O Sítio… Quarta Parte

Reinações de Narizinho

Quarta Parte: O Casamento De Narizinho

1 – A doença do Príncipe

            Depois da viagem de Narizinho ao reino das Águas Claras o príncipe Escamado caiu em profunda tristeza. Emagreceu. Suas escamas foram ficando fininhas como papel de seda. Permanecia horas de olho pregado no trono de onde Narizinho havia assistido ao grande baile da corte, e de vez em quando puxava uns suspiros que pareciam arrancadas com torquês.

      E quanto a apetite, nada. Por mais coisas gostosas que o cozinheiro real inventasse, era sempre aquilo: o príncipe erguia-se da mesa sem tocar em prato algum. Minhocas lindas deixavam-no tão indiferente como se fossem dessas horríveis minhocas de isca, que têm anzol dentro.

            Esse estado de alma do príncipe entristecia bastante a corte. Além de o amarem sinceramente, receavam que no caso da morte do Escamado subisse ao trono alguma piranha de má casta, ou um célebre polvo que se divertia em estrangular os pobres peixes nos seus terríveis tentáculos.

            O doutor Caramujo foi chamado para examinar o príncipe. Tomou-lhe o pulso. Pediu para ver a língua. Depois, erguendo para a testa os óculos de tartaruga, disse com toda a gravidade:

            — Vossa Majestade está sofrendo de narizinho arrebitadite, doença muito séria, cujo único remédio é casamento com uma certa pessoa.

            O príncipe arregalou os olhos, cheio de espanto. Era a primeira vez que aquele médico não receitava pílulas.

            — Tens razão, Caramujo! — disse ele. — Minha moléstia não é do corpo, mas da alma. Desde que Narizinho deixou o reino não mais houve sossego para mim. Perdi o apetite, o sono, a coragem e não tenho gosto para coisa nenhuma.

            — Pois é! — continuou o médico, muito contente de ter acertado. — A doença de Vossa Majestade não passa de amor recolhido e só pode sarar com casamento. Se Vossa Majestade me permite, farei uma tentativa para obter esse precioso remédio.

            Os olhos do príncipe brilharam de esperança.

            — Sim, permito, pois não. E se conseguires obter-me esse precioso remédio, saberei recompensar-te. Far-te-ei Duque da Pílula!…

            O grande médico retirou-se contentíssimo com a idéia de virar duque. Seria uma grande honra para a família dos caramujos, na qual nunca houve nem sequer um comendador, quanto mais duque.

            E foi conferenciar sobre o importantíssimo assunto com os outros figurões da corte.

            Discutiram, discutiram, e depois de muito discutir resolveram endereçar a Narizinho um pedido de casamento. O doutor Caramujo mandou chamar uma senhora Lula, à qual disse:

            — A senhora, que é a escrevente do mar, porque tem dentro do corpo uma pena de osso e um tinteiro de tinta, faça uma carta bem bonita pedindo a mão de Narizinho para o nosso amado príncipe.

            A senhora Lula fez a carta. O doutor Caramujo dobrou-a, bem dobradinha, e fechou-a, bem fechadinha. E colocou dentro duma concha de madrepérola — para que não se molhasse na viagem. Em seguida entregou a concha aos peixinhos escoteiros, dizendo:

            — Levem-me esta concha até à beira do ribeirão que corre pelo sítio de dona Benta e depositem-na em lugar onde possa ser enxergada. Se se distraírem pelo caminho com alguma minhoca e perderem a concha, o príncipe os fará eletrocutar a todos pelo peixe elétrico, estão ouvindo?

            Os peixinhos juraram obediência e lá seguiram, rodando com a concha pelo fundo do mar.

2 – O pedido

            Logo que os peixinhos escoteiros chegaram ao sítio de dona Benta, foram tratando de erguer a concha e enroscá-la entre duas pedras na beirinha do ribeirão — bem perto do pé de ingá. E por ali ficaram, descansando e espiando.

            Não demorou muito, apareceu Pedrinho de vara na mão; vinha pescar justamente ali. Chegou, pôs uma pobre senhora minhoca no anzol e já ia lançá-la ao rio, quando…— Concha por aqui! — exclamou muito admirado. — Isto tem dente de coelho!…

            Pegou a concha. Examinou-a. Sacudiu-a ao ouvido. Percebeu barulhinho de carta dentro. Abriu-a: era carta mesmo!

            — Hum! Carta para Lúcia. Há de ser namoro — e voltou para casa a correr.

            — Narizinho! — foi gritando logo da porta da rua. — Uma carta para você!…

            A menina estava ajudando tia Nastácia a enrolar rosquinhas de polvilho.

            Assim que ouviu aqueles berros, largou da massa, limpou as mãos no avental da preta e disse:

            — De quem será, meu Deus do céu? Rasgou o envelope e leu: Senhora!             A felicidade do reino das Águas Claras está nas vossas mãos. Nosso príncipe perdeu-se de amores e só pode ser salvo se a menina o aceitar como esposo. Ou casa-se ou morre — diz o médico da corte.

            Quererá a menina salvar este reino da desgraça, compartilhando o trono com o nosso muito amado príncipe?

            (Assinado) Peixinhos do mar

            — Sim, senhor! — disse Narizinho depois de lida a carta. – Estes tais peixinhos sabem escrever na perfeição. Acho que nem vovó, que é uma danada, seria capaz de escrever uma cartinha tão cheia de gramáticas… Depois, voltando-se para Pedrinho, ordenou muito naturalmente:

            — Responda que sim, que aceito. Diga que estou ajudando tia Nastácia a enrolar estas rosquinhas e logo que acabe irei casar com ele.

            Dona Benta, que ia passando, ouviu o final da frase.

            — Casar com quem, menina? Que história de casamento é essa?…

            — Sim, vovó! Fui pedida em casamento e aceitei. Vou casar-me com o príncipe Escamado.

            Tia Nastácia arregalou os olhos para dona Benta, que por sua vez tinha os olhos arregalados para a menina.

            Narizinho riu-se de tanto olho arregalado e continuou :

            — De que é que se espantam? Se toda a gente se casa, por que não posso casar-me também?

            — Sim, minha filha — respondeu dona Benta com pachorra.

            — Todos se casam, não há dúvida. Eu me casei, sua mãe se casou. Mas todos se casam com gente da mesma igualha. É muito diverso disso de casar com um peixe…

            — Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí dum peixe vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas o meu noivo é um grande príncipe das águas!…

            — Mas não é criatura da nossa espécie, menina.— E que tem isso? A Emília, que é uma boneca, não se casou tão bem com Rabicó, que é leitão? Acho as suas idéias muito atrasadas, vovó…

            Dona Benta volveu os olhos para tia Nastácia.

            — Já não entendo estes meus netos. Fazem tais coisas que o sítio está virando livro de contos da Carochinha. Nunca sei quando falam de verdade ou de mentira.  Este casamento com peixe, por exemplo, está me parecendo brincadeira, mas não me admirarei se um belo dia surgir por aqui um marido-peixe, nem que esta menina me venha dizer que sou bisavó duma sereiazinha…

            A negra benzeu-se com ambas as mãos.

            — Credo! Até parece bruxaria… Mas se chegar a esse tempo, sinhá, mecê que trate de arranjar outra cozinheira. Assim catacega como sou, tenho medo de escamar e fritar um bisneto de mecê pensando que é alguma traíra…

            Enquanto as velhas discutiam o estranho caso, Pedrinho fez a carta de resposta. Depois dobrou-a, bem dobradinha. Depois fechou-a, bem fechadinha, dentro do mesmo envelope-concha. Depois colocou o envelope-concha no lugar onde o havia encontrado.

            Imediatamente os peixinhos escoteiros se aproximaram. Cheiraram a concha, viram que havia resposta dentro e com fortes narigadas a derrubaram n’água, voltando a rolar com ela pelo fundo do rio.

            Quando o príncipe leu a resposta de Narizinho, quase morreu de alegria. Apesar de ser a carta mais curta do mundo, pois se compunha apenas duma palavra — “SIM!” — o príncipe perdeu a compostura, e pôs-se a dar pinotes em cima do trono que até parecia um peixe pescado e largado no seco. Os ministros e demais fidalgos da corte trocaram olhares de aflição. Teria enlouquecido o amado príncipe?

            Escamado, afinal, caiu em si, e ficou vermelhinho como um camarão.

            — Perdoem-me estas expansões, amigos! — disse ele. – São alegrias loucas dum náufrago que vê afinal o porto da salvação. Este “sim” comoveu-me até o fundo da alma. Não é um simples sim, reparem. É um sim seguido de um ponto de admiração! Quer dizer que Narizinho não se limita a aceitar a minha proposta, mas a aceita com entusiasmo! Céus! Como me sinto feliz!…

            Dando em seguida ordem para prepararem o reino para a maior festa que ainda houve nos Sete Mares, dirigiu-se à sua mesinha, molhou uma pena de beija-flor na pérola furada que lhe servia de tinteiro e principiou a escrever cartas de amor.

            Escreveu até acabar a tinta e a pena ficar reduzida a um toco. Ia escrevendo e mandando, e tantas escreveu e mandou que o mordomo do palácio teve de organizar um serviço de correio especial, dispondo milhares de sardinhas pelo mar afora, a pouca distância uma da outra. As cartas iam passando de mão em mão, como fazem os pedreiros com os tijolos. Narizinho lia as cartas e respondia com presentes — ora uma flor, ora um grilinho do gramado, ora uma rosada e roliça minhoca.

            Mandou também uma das rosquinhas de polvilho, dizendo que fora enrolada pela suas próprias mãos.Foi o presente de que o príncipe mais gostou. Mas em vez de comer a rosquinha, mandou que o melhor ourives do reino engastasse nela uma fileira de diamantes, de modo a transformá-la numa preciosa coroa.

            — Ficará sendo a minha coroa real — e nenhuma porei na cabeça com maior orgulho! — disse o príncipe, comovido.

3 – Os brincos do marquês

            Chegou afinal o dia da partida. De manhã cedo Narizinho deu os últimos retoques no vestido novo da boneca.

            Emília fez cara de pouco caso. Achou feio. Queria vestido de cauda.

            — Você — disse ela — convidou-me para madrinha do casamento, lembre-se. Como, pois, posso apresentar-me na corte com este vestido de Judas no sábado de Aleluia?

            — Lá arranjaremos outro, como daquela vez — respondeu a menina. Este é só para a viagem. Se faço vestido de cauda, você vai enganchando pelo fundo do mar, onde há muito pé de coral mais espinhento que carrapicho.

            O Visconde de Sabugosa também ia, para servir de padrinho. Narizinho mudou-lhe a fita da cartola e pediu a Emília que o escovasse da cabeça aos pés.

            — Este senhor Visconde — acrescentou a menina – está mudando de gênio. Depois que caiu atrás da estante de vovó e lá ficou esquecido três semanas, embolorou e deu para sábio. Parece que os livros pegaram ciência nele. Fala dificílimo! É só física para aqui, química para ali…

            — E Rabicó? — indagou a boneca.

            — Rabicó não vai! — gritou Pedrinho que ia entrando nesse momento. — Está um marquês muito mal-educado, estragador de todas as nossas festas. Não se lembra do que fez com as cocadas no dia do seu próprio casamento?

            Narizinho protestou.

            — Mas não fica bem, Pedrinho! Rabicó, afinal de contas, é marido de Emília e não fica bem que Emília apareça na corte sozinha. Podem falar dela…

            — Pois então vai — resolveu Pedrinho — mas o meu bodoque vai também, e se ele não se comportar muito direitinho, já sabe – é cada pelotada na orelha de sair cinza!

            Pedrinho ganhara um bodoque de guatambu e agora resolvia tudo a bodocadas. Mas Narizinho não se conformou.

            — Coitado de Rabicó! Não sei por que você tanto se implica com ele…

            — Não é implicar, Narizinho. Rabicó é mesmo capadócio e encrenqueiro por natureza. Veja o Visconde. Não passa dum simples sabugo de milho, mas como é distinto, palaciano, todo cheio de mesuras! Quando se senta numa cadeira, fica ali horas, dias, semanas inteiras sem incomodar ninguém.

            Às onze horas foram todos para a beira do ribeirão, onde já estava o coche do príncipe à espera deles no fundo da água.

            — O coche já veio — disse Emília — e Rabicó ainda não está vestido. Você esqueceu-se de arrumá-lo, Narizinho.

            — É verdade! Mas isso é coisa de um minuto — respondeu a menina e atou um laço de fita na caudinha encaracolada do marquês.

            — Só faltam agora uns brincos — lembrou Pedrinho, tirando do bolso dois amendoins com casca. Estalou-os e prendeu-os na ponta de cada orelha do leitão.

            Depois disse de cara feia: “Não me vá comer os brincos, senhor marquês, senão já sabe o que acontece” – e apontou para o bodoque.

            Nesse momento o doutor Caramujo saiu d’água. Trepou a uma pedra e fez com os chifrinhos gesto de que podiam tomar o coche.

            As águas imediatamente se abriram, como no Mar Vermelho quando os hebreus chegaram perseguidos pelos egípcios. Tomando à frente, Narizinho desceu ao fundo, seguida de todos os mais.

            Entraram no coche. Contaram-se. Faltava o marquês!

            — Sempre se espera pela pior figura! — resmungou Pedrinho já meio aborrecido. — Por que será que ele não aparece?

            Nisto a cabeça do doutor Caramujo surgiu à janelinha.

            — O senhor marquês não quer entrar! — murmurou ele muito aflito.

            — Eu não disse? — exclamou Pedrinho encolerizado. — Rabicó já começa com encrencas! Mas esperem aí… e saltou do coche, de bodoque em punho. Emília teve um começo de faniquito, sendo preciso que Narizinho lhe esfregasse no nariz uma folha de erva-cidreira.

            Segundos depois Rabicó, esfogueteado por Pedrinho, entrava para a carruagem feito uma bala, indo encorujar-se aos pés da menina. Emília olhou para ele e danou.

            — Veja, Narizinho! Rabicó já perdeu o brinco da orelha direita!

            E olhe como está todo amarrotado o laço de fita…

            Pedrinho e o doutor Caramujo surgiram.

            — Finquei-lhe uma pelotada na orelha das de arrancar faísca! — foi dizendo o menino.

            — Judiação! — exclamou a menina apiedada. — Mas o pior é que acertou no brinco, que lá se foi…

            — Não faz mal — resolveu Pedrinho. — Explica-se lá na corte que a moda aqui na terra é um brinco na orelha esquerda e todos acreditam.

            E voltando-se para o camarão cocheiro:

            — Vamos!

            O chicotinho do camarão estalou e os hipocampos partiram no galope.

            O caminho por onde o coche corria era uma beleza. Florestas de esponjas.

            Florestas de algas. Florestas de corais. Até por uma floresta de mastros de navios naufragado o coche passou.

            Os viajantes espiavam pelas janelinhas e viam deslizando no seio das águas os vultos dos mais terríveis monstros do mar — tubarões enormes, espadartes, serpentes. Até um polvo viram, ondeando os seus compridos tentáculos.

            Emília gostou muito do polvo.

            — Sou capaz de fabricar um! — exclamou, fazendo todos se voltarem para ouvir a asneirinha que ia sair. — Pego numa porção de cobras e amarro todas as cabeças num saco de couro e solto no mar e vira polvo!…

            — Você é mesmo uma danada, Emília — disse Narizinho distraída, com os olhos postos em Rabicó, muito jururu no seu canto.

            — Mas era melhor que endireitasse o brinco de seu marido. Está cai não cai…

            — Ele que coma o brinco duma vez — respondeu a boneca.          — Toda essa tristeza de Rabicó é vontade de comer o brinco.

            Rabicó passou a língua pelos beiços, com uma olhadela para o bodoque de Pedrinho — e suspirou.

            Enquanto isso Pedrinho conversava com o doutor Caramujo a respeito da serpente do mar.

            — Mas há ou não há essa tal serpente? — indagava ele. – Uns dizem que há, outros dizem que não há. Qual a sua opinião, doutor Caramujo?

            — Nunca a vi — respondeu o médico. — Mas o mar é tão grande que deve haver de tudo.

            — Uma coisa não há — interveio Narizinho. — Sereias! Vovó diz que sereia é mentira.

            Pedrinho fez um muxoxo de dúvida.

            — Como vovó pode saber, se nunca devassou todos os mares?

            — Essa é boa! É de primeira. Parece até que a burrice de Emília pegou em você, Pedrinho! Vovó sabe porque lê nos livros e é nos livros que está a ciência de tudo. Vovó sabe mais coisas do mar, sem nunca ter visto o mar, do que este senhor Caramujo que nele nasceu e mora. Quer ver?

            E voltando-se para o ilustre doutor:

            — Diga, doutor, qual é o seu nome científico?

            O doutor Caramujo engasgou, com cara de quem nem sequer sabia que tinha um nome científico.

            — Não sabe, não é? — continuou Narizinho vitoriosa. — Pois fique sabendo que vovó sabe — e até o senhor Visconde, só porque cheirou os livros de vovó, é capaz de saber. Vamos, Visconde! Dê um quinau aqui neste sábio da Grécia. Diga qual é o nome científico dos caramujos.

            O Visconde limpou o pigarro e deitou sabedoria.

            — O senhor Caramujo é um molusco gastrópode do gênero Líparis.

            Entusiasmada com a ciência do Visconde, Narizinho bateu palmas.

            — Está vendo, doutor? O senhor é um Líparis, Líparis! Com “L” grande! Escreva na sua casca para não esquecer. O nosso Visconde sabe o nome científico de todas as coisas, menos uma…

            Aposto que não sabe o nome científico de Emília!…

            O Visconde respondeu, depois de limpar outro pigarro:

            — A senhora Emília é um animal artificial que não está classificado em nenhuma zoologia.

            Narizinho deu uma gargalhada gostosa.

            — Eu não aturava tamanho desaforo! — disse cutucando a boneca. — Chamar a você, uma ilustre marquesa, de animal!…

            Emília olhou para o Visconde com um arzinho de soberano desprezo.

            — Não ligo a vegetais — disse ironicamente — que antes de serem Viscondes andavam jogados no chão, perto do cocho das vacas, sujos de terra e outras coisas, sem cartola nem nada… O Visconde é muito importante, mas treme de medo cada vez que passa perto da vaca mocha…

            — O senhor Visconde tem medo de vacas? — inquiriu o doutor Caramujo muito admirado, apesar de não saber o que era vaca.

            — Como não? — respondeu Narizinho. — Ele é sabugo e todo sabugo assim que vê uma vaca finca o pé no mundo. Não sabe que as vacas preferem comer um sabugo a comer um bombom? A mãe do Visconde, o pai do Visconde, os irmãos, os primos, os tios, o sogro — a parentela inteira do Visconde, todos os sabugos lá do sítio de vovó foram mascados pela vaca mocha. Só escapou este, porque usa cartola e vaca tem medo de sabugo de cartola.

            Nesse momento o coche entrou por uma planície de areia que não tinha fim.

            Pedrinho olhou para aquilo com desânimo, a coçar a cabeça. Estava com preguiça de atravessar tanta areia.

            — Estou farto de fundo do mar — disse ele. — O melhor é chegarmos já, já, ao palácio do príncipe.

            E sem esperar pela resposta dos outros, berrou para o camarão cocheiro:

            — Chegue já, cocheiro, se não vai pelotada!…

            O camarão cocheiro não discutiu. Puxou as rédeas e chegou e parou bem defronte do palácio real.

4 – A chegada

            Rodeado de toda a corte e de enorme multidão de povo do mar, veio o príncipe receber a menina. Assim que ela apeou do coche, todos bateram palmas, deram vivas e soltaram peixes fosforescentes, que eram os foguetes lá deles. O príncipe abraçou a sua noiva, nada podendo dizer de tanta comoção que sentia.

            Beijou-lhe a ponta dos dedos e subiu com ela as escadarias do palácio.

            — Deve estar muito cansada — disse o peixinho por fim, depois que recobrou a voz. — Vou levá-la aos aposentos nupciais, onde tudo é pérola e coral.

            — Que bonito! — exclamou Narizinho. — E os outros para onde vão?

            — Tenho também maravilhosos aposentos para os outros. O Visconde irá para o quarto das algas; o marquês, para o quarto dos corais vermelhos.

            Narizinho interrompeu-o com uma risada.

            — O senhor príncipe não conhece o gosto dos meus companheiros. O Visconde, que é um sábio, só quer saber de livros. Basta enfiá-lo numa estante. E para o marquês, nada melhor do que um chiqueirinho com três grandes abóboras do mar dentro.

            — E o senhor Pedro?

            — Esse é deixar solto por aí, com o bodoque. Não mexam com Pedrinho, que ele dana. Emília fica comigo.

            — Julguei que a senhora marquesa de Rabicó fosse ficar no chiqueiro do senhor marquês…

            A menina achou muita graça naquela idéia.

            — Emília é uma emproada, príncipe, que não dá confiança ao marido. Casou-se só por casar, pelo título, e se encontrar por aqui algum duque, é bem capaz de divorciar-se do marquês. A menos que não queira casar-se com o Visconde, concluiu com malícia, voltando-se para a boneca.

            Emília replicou sem demora, fazendo a sua célebre carinha de pouco caso:

            — “Animal” não casa com “vegetal”… O príncipe ia se retirando para que a menina pudesse descansar à vontade, quando Pedrinho apareceu no quarto.

            — E agora, príncipe, que é que vamos fazer agora? – indagou ele.

            — Descansar da viagem — respondeu Escamado.

            — E se fizéssemos de conta que já estamos descansados?

            — Nesse caso, eu os convidaria para a festa de recepção na sala do trono.

            — Como é essa festa, príncipe?

            — Oh, muito linda! Começa com um bonito discurso oficial; depois, outro discurso…

            — Pare, príncipe! Chega de discursos. Prefiro dar um passeio pelo fundo do mar, e Narizinho com certeza prefere ir tratar dos seus vestidos.

            — É verdade! — acudiu a menina. — Preciso chegar à casa de dona Aranha Costureira para combinar com ela o meu vestido de casamento e um de cauda bem comprida para a marquesa. Não podemos aparecer na corte nestes trajes, não acha, Emília?

            — Pois decerto. Basta a triste figura que fiz da primeira vez em que aqui estive. Em fralda de camisa, lembra-se?…

5 – Apuros do marquês

            Enquanto Narizinho e Emília eram conduzidas à casa de dona Aranha, Pedrinho, o Visconde e Rabicó tomavam a direção da Floresta Vermelha — a mais linda mata de coral do reino.

            — Deve ser lá que moram os polvos — disse Pedrinho. – Quero ver se levo um, para assustar tia Nastácia no sítio.

            O Visconde ia abrindo a boca para dar sua opinião sobre os polvos, quando um grito agudo o interrompeu. Era Rabicó. Ao passar perto dum ouriço do mar, o bobinho julgou que fosse coisa de comer e nhoc! Agora berrava com desespero, com o ouriço espetado na boca. Pedrinho correu em seu socorro e só a muito custo pôde livrá-lo do terrível bicho.

            — Bem feito! — advertiu. — Quem manda ser tão guloso? Comporte-se como o Visconde que nada acontecerá.

            Rabicó respondeu soluçando e ainda com uma lágrima pendurada dos olhos:

            — É muito fácil ser bem comportado quando não se tem estômago. Mas eu tenho um estômago que vale por dois. Por mais que coma, estou sempre com fome — e hoje ainda nem almocei…

            Pedrinho teve dó dele.

            — Pois coma o brinco, e contente-se com isso porque não há mais nada por enquanto.

            Sem esperar segunda ordem, Rabicó devorou o brinco de amendoim com casca e tudo. Não perdeu um farelinho! Depois lambeu os beiços, cheio de saudade do outro amendoim, espatifado pela pelotada de Pedrinho. Foram andando. Súbito divisaram ao longe um vulto negro.

            — Quem será? — indagou o menino firmando a vista.

            — Deve ser um gigantesco polvo — sugeriu o Visconde.

            — Polvo o seu nariz. Onde já se viu polvo com mastros? É navio e muito bom navio.

            De fato era um navio naufragado — um enorme navio de três mastros, já meio enterrado na areia. Correram todos para lá; e como vissem um rombo no casco, entraram por ele. Puderam assim percorrer o navio inteirinho — os camarotes, os salões, o tombadilho. Rabicó separou-se dos companheiros para descobrir onde era a cozinha, na esperança de encontrar algum resto de comida. De repente gritou, muito alegre:

            — Achei uma linda raiz de mandioca! Venham ver!…Pedrinho e o Visconde foram ver, mas viram coisa muito diferente. Viram Rabicó ferrar o dente na tal raiz de mandioca e viram a raiz mover-se como cobra, enlear-se nele e arrastá-lo para o fundo de um camarote.

            — Que será isto? — murmurou Pedrinho aproximando-se na ponta do pé, com o bodoque armado. Espiou. Era um polvo! Estava o pobre marquês nos braços dum enorme polvo, que o olhava muito admirado, como se jamais houvera visto leitão com laço de fita na cauda. — É o que pensei — cochichou o menino para o Visconde. — Rabicó mordeu no tentáculo deste monstro pensando ser mandioca. E agora está perdido!…

            — Pelotada nele! — sugeriu o sábio.

            — Não adianta — respondeu Pedrinho coçando a cabeça, sem saber o que fazer. Nisto teve uma idéia. – Senhorita — disse a uma sardinha que também estava assistindo ao espetáculo. — Faça-me o favor de ir correndo ao palácio dizer ao príncipe que o marquês está nas garras dum polvo. Ele que mande ajuda com a maior urgência!…

            Ia a sardinha dando uma rabanada para partir, quando o Visconde a segurou pela caudinha.

            — Senhorita, poderá acaso dizer-me qual é o seu nome científico?

            Não sendo uma sardinha culta, julgou ela que o Visconde estivesse caçoando e ofendeu-se.

            — Malcriado! Não se enxerga? — retrucou botando-lhe a língua.

            E lá se foi em direção ao palácio, toda empinadinha para trás, a resmungar contra o “estafermo”. O Visconde, muito desapontado, ficou a refletir consigo que era uma pena serem totalmente analfabetos os habitantes daquele reino.

 

 6 – O vestido maravilhoso

            Enquanto a tragédia de Rabicó se desenrolava no camarote do navio afundado, Narizinho e Emília escolhiam figurinos em casa de dona Aranha Costureira. Depois passaram a escolher fazendas. Dona Aranha tirou dos seus armários de madrepérola um vestido cor do mar com todos os seus peixinhos; e com o maior pouco caso, como se fosse de alguma cassinha barata, desdobrou-o diante das freguesas assombradas.

            — Que maravilha das maravilhas! — exclamou Narizinho, de olhos arregalados, sentindo uma tontura tão forte que teve de sentar-se para não cair. Era um vestido que não lembrava nenhum outro desses que aparecem nos figurinos. Feito de seda? Qual seda nada! Feito de cor — e cor do mar! Em vez de enfeites conhecidos — rendas, entremeios, fitas, bordados, plissês ou vidrilhos, era enfeitado com peixinhos do mar. Não de alguns peixinhos só, mas de todos os peixinhos — os vermelhos, os azuis, os dourados, os de escamas furta-cor, os compridinhos, os roliços como bolas, os achatados, os de cauda bicudinha, os de olhos que parecem pedras preciosas, os de longos fios de barba movediços — todos, todos!… Foi ali que Narizinho viu como eram infinitamente variadas a forma e a cor dos habitantes do mar. Alguns davam idéia de verdadeiras jóias vivas, como se feitos por um ouvires que não tivesse o menor dó de gastar os mais ricos diamantes e opalas e rubis e esmeraldas e pérolas e turmalinas da sua coleção. E esses peixinhos-jóias não estavam pregados no tecido, como os enfeites e aplicações que se usam na terra. Estavam vivinhos, nadando na cor do mar como se nadassem n’água. De modo que o vestido variava sempre, e variava tão lindo, lindo, lindo, que a tontura da menina apertou e ela pôs-se a chorar.

            — É a vertigem da beleza! — exclamou dona Aranha sorridente, dando-lhe a cheirar um vidrinho de éter.

            Emília espichou a munheca para apalpar a fazenda; queria ver se era encorpada.

            — Não bula! — murmurou Narizinho com voz fraca, ainda de olhos turvos.

            O mais lindo era que o vestido não parava um só instante. Não parava de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-cor, porque os peixinhos não paravam de nadar nele, descrevendo as mais caprichosas curvas por entre as algas boiantes. As algas ondeavam as suas cabeleiras verdes e os peixinhos brincavam de rodear os fios ondulantes sem nunca tocá-los nem com a pontinha do rabo. De modo que tudo aquilo virava e mexia e subia e descia e corria e fugia e nadava e boiava e pulava e dançava que não tinha fim… A curiosidade de Emília veio interromper aquele êxtase.

            — Mas quem é que fabrica esta fazenda, dona Aranha? — perguntou ela, apalpando o tecido sem que Narizinho visse.

            — Este tecido é feito pela fada Miragem — respondeu a costureira.

            — E com que a senhora o corta?

            — Com a tesoura da Imaginação.

            — E com que agulha o cose?

            — Com a agulha da Fantasia.

            — E com que linha?

            — Com a linha do Sonho.

            — E… por quanto vende o metro?

            Narizinho, já mais senhora de si, deu-lhe uma cotovelada.

            — Cale-se, Emília. Os peixinhos podem assustar-se com as suas asneiras e fugir do vestido.

            Nesse instante a porta abriu-se assustadamente e o príncipe apareceu, mais assustado ainda.

            — Uma grande desgraça! — foi ele dizendo. — Acaba de chegar uma sardinha mensageira com aviso do senhor Pedrinho, comunicando que o marquês de Rabicó está nas garras dum polvo!…

            Narizinho empalideceu de susto e exclamou:

            — É preciso salvá-lo, custe o que custar, príncipe! Se Rabicó for comido pelo polvo, vovó vai ficar danada!…

            — Já mandei em seu socorro o meu melhor batalhão de couraceiros. Só resta que cheguem a tempo…

            — Quem são eles?

            — Os caranguejos rajados.

            — Mas caranguejo anda tão devagar, príncipe! — murmurou a menina com cara de desconsolo.

            — Sim, mas partiram montados em velocíssimos peixes elétricos. Tenho esperança de que tudo acabe bem.

            — Os anjos digam amém! — suspirou a menina, ainda com o pensamento no pito que poderia levar de dona Benta.

            Emília aproveitou a oportunidade para perguntar ao príncipe que tal achava o figurino que escolhera para o seu vestidinho de cauda.

            — Muito bonito — respondeu ele maquinalmente, pensando noutra coisa.

            — Pois está às suas ordens — disse amavelmente a boneca.

            Narizinho chamou-a de parte e cochichou-lhe ao ouvido:

            — Não se meta a conversar com o príncipe. Você diz sempre o que não é para dizer.

            Emília amarrou um pequeno burrinho, certa de que era de ciúmes que a menina não queria que ela falasse com o príncipe.

 

7 – Vem vindo o socorro

            Pedrinho suava na maior aflição. O socorro que pedira não vinha nunca.

            Quando chegasse, talvez Rabicó já estivesse estrangulado pelo monstro. O que estava retardando isso era a curiosidade do polvo. Parecia divertir-se em olhar para o focinho aterrorizado do mísero marquês de língua de fora, que revirava os olhos para todos os lados em procura da salvação. Pedrinho, que espiava a cena por uma fresta do camarote, fazia-lhe sinais para que não morresse antes da chegada do socorro.

            Quanto ao Visconde, estava, por ordem de Pedrinho, trepado à gávea do mastro grande para dar aviso logo que avistasse as tropas do príncipe. Mas foi coisa que nada adiantou. O Visconde era um verdadeiro sábio e os sábios são muito distraídos.

            Logo que chegou ao alto do mastro, distraiu-se com uma baratinha do mar que andava por ali, ficando a parafusar que nome científico poderia ela ter. Por isso não viu a chegada dos couraceiros, nem pôde dar o aviso. Eram os tais couraceiros uns terríveis caranguejos rajados, de casca rija como a da tartaruga e armados de pinças piores que boticão de dentista. Por serem muito vagarosos, vinham montados em peixes-elétricos. Chegaram, apearam. O comandante perguntou ao menino onde estava o senhor Marquês.

            — No camarote número 7, bem no fundo – respondeu Pedrinho em voz baixa para que o polvo não ouvisse.

            Os couraceiros foram avançando, pé ante pé. Foram avançando e, de repente, deram um pulo, todos ao mesmo tempo, e “fulminaram” o polvo. Sim, fulminaram.

            Como viessem montados em peixes elétricos, tinham ficado carregadíssimos de eletricidade, como pilhas, e assim, mal seus ferrões tocaram o polvo, produziu-se o terrível choque elétrico que o fulminou. E não fulminou Rabicó também? Não.

            Rabicó tinha-se agarrado por acaso a um pára-raio que havia ali. Isso o salvou. E mal escapou do monstro, correu, coin, coin, coin, para onde estava o menino. Mas apesar de salvo continuava, coin, coin, coin, como se ainda estivesse sofrendo alguma coisa. Pedrinho examinou-o. O pobre marquês estava com um siri ferrado na pontinha da cauda!

            — Escapei dum mas caí noutro! — gemia o mísero. – Este polvinho que me está agarrado à cauda é duas vezes mais doído que o grande…

            Em vez de livrá-lo do siri, Pedrinho achou graça no caso.

            — Você fica lindo assim, marquês! Esse siri na cauda vai muito melhor que o laço de fita vermelha — e deixou-o como estava.

            Pedrinho foi dali examinar o polvo moribundo, naquele momento rodeado dos valentes couraceiros. Nisto viu o Visconde que vinha descendo do mastro com a baratinha dentro da cartola.

            — Acho que esta baratinha deve ser um Balabera gigante das Índias Ocidentais, começou ele a explicar.

            O menino ficou danado.

            — E eu acho que o senhor Visconde é um perfeito palerma. Foi para pegar baratinha que eu o mandei subir ao mastro?— É verdade! — exclamou o Visconde batendo na testa. — Esqueci-me completamente da sua recomendação. Mas não faz mal, volto para  lá outra vez e assim que as tropas do príncipe apontarem ao longe darei sinal.

            — Vai voltar mas é para o palácio, isso sim. Não vê que as tropas do príncipe já vieram e Rabicó já está salvo? — e pondo o marquês em marcha tomou rumo do palácio.

            O Visconde seguiu atrás, com a baratinha na mão. “Será uma Balabera ou uma Stylopyga? Que pena estar tão longe aquele livro de dona Benta…” — ia pensando ele, todo rugas na testa.

            Chegando ao palácio encontraram as portas fechadas. O porteiro disse-lhes que o casamento já havia começado. Pedrinho aborreceu-se.

            — Essa é boa! Será que terei de assistir ao casamento de Narizinho aqui da rua? Abra a porta! — ordenou ao porteiro.

            — Só com ordem do príncipe — respondeu este. Pedrinho armou o bodoque; mas mudando de idéia disse a uma minhoca do mar que estava de prosa com o porteiro:

            — Senhorita, faça-me o favor de passar pelo buraco da fechadura e ir dizer ao príncipe que mande abrir a porta incontinenti, pois estou esperando aqui na rua…

            Partiu a minhoca e Pedrinho, ansioso por saber o que estava se passando, trepou a uma das janelas para espiar lá dentro. E viu tudo. Viu Narizinho deslumbrante no seu vestido cor do mar com todos os seus peixinhos. Na cabeça trazia um diadema feito das mais raras pérolas dos sete mares, e na mão um cetro de nácar todo esculpido.

            Ao lado dela caminhava o príncipe no seu maravilhoso manto de rei, feito das mais raras escamas. Atrás vinha a Emília, de vestido de cauda, braço dado a um soleníssimo Bernardo Eremita. Este senhor trazia nas mãos uma salva de escama onde repousava a coroa com que o príncipe ia ser coroado. Firmando a vista, Pedrinho viu que a coroa era a tal rosquinha que a menina lhe havia mandado de presente.

            — Esta Narizinho é de muita sorte! — murmurou ele consigo.

            — Apanhou um marido que além de príncipe tem idéias muito felizes…

            Chegados aos primeiros degraus do trono, os reais noivos principiaram a subir passo a passo, ao som das mais belas músicas que se possam imaginar. Eram cantos de sereias vindas de todos os pontos do oceano. Pedrinho, que jamais vira sereia, arregalou bem arregalados os olhos pensando lá consigo : “E a boba da vovó que não acredita em sereia?” Súbito, o príncipe parou, como se alguém estivesse a lhe mexer no pé. Olhou para baixo. Viu a minhoca com o recado. Entendeu muito bem o que ela disse e, voltando-se para Narizinho, explicou:

            — É Pedrinho, o Visconde e o marquês que acabam de chegar.

            — Que bom! — exclamou a menina batendo palmas. — Mas agora temos de recomeçar a festa desde o começo, se não Pedrinho fica danado. Quem mandava no reino já era Narizinho. Um desejo seu valia por ordem terminante, de modo que o príncipe fez parar a festa para começar  novamente. Cada qual foi para o seu posto, todos muito compenetrados, à espera de que Pedrinho, o marquês e o Visconde entrassem e tomassem as poltronas que lhes estavam reservadas. As portas do palácio abriram-se afinal e os três aventureiros surgiram. Emília incontinenti notou qualquer coisa estranha na ponta da cauda do marquês.

            — Que é que Rabicó tem na cauda? — interrogou ela firmando a vista. — Parece que o laço de fita virou siri… e correu para ver bem.

            Verificando que era siri mesmo, desmaiou de vergonha — Ah!…

            Houve grande rebuliço. Toda a corte correu para ampará-la.

            Veio à pressa o doutor Caramujo, que lhe tomou o pulso demoradamente.

            — Não está morta, não! — disse ele por fim. – Apenas desacordada.

            — E como há de ser para acordá-la? — perguntou Narizinho ansiosa. — Não haverá éter por aqui?

            — Há coisa melhor — declarou o doutor Caramujo. — Há siris. Para acordar uma criatura desmaiada, não conheço nada melhor do que botar um siri em cima.

            Tragam-me um siri!…

            O príncipe gritou:

            — Um siri! Meu reino por um siri!…

            — Aqui está um — disse Rabicó voltando-se de costas para o doutor Caramujo, muito contente de ter aparecido aquele jeito de se livrar do incômodo brinco da cauda.

            O doutor agarrou no siri, tirou-o da cauda de Rabicó e aplicou-o no nariz da Emília. A boneca imediatamente deu um suspiro.

            — Onde estou eu? — murmurou abrindo os olhos, ainda apalermada.

            — Sente-se melhor? — indagou o médico.

            — Um pouco… Mas tenho a vista turva. Vejo tudo atrapalhado, como se o mundo estivesse cheio de pernas…

            Eram as pernas do siri ainda penduradas no nariz dela! O doutor riu-se e, afastando-lhe do nariz aquele pernudo “éter”, guardou-o no bolso para outra emergência, dizendo:

            — Um médico deve andar sempre prevenido…

            Terminado o incidente, ia a festa começar de novo. Chegou o casamenteiro — outro Bernardo Eremita, muito respeitado no reino pelas suas manhas. Fora convidado não só para fazer o casamento como também para coroar o príncipe com a famosa coroa de rosquinha engastada de diamantes.

            — Começa tudo de novo desde o principio! — foi a ordem do príncipe.

            E tudo recomeçou desde o princípio. As sereias repetiram os lindos cantos que já haviam cantado e os noivos repetiram a marcha a passos lentos em direção ao trono nupcial! Enquanto caminhavam, uma chuva de pérolas em pó caía sobre eles. Subiram ao trono. Sentaram-se. O venerando Bernardo Eremita pronunciou as palavras sacramentais e os casou, bem casadinhos. Palmas romperam, e ritos, e hurras. Narizinho estava princesa, finalmente! Restava a coroação.

            O venerando Bernardo pronunciou outras palavras sacramentais e concluiu pedindo a coroa. Mas… que é da coroa? Havia desaparecido.

            — A coroa sumiu! — murmurou o fidalgo que segurava a salva de escama, mais pálido que uma folha de papel. — Alguém furtou a coroa!…

            — Miserável! — rugiu o príncipe, avançando para ele, tomado de súbito acesso de cólera. — Como deixou perder-se a mais rica jóia de meu tesouro? — e deu-lhe uma cetrada na cabeça.

            Foi um rebuliço. A corte debandou apavorada. Todos sabiam que quando o príncipe surrava alguém com o cetro era sinal de fim do mundo, pior que tempestade em alto mar. Narizinho e seus companheiros acharam melhor debandarem também.

            Saíram dali correndo e chegaram pingando ao sítio de dona Benta. Assim que pararam para tomar fôlego, Emília voltou-se para a menina e disse:

            — Eu vi, Narizinho! Juro que vi! Foi Rabicó quem comeu a coroa do príncipe!…

Visitas: 166