainda não tinham chegado os convidados do País das Maravilhas. A explicação causou muita alegria, porque nenhum dos presentes esperava que o pessoal do reino das fadas também viesse. E essa alegria se transformou em surpresa quando o primeiro deles apareceu. Era o Aladim, com sua lâmpada maravilhosa na mão. Chegou e foi trepando às arquibancadas, como se fosse um velho freqüentador de circos.

            Depois chegou o Gato de Botas junto com o Pequeno Polegar – e todos bateram palmas. Depois veio a Menina da Capinha Vermelha. E vieram Rosa Branca e sua irmã Rosa Vermelha. Rosa Vermelha apresentou-se de cabelo cortado, moda que as princesas do reino das fadas nunca usaram. Foi reparadíssimo aquilo; não houve quem não comentasse.

            Depois veio Ali Babá sem os quarenta ladrões, e vieram Alice de Wonderland, e Raggedy Ann e quase todos que existem.

            — Que maçada! — murmurou Pedrinho. — Justamente o que eu mais queria que viesse, não veio — Peter Pan…

            — Talvez ainda venha — disse Narizinho. — Ele gosta de fazer tudo diferente dos outros.

            Era hora de começar o espetáculo; o respeitável público já estava dando sinais de impaciência.

            — Palhaço! — gritava volta e meia o Pequeno Polegar.

            Nisto um cachorro principiou a latir furiosamente lá fora, como se estivesse dando um pega nalguém. Os espectadores fizeram silêncio, com as orelhas em pé, à escuta. Ali Babá trepou ao último banco para espiar por uma fresta do pano.

            — Que é, Ali? — perguntou Aladim, que estava embaixo arrumando a sua lâmpada.

            — É Pedrinho que atiçou o cachorro num sujeito muito feio, de barba azul como um céu.

            — Barba Azul! — exclamaram as princesas assustadas. – Cada vez que pomos o pé no sítio de dona Benta esse malvado aparece. Não o deixem entrar!…

            Houve um rebuliço. Aladim pegou na lâmpada para chamar o Gênio. Não foi preciso. Pedrinho surgiu em cena, já vestido de diretor de circo, e disse: — Calma! Calma! Não se assustem! O monstro já vai longe. Maroto ferrou-lhe uma dentada na barba, que até arrancou um chumaço — e mostrou um punhado de barba de Barba Azul.

            Todos vieram ver e cada qual levou um fio como lembrança.

            — Palhaço! — gritou de novo o Pequeno Polegar.

            — Cocada! — miou o Gato Félix.

            Pedrinho resolveu começar o espetáculo e deu sinal, batendo com um martelo numa enxada velha, pendurada de um barbante — blem, blem, blem…

           

5 – O espetáculo

             A alegria no circo era imensa. Ainda que o espetáculo não valesse nada, todos se dariam por bem pagos da viagem pelo simples prazer da reunião. Os convidados do reino das Águas Claras estavam radiantes de se verem com os famosos personagens que até ali só conheciam através dos livros de histórias. E estes, como fazia muito tempo que não vinham à terra, estavam satisfeitíssimos de se verem em companhia de crianças de carne e osso.

            Já soara o terceiro sinal e nada do espetáculo ter começo. O “respeitável público” ia ficando irritado. Narizinho achou que o melhor era começar  imediatamente.

            — Não posso antes de vovó chegar — alegou Pedrinho. — Está se arrumando ainda. Como as princesas vieram, vovó teve de mudar de vestido e está passando a ferro aquele de gorgorão do tempo do Imperador. Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.

            — Que não seja boba e venha — disse Narizinho. — Eu dou uma explicação ao respeitável público.

            Afinal as duas velhas apareceram — dona Benta no vestido de gorgorão, e Nastácia num que dona Benta lhe havia emprestado.

            Narizinho achou conveniente fazer a apresentação de ambas por haver ali muita gente que as desconhecia. Trepou a uma cadeira e disse:

            — Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virara uma linda princesa loura.

            Todos bateram palmas, enquanto as duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras especiais.

            — Palhaço! — gritou o Pequeno Polegar.

            — Podemos dar começo — disse Pedrinho à menina. — Vá preparar a Emília que eu vou cuidar do palhaço.

            Como o primeiro número do programa era uma corrida a cavalo da Emília, Narizinho deu-lhe os últimos retoques e fez-lhe as últimas recomendações. Pela primeira vez na vida a boneca mostrava-se um tanto nervosa. Blem, blem, blem, soou a enxada. Era hora.

            Uma cortina se abriu e a boneca entrou em cena montada no seu cavalinho de rabo de galo. Foi recebida com uma chuva de palmas. Emília fez uma graciosa saudação de cabeça, atirou uns beijinhos e começou a correr. Correu várias voltas, umas sentada de banda, outras, de pé num pé só.

            — Que danada! — exclamou dona Benta. — Nunca pensei que Emília se saísse tão bem; até parece o Tom Mix…

            Tia Nastácia apenas murmurou “Credo”! e persignou-se.

            Quando chegou o momento de pular os arcos, surgiu lá de dentro Faz-de-conta com dois deles na mão. Coitado! Estava mais feio do que nunca na roupa de cowboy que Narizinho lhe arranjara. Aladim virou se para o Gato de Botas e disse: “Este é que é o verdadeiro Cavaleiro da Triste Figura”, e o Pequeno Polegar berrou: “Arranca o prego, bicho careta!”

            Aquele prego de Faz-de-conta, cuja cabeça aparecia quando ele estava sem chapéu e cuja ponta furava as costas de todos os seus casacos, era um eterno assunto de discussão no sítio. Pedrinho achava que deviam chamar o doutor Caramujo para operá-lo, cortando com a sua serrinha o extravagante apêndice. Mas a menina era de opinião que tal ponta de prego constituía a única arma do coitado. Além disso, era um bom cabide que ela costumava utilizar nos seus passeios com a boneca. Para pendurar coisas leves, como chapéu ou o guarda-chuvinha da Emília, nada melhor. E em vista dessa utilidade a ponta de prego ia ficando nas costas do coitado. Faz-de-conta não ligou importância às troças que o público fez à custa dele.

            Trepou num banquinho e segurou com toda a convicção o arco de papel vermelho que Emília ia pular. A boneca botou o cavalo no galope, correu duas voltas e na terceira — zupt! deu um salto. Os espectadores romperam em palmas delirantes. O segundo arco era de papel azul e o terceiro, de papel verde. Emília pulou com a mesma habilidade o azul; mas ao pular o verde houve desastre.

            Imaginem que o cavalinho entendeu de pular também! Pulou, não há dúvida, mas o seu rabo de pena enganchou no prego de Faz-de-conta, onde ficou dependurado. Quando o público viu que o rabo de pena havia passado do cavalinho para o cabide do boneco, foi uma tempestade de gargalhadas. Não percebendo o que havia acontecido, Faz-de-conta recolheu-se aos bastidores balançando ao vento aquele penacho.

            Emília também não percebeu o desastre, e julgando que as risadas e vaias eram para ela, parou, vermelhinha como um camarão, e botou uma língua de dois palmos para o público. E recolheu-se furiosa.

            — Não brinco mais! — disse lá nos bastidores, arrancando e espatifando o saiote de gaze. — Não sou palhaço de ninguém.

            Foi um custo para Narizinho explicar o que havia acontecido e provar que a vaia tinha sido no cavalo e no boneco, não nela. A raivosa Emília voltou-se então contra o pobre Faz-de-conta.

            — Estrupício! Onde se viu tamanho homem andar de fisga nas costas, feito anzol?

            — Que culpa tenho? — gemeu o feiúra tristemente. — Nasci assim…

            — Pois não nascesse! — rematou a boneca — e por força do hábito pendurou-lhe na ponta do prego o esfrangalhado saiote de gaze.

 

6 – O desastre           

            Pedrinho estava numa terrível aflição. O Visconde havia desaparecido misteriosamente e o público não cessava de reclamar o palhaço. O menino não podia explicar a si próprio o estranho acontecimento. Deixara o Visconde, já vestido, num canto dos bastidores, prontinho para entrar em cena logo que Emília acabasse de correr — e não havia meio de descobrir o Visconde. Isso o obrigou a alterar a ordem do espetáculo.

            — Ande, Faz-de-conta — disse ele ao boneco — vá engolindo espadas enquanto eu campeio o Visconde — e empurrou-o para dentro do picadeiro.

            Faz-de-conta entrou com um feixe de espadas debaixo de um braço e uma lata de brasa debaixo do outro. Foi colocar-se bem no meio do picadeiro, num tapetinho que havia. E começou a engolir espadas. Fez o serviço tão bem feito que o público esqueceu a feiúra dele e rompeu em palmas. Depois de engolida a última espada, começou a comer fogo, e glut, glut, glut, deu conta de todas as brasas da lata. Ao comer a última, porém, esbarrou nela com a ponta do nariz (que, como todos sabem, era formado por um pau de fósforo) e pegou fogo.

            Foi uma sensação! O público desandou num berreiro.

            — Incêndio de nariz! — gritava o Polegar. — Chamem o corpo de  bombeiros!

            Aladim, Ali Babá, o Gato-de-Botas e outros pularam no picadeiro para socorrer o incendiado. Mas foi inútil. O nariz de Faz-de-conta já estava totalmente destruído, só restando um toquinho de carvão… O curioso é que o boneco melhorou bastante de aspecto.

            Ficou bem menos feio, porque sua feiúra era causada principalmente por aquele horrível nariz de fósforo que tia Nastácia lhe havia espetado na cara. Faz-de-conta foi levado para dentro e o público, chefiado pelo Pequeno Polegar, continuou a pedir palhaço. E como Pedrinho não conseguisse encontrar o Visconde, teve de aparecer com explicações.

            — Respeitável público! — disse ele. — Uma grande desgraça aconteceu. O nosso famoso palhaço Sabugueira acaba de desaparecer misteriosamente. Com certeza algum malvado o raptou, de modo que não há mais palhaço. Também não há mais pantomima. A grande estrela Emília, que desempenhava o papel principal, está emburrada e recusa-se a representar. Em vista desses contratempos vou terminar o espetáculo com a SURPRESA!

            Uns espectadores bateram palmas; outros assobiaram e o Gato Félix gritou:

            — Cocadas, ao menos!

            Nisto entrou a SURPRESA. Era — adivinhem se são capazes! era um elefante, o menor elefante do mundo, como Pedrinho foi dizendo enquanto arrumava no picadeiro as garrafas sobre as quais o elefantinho ia caminhar. Um verdadeiro sucesso, a surpresa! Era um elefante tão perfeito que até parecia natural — com tromba, presas de marfim e grandes orelhas caídas. Deu umas voltas pelo picadeiro, naquele andar sossegado dos elefantes grandes e depois começou a caminhar, com muito medo, sobre as garrafas que Pedrinho colocara de jeito.

            — Berra, elefante! — gritou Polegar.

            O elefante obedeceu e berrou três vezes com toda a força. Mas berrou numa voz muito parecida com voz de porco. Maroto, que estava lá fora tomando conta do circo, ouviu o berro e ficou de orelha em pé. Depois entrou por baixo do pano para ver o que era. Ao dar com aquele bicho nunca visto, pôs-se a latir furiosamente e avançou contra ele de dentes arreganhados. Tamanho susto levou o elefante, que tremeu em cima das garrafas e veio ao chão. Maroto agarrou-o e sacudiu-o, e tanto o sacudiu que a pele do elefante se rasgou pelo meio deixando escapar de dentro — coin, coin, coin — um animal que ninguém esperava: o senhor marquês de Rabicó!… Foi um sucesso! O circo quase veio abaixo de tanta vaia e gritaria. Pedrinho coçou a cabeça; depois danou e caiu de pontapés no Maroto, enquanto Rabicó fugia para o terreiro. Para salvar a situação Narizinho entrou no picadeiro com um cabo de vassoura de tabuleta na ponta, onde se lia em enormes letras vermelhas:

INTERVALO.

            — Intervalo tem dois LL! — gritou o Pequeno Polegar, que era partidário da ortografia antiga, a complicada.

            Mas ninguém lhe deu atenção. Todos cuidaram de descer o mais depressa possível, de medo que as cocadas não chegassem. Tia Nastácia, no seu vestido do tempo da Sinhá Moça, ergueu a toalha que cobria o tabuleiro e começou a distribuição.

            — Quero uma branca, duas cor-de-rosa e três queimadas ! — foi dizendo o Gato Félix.

            Enquanto isso, o Gato de Botas argumentava com Pedrinho a respeito do misterioso desaparecimento do Visconde.

            — Juro que foi Peter Pan quem o raptou — dizia o gato. – Peter Pan é muito amigo de pregar peças. Veio aqui às ocultas e “bateu” o palhaço. Garanto que não foi outra coisa.

            Mas não era nada disso. Era apenas o seguinte. O Visconde havia encontrado uma Trigonometria velha que pertencera ao cônego Encerrabodes e Pedrinho pusera como calço dum dos esteios do circo. Tamanha foi a sua satisfação, que arrancou o livro dali e saiu de braço dado com ele para um passeio pelos arredores. E por lá ficaram até o dia seguinte, a conversar sobre “senos” e “co-senos”.

            — Como isso, se o doutor Caramujo havia curado o Visconde da sua mania científica?

            Muito simples. Havia curado, mas não havia curado completamente. Deixara em sua barriga algumas letras para semente e foi o bastante para que a festa de Pedrinho acabasse naquele fiasco.

            Não há nada mais perigoso do que semente de ciência…

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