O Sítio… Sexta Parte

REINAÇÕES  DE  NARIZINHO

Sexta Parte: O Gato Felix

1 – A história do gato

            Narizinho não teve o gosto de salvar o príncipe. Quando chegou ao ribeirão do pomar, já nada viu por ali. Certa de que ele se havia salvado a si próprio voltou correndo para casa, ansiosa por conhecer as aventuras do gato Félix. Chegou, botou o gato no colo e disse:

            — Você tem que me contar a sua vida inteirinha, sabe?

            — Pois não — respondeu o gato. — Mas só sei contar histórias de noite. De dia perdem a graça.

            — Neste caso, vá dar um passeio e quando for de noite esteja aqui.

            O gato saiu, passeou pelo sítio inteiro, caçou três ratos e de noite voltou. Tia Nastácia acendeu o lampião da sala. Depois disse: — “É hora, gente!” Todos vieram postar-se em redor do ilustre personagem; dona Benta sentou-se na sua cadeirinha de pernas serradas; Narizinho e Pedrinho sentaram-se na rede; Emília foi para o colo da menina. Até o Visconde de Sabugosa quis ouvir as histórias. Narizinho teve dó do coitado; espanou-lhe o bolor e botou-o num canto da sala, dentro duma lata — para que não sujasse o chão com aquele pó verde. Logo que todos se acomodaram, Emília disse:

            — Comece, seu Félix! E o gato Félix começou.

            — Houve na França um gato muitíssimo ilustre, que era escudeiro do marquês de Carabás — tão ilustre que não há no mundo inteiro criança que o não conheça.

            — Até eu! — gritou Emília. — Era o tal Gato de Botas!…

            — Justamente, menina. Esse famoso gato era o escudeiro do marquês de Carabás. Fez coisas do arco-da-velha, como se sabe, até que se casou com uma linda gata amarela e teve muitos filhos. Esses filhos tiveram outros filhos. Estes outros filhos tiveram novos filhos, e veio vindo aquela gafaria que não acabava mais até que nasci eu.

            — Que bom! — exclamou Narizinho. — Então você é bisneto ou tataraneto do Gato de Botas?

            — Sou cinqüentaneto dele — disse o gato Félix — Mas não nasci na Europa. Meu avô veio para a América no navio de Cristóvão Colombo e naturalizou-se americano. Eu ainda alcancei meu avô. Era um velhinho muito velho, que gostava de contar histórias da sua viagem.

            Emília bateu palmas.

            — Conte, conte! Conte as histórias que ele contava. Conte como foi que o tal Colombo descobriu a América. O gato Félix tossiu e contou.

            — Meu avô veio justamente no navio de Cristóvão Colombo, que se chamava “Santa Maria”. Veio no porão e durante toda a viagem não viu coisa nenhuma senão ratos. Havia mais ratos no “Santa Maria” do que pulgas num cachorro pulguento, e enquanto lá em cima os marinheiros lutavam com as tempestades, meu avô lá embaixo lutava com a rataria. Caçou mais de mil. Chegou a enfarar-se de rato a ponto de não poder ver nem um pelinho de camundongo. Afinal o navio parou e ele saiu do porão e foi lá para cima e viu um lindo sol e um lindo mar e bem na frente uma terra cheia de palmeiras.

            — Então era o Brasil! — disse Emília. — Aqui é que é a terra das palmeiras com sabiá na ponta!…

            — Viu a terra cheia de palmeiras, e na praia uma porção de índios nus, armados de arcos e flechas, a olharem para o navio como se estivessem vendo coisa do outro mundo. Era a primeira vez que um navio aparecia por ali.

            — Imaginem se eles vissem o trem de ferro!… – observou Emília.

            — Colombo, então — continuou o gato — resolveu desembarcar e saber que terra era aquela, porque estava na dúvida se seria realmente a América ou outra.

            Entrou num bote e foi para a praia. Pulou do bote e chamou os índios. Os índios não se mexeram do lugar, mas o cacique deles criou coragem e adiantou-se e chegou perto de Colombo.

            — Meus cumprimentos — disse Colombo, com toda a gentileza, fazendo uma cortesia com o chapéu de plumas.

            — Bem-vindo seja! — respondeu o índio, sem tirar o chapéu, porque não usava chapéu. Colombo então perguntou:

            — Poderá o cavalheiro dizer-me se isto por aqui é a tal América que eu ando procurando?

            — Perfeitamente!” — respondeu o índio. Isto por aqui é a tal América que o senhor anda procurando. E o senhor já sei quem é. O senhor é o tal Cristóvão Colombo, não?

            — Realmente, sou o tal. Mas como adivinhou?

            — Pelo jeito! — respondeu o índio. — Assim que o senhor botou o pé na praia, senti uma batida na pacuera e disse cá comigo: É o senhor Cristóvão que está chegando, até aposto!

            Colombo adiantou-se para apertar a mão do índio. Em seguida o índio virou-se para os companheiros lá longe e gritou:

            — Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Cristóvão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui por diante é vida nova — e vai ser um turumbamba danado…”

            Nesse ponto da história o Visconde botou a cabeça fora da lata e disse:

            — Não acreditem! A descoberta da América não foi assim, foi muito diferente. Eu li toda a história de Colombo num livro de dona Benta. Posso afirmar que o gato Félix está inventando.

            — Não está inventando nada! — berrou Emília. — Foi assim mesmo. O livro não esteve lá e não pode saber mais do que o avô de seu Félix, que esteve presente e viu tudo.

            — Mas essa história é absurda! — berrou o sábio Visconde. – Isso é um disparate!…

            — Disparate é o seu nariz — berrou Emília. E voltando-se para a menina:

            — Narizinho, por que é que você não tampa o Visconde?

            Narizinho achou boa a idéia; foi lá e tampou a lata com o Visconde dentro.

            Terminado o incidente, o gato Félix continuou:

            — Depois disso houve muitas coisas, e mais coisas, e outras coisas, até que meu avô se casou e nasceu meu pai, e meu pai se casou e nasci eu.

            — E onde nasceu? — perguntou Pedrinho.

            — Nasci nos Estados Unidos, na cidade de Nova York. As casas lá são tão altas que se chamam arranha-céus. Eu nasci no quadragésimo terceiro andar do arranha-céu mais alto de todos.

            — Quadragésimo! — murmurou Emília. — Que bonito nome! Eu, se fosse dona Benta, batizava a vaca mocha de Quadragésima…

            — Não atrapalhe, Emília, deixe o gato falar – advertiu Narizinho. E, voltando-se para o gato Félix: — Mas essas casas arranham mesmo o céu ou é um modo de dizer?

            — Arranham, sim — confirmou o gato — e às vezes até o furam. O céu de lá é todo furadinho.

            — Quem deve ficar furioso é São Pedro — disse a boneca. — Eu, se fosse ele, suspendia o céu um pouco mais para cima.

            Narizinho tapou-lhe com a mão a boca.

            — Nasci num arranha-céu — continuou o gato — e criei-me na rua. Fui o gatinho mais travesso da América, o mais atropelador dos camundongos. Depois que cresci, atirei-me para cima das ratazanas com tamanha fúria que quase todas se mudaram da cidade. Um dia me deu na cabeça viajar. Fui ao porto, onde vi uma porção de navios, uns mais novos, outros mais velhos. Escolhi o mais velho, calculando que nele devia haver mais ratos. Entrei sem pagar passagem e dirigi me ao porão. Assim que entrei, a rataria disparou. Só pude apanhar quatro.

            No dia seguinte peguei dez. No terceiro dia peguei vinte. No quarto….

            — Pegou quarenta! — disse Emília.

            — Não, trinta e nove só — corrigiu o gato. — E assim durante quinze dias.

            Ao fim desse tempo, gordo que nem um porquinho, deixei a rataria em paz. Foi nessa ocasião que aconteceu o desastre.

            — Que desastre?

            — Espere. Estava eu comendo o último rato que comi no navio, quando  rompeu lá em cima um berreiro. Subi ao tombadilho para ver o que era e encontrei o capitão dizendo que o navio tinha batido numa pedra e ia afundar.

            — Credo! — exclamou tia Nastácia, que estava cochilando e acordara nesse ponto. — Devia ser um quadro muito triste…

            — Sim, ia afundar — continuou o gato. — Como houvesse arrebentado a proa, estava bebendo água que nem uma esponja. Os marinheiros corriam de um lado para outro, qual doidos. Uns tomavam os escaleres, outros amarravam à cintura os salva-vidas, outros lançavam-se à água. Eu disse comigo: “E agora, Félix, que vai ser de ti?” Pensei, pensei e por fim tive uma idéia. A única salvação seria fazer-me engolir vivo por algum dos tubarões que rodeavam o navio com as bocas abertas e aquelas dentuças que mais pareciam serrotes.

            — Credo! — exclamou outra vez tia Nastácia fazendo o sinal da cruz. — É por essas e outras que nunca hei de sair do meu cantinho…

            — Tive essa idéia — continuou o gato — e tratei de pô-la em prática. Escolhi o tubarão maior de todos e quando ele passou perto de mim, dei um pulo e caí, como pílula, bem no fundo da garganta dele!

            — E não se arranhou? — disse Emília. — Não esbarrou nalgum dente?

            — Nada! Caí na campainha do tubarão e nela me agarrei e fui entrando por aquele corredor vermelho afora até chegar ao estômago.

            — Era grande?

            — Tinha o tamanho desta sala — respondeu o gato com o maior caradurismo.

            Nesse ponto o Visconde empurrou a tampa da lata, botou a cabeça de fora e gritou:

            — Não acreditem! É mentira! Nem baleia tem estômago desse tamanho. Além disso, é impossível a um gato permanecer vivo num estômago de tubarão.

            — Impossível por que, seu Embolorado? — disse Emília. – Não se lembra da história que dona Benta contou do profeta Jonas, que “permaneceu” uma porção de tempo dentro da barriga de um peixe?

            — Sim — concordou o Visconde. — Mas Jonas era profeta.

            — Jonas era profeta e seu Félix é quadragésimo. Dá na mesma.  Todos acharam que Emília tinha razão.

            — Fiquei lá muito sossegado da minha vida — continuou o gato — mas vi logo que não podia morar ali por muito tempo. Não havia ratos — e gato não sabe viver onde não há ratos. Tinha que sair, mas como? Sair era cair n’água e morrer afogado. De que modo resolver o problema?

            — Muito simples — disse Emília. — Era só fazer uma canoinha e entrar nela e ir remando…

            — Cale essa boca, não seja tão sapeca! — interveio Narizinho.

            — Quem está contando a história é o gato Félix, não é você.O gato continuou: .

            — O caso era dificílimo, e eu estava a pensar nele quando vi entrar no estômago da fera uma enorme isca com anzol dentro. Mais que depressa fisguei o anzol, bem fisgado, na pacuera do monstro.

            Assim que ele sentiu a dor da fisgada, pôs-se a corcovear como burro bravo com domador em cima. Corcoveou, corcoveou, corcoveou até que não pôde mais e foi morrendo. Passaram-se algumas horas sem acontecer nada. O tubarão estava bem morto. Nisto vi uma réstia de luz e uma ponta de faca aparecendo. Encolhi-me bem encolhido para me livrar da faca e compreendi que estavam abrindo a barriga do peixe. Não esperei por mais. Dei um pulo para fora e caí no meio dum grupo de marinheiros, bem dentro dum navio!… Os marinheiros ficaram assombradíssimos de ver sair um gato vivo da barriga de um peixe e só sossegaram quando lhes contei toda a minha história. O capitão olhou para mim, alisou as barbas e disse:

            — Para onde pretende ir? Meu navio está de rumo à Inglaterra, onde poderei desembarcar você.

            — Muito obrigado” — respondi. — O país que eu procuro não é esse.

            — Será a França?

            — Não!

            — Será a Alemanha? a Suécia? a Turquia? a Arábia? A Patagônia?

            — Nada disso. A terra que eu procuro é aquela onde o demo perdeu as botas.

            Quero encontrar essas botas.

            O capitão julgou que eu estivesse a mangar com ele e pregou me tamanho pontapé que fui parar no porão.

            Todos deram gostosas risadas e tia Nastácia observou:

            — Isso é invenção de gente sem serviço. Esse lugar nunca existiu.

            — Como nunca existiu, se foi lá que o demo perdeu as botas? — replicou Emília. — Eu acho que seu Félix tem toda a razão e mais vale descobrir esse lugar do que descobrir a América. Continue, seu Félix.

            O gato continuou:

            — Fiquei no porão até que o navio entrou num porto. Desembarquei e fui andando por um caminho muito comprido. De repente apareceu uma velha, muito velha e coroca, de porretinho na mão.

            — Vai ver que era uma fada — cochichou Emília ao ouvido de Narizinho.

            — Cheguei-me para a velha e perguntei: “A senhora poderá dizer-me onde fica o lugar onde o demo perdeu as botas?

            A velha admirou-se da pergunta; arregalou os olhos, abriu uma boca de bagre sem um só dente nas gengivas e respondeu:

            — Não sei, gatinho. Mas se você for andando, andando, andando sem parar, aposto que um dia chega a essa terra.

            Aceitei o conselho da velha e fui andando, andando, andando até que encontrei…

            — Uma coruja! — interrompeu Emília.

            — Não — disse o gato — encontrei um sábio muito velho, de grandes barbas brancas. Cheguei-me a ele e perguntei:— Senhor velho, poderá dizer-me onde é o lugar em que o demo perdeu as botas?

            — Posso, sim — respondeu o velho. — Fica pertinho dos confins do Judas.

            Vi que o velho estava caçoando comigo e fui-me embora.

            Andei, andei, andei…

            — Pare de andar. Seu Félix. Chegue logo, que já está caceteando — disse Emília.

            O gato desapontou um bocadinho, mas continuou:

            — Andei, andei, andei, até que encontrei…

            — Uma coruja! — interrompeu de novo Emília.

            — Não amole mais com essa coruja, Emília! – disse Narizinho. — Ele não encontrou coruja nenhuma. Cara de coruja tem você. Continue, gato Félix.

            — Encontrei outra velha, mais velha ainda e mais coroca do que a primeira.

            Emília deu uma risada gostosa.

            — Que terra esquisita!… Só velho para cá, velha para lá… Com certeza foi no país de Matusalém…

            O gato Félix desapontou mais um bocadinho, mas continuou:

            — Encontrei uma velha, muito velha e perguntei: “A senhora…”

            — Etc. etc. — disse Emília. — E que é que ela respondeu?

            O gato Félix, ainda mais desapontado, continuou:

            — Ela respondeu:  — Esse lugar não existe, gatinho. O demo nunca teve botas. Você não sabe que o que ele tem são cascos?

            — E aí? — indagou Emília, que estava achando aquela história muito sem jeito.

            — Aí eu… eu… parei de procurar a tal terra e fui cuidar de outra coisa. Dessa vez o desapontamento foi geral. Dona Benta olhou para Narizinho, tia Nastácia olhou para dona Benta, Pedrinho olhou para o forro. Só Emília teve coragem de olhar para o gato. Arrebitou o nariz de retrós, fez um muxoxo de pouco caso e disse:

            — Não valeu a pena vir de tão longe para contar uma história tão sem pé nem cabeça. Eu, que nunca saí daqui, sou capaz de contar coisa muito mais bonita.

            — Pois então vamos dormir — disse dona Benta levantando-se — e quem conta a história de amanhã vai ser a Emília.

 

2 – A história da Emília

             Na manhã seguinte tia Nastácia apareceu dizendo que do galinheiro havia sumido um pinto. Eram doze e só encontrara onze.

            — Que será? — murmurou dona Benta.— Deve ser alguma raposa que anda rondando por aqui ou algum gato vagabundo.

            – E que pena, sinhá! Sumiu justamente o mais bonito, um carijozinho…

            Logo que os meninos souberam do caso, Pedrinho disse:

            — Vamos armar uma ratoeira, mas o melhor é consultarmos o Visconde. Depois que foi embrulhado naquele folheto das Aventuras de Sherloque Holmes, ficou tão esperto que é capaz de descobrir o ladrão.

            Foram falar com o Visconde, ao qual contaram, tudo. O Visconde deu uma risadinha de detetive e disse:

            — Deixem o negócio por minha conta. Irei examinar o local do crime para tomar as minhas providências.

            E foi. Foi ao galinheiro onde passou o dia a examinar a poeira do chão, a catar os pelinhos que havia nele, a conversar com os pais da vítima — um lindo galo carijó e uma galinha sura. Enquanto isso Emília pensou, pensou e inventou a historinha que ia contar de noite.

            Quando chegou a noite e tia Nastácia acendeu o lampião e disse “É hora!”, a boneca entrou na sala, muito esticadinha para trás, toda cheia de si.

            — Era uma vez… — foi dizendo.

            — Espere, Emília! — advertiu Narizinho. — Não vê que o Visconde e o gato Félix ainda não vieram?

            Nisto chegou o gato e sentou-se no colo de dona Benta. Depois apareceu o Visconde, que entrou para dentro da lata.

            Emília começou de novo:

            — Era uma vez um rei…

            — Eu já sabia que vinha história de rei – interrompeu Narizinho. — Emília vive com a cabeça entupida de reis, príncipes e fadas…

            A boneca não fez caso e continuou:

            — Era uma vez um “rei”, um “príncipe” e uma “fada”, que moravam juntos num lindo palácio de cristal, na beira do lago mais azul de todos. Uma beleza esse palácio, todo cheio de fios de ouro, que quando dava o vento iam para lá e vinham para cá. E quando dava o sol, os cristais e os ouros brilhavam tanto que quem olhava sentia logo uma tontura e precisava agarrar-se a qualquer coisa para não cair. E o príncipe foi e disse:

            — Meu pai: quero casar-me, mas as moças daqui não são bonitas, nem boas de coração. Vou procurar uma pastora bem pobrezinha, mas que tenha um coração de ouro.

            — Vai, meu filho — disse o rei — mas leva contigo a fada do palácio. Sozinho, não te deixarei ir.

            O príncipe chamou a fada, virou a fada numa bengalinha e virou-se a si mesmo numa formiguinha.

            — Eu já sabia que vinha história de virar — disse a menina. — Sem reis e sem “viradas” Emília não passa…

            — Virou uma formiguinha — prosseguiu Emília — e saiu andando por uma estrada muito comprida, com aquela bengalinha na mão. Andou, andou, andou até que encontrou uma velha.

            — Você caçoou de tantos velhos que havia na história do gato Félix mais vai pelo mesmo caminho — disse tia Nastácia.

            — Não me atrapalhe! A minha história só tem esta velha. Encontrou uma velha e disse:

            — Velha dugudéia, diga-me, se for capaz, se há por aqui uma pastora assim, assim, e de bom coração.

            — Há muitas pastoras por aqui. — respondeu a velha — Mas se têm bom coração não sei. Só experimentando.

            — E como se experimenta o coração de uma pastora?

            — Virando num pobre bem pobre e indo pedir-lhe esmola.

            A formiguinha virou logo num pobre bem pobre e foi pedir esmola às pastoras. Chegou-se à primeira, que estava fiando na roca enquanto o seu rebanho pastava, e disse:

            — Gentil pastora, uma esmolinha pelo amor de Deus! Há três anos que não como nem durmo, e se não me dás um pão, morro de fome já neste instante.

            A pastora deu-lhe uma pedra, dizendo:

            — Aqui tens um pão muito gostoso.

            O pobre pegou a pedra, olhou, olhou, olhou e disse:

            — Que todos os pães que comas sejam gostosos como este! — e foi andando o seu caminho.

            Dali a pouco a pastora sentiu fome; foi comer o pão que trazia no bolso e viu que tinha virado pedra, e quebrou todos os dentes e morreu… Mais adiante o pobre encontrou outra pastora e pediu outra esmolinha. A pastora deu-lhe um osso, dizendo:

            — Leva este pão, que é muito gostoso.

            — Obrigado — respondeu o pobre — e que todos os pães que comas sejam gostosos como este!

            E foi andando. A pastora logo depois sentiu fome e foi comer o pão que estava na cesta e viu que tinha virado osso. Essa pastora não morreu de fome, como a primeira, mas teve de passar a vida roendo ossos feito cachorro. O pobre foi andando, andando, andando, até que encontrou uma terceira pastora. A coitadinha parecia ainda mais pobre do que ele e estava chorando.

            — Por que choras, ó gentil pastora? — perguntou o pobre.

            — Choro porque minha madrasta, que é muito má, me bate todos os dias. Põe-me neste lugar, guardando estes porcos imundos, e não me dá comida a não ser este pão bolorento e tão azedo que até preciso tapar o nariz quando o como.

            — Pois se eu pilhasse esse pão — disse o pobre — dava um pulo de alegria, porque estou morrendo de fome e só encontrei pedras e ossos neste país de pastoras.

            A triste pastorinha olhou bem para ele e disse:

            — Pois não morrerás de fome. Repartirei contigo o meu pão bolorento.

            E partiu o pão bolorento em dois pedaços e deu o maior ao pobre. O pobre agradeceu e foi andando, e a pastorinha começou a comer o seu pedaço de pão bolorento. Tapou o nariz e deu a primeira dentada. Mas viu logo que o pão tinha virado no doce mais gostoso do mundo! Comeu, comeu quanto quis; e quanto mais comia mais sobrava. E voltou para casa pulando de contentamento e palitando os dentes. Sua madrasta percebeu a felicidade da pastorinha e disse:

            — Ahn! Estou vendo que você comeu alguma coisa muito gostosa!

            — Não comi nada! — respondeu a coitadinha tremendo de medo. — Só comi o pão que a senhora me deu.

            A madrasta agarrou-a e cheirou-lhe a boca e ficou furiosa e disse:

            — Sua boca está cheirando ao doce mais gostoso do mundo, e como me enganou, vou matá-la.

            E foi buscar a faca da cozinha, que era deste tamanho!

            A pastorinha, sabendo que ia morrer, pôs-se a rezar lá no fundo do coração:

            — Pobre encantado, que transformaste o pão bolorento em doce, socorra-me!

            Nem bem acabou de o dizer, a porta abriu-se e o pobre entrou.

            — Esconde-te — disse a pastorinha — que ela vem vindo com uma faca deste tamanho.

            O pobre escondeu-se atrás dum armário e logo depois a madrasta entrou com o facão. Entrou e disse à menina:

            — Reze depressa, que vai morrer.

            — Não me mate! — gemeu a pastorinha, tremendo como geléia. — Não me mate, porque estou inocente!

            Mas a má madrasta não quis saber de nada e avançou para a coitadinha com a faca no ar. E a faca foi descendo sobre o peito da vítima e a ponta já ia encostando nas suas carnes, quando o pobre veio por trás da madrasta e agarrou-a pelo pulso.

            — Miserável! — exclamou. — Quem merecia morrer eras tu, mas vou virar-te num horrendo sapo de cidade.

            Nesse ponto Narizinho interrompeu-a.— Por que sapo de cidade, Emília? Que diferença há entre sapo do mato e sapo da cidade?

            A boneca explicou:

            — É que nas cidades há muitos moleques que gostam de judiar dos sapos, de modo que sapo de cidade padece mais.

            Narizinho voltou-se para dona Benta.

            — Já reparou, vovó, como Emília está ficando inteligente? Não é mais aquela burrinha de antes, não…

            Emília continuou:

            — E imediatamente a madrasta virou no sapo mais feio do mundo e saiu pulando, pulando, pulando e foi para uma cidade onde havia mais de cem moleques nas ruas. Então o pobre disse à gentil pastorinha…

            — Adeus, gentil pastora! Vou-me embora para longes terras.

            — Que pena! — exclamou ela. — Por que não ficas morando aqui comigo? Como és pobre, trabalharei para ti e comprar-te-ei uma roupa nova e uma cartola.

            — Interesseira é que ela era! — observou tia Nastácia. – Sabia que o pobre era dos tais que viram pão bolorento no doce mais gostoso do mundo. Eu se fosse o pobre desconfiava…

            — Pois o pobre não desconfiou — disse Emília. — Ele não tinha maldade nenhuma no coração; em vez de desconfiar, beijou a mão da pastorinha e disse:

            — Pois aceito — mas com uma condição!…

            — Dize qual é — ordenou a pastora.

            — É casares comigo!

            A pastorinha não vacilou um só instante e aceitou a proposta. E no outro dia veio o padre e casou-a.

            — Agora — disse o pobre — vamos sair os dois pelo mundo para tirar esmolas.

            E saíram. E foram andando, andando, andando, até que chegaram ao palácio do rei. Bateram na porta e entraram e foram falar com Sua Majestade. O rei estava de coroa na cabeça, sentado no seu trono de ouro e marfim, muito triste porque não tinha notícias do amado filho.

            — Que é que queres, senhor pobre? — perguntou o rei.

            — Quero dar a Vossa Majestade uma boa notícia.

            O rei arregalou os olhos, cheio de esperança, e disse:

            — Pois fala, e se a notícia for mesmo boa dar-te-ei os mais ricos presentes.

            Então o pobre contou que havia encontrado o príncipe e que ele já tinha casado com a moça de melhor coração do mundo inteiro.

            — Bravos! — exclamou o rei. — E quando esse amado filho me aparece por cá?

            — Ei-lo! — exclamou o pobre, virando-se outra vez em príncipe. — E eis minha amada esposa. — disse batendo com a bengalinha no ombro da pastora e virando-a na mais linda princesa de todas que existiram, existem e existirão.

            O rei ficou alegríssimo e beijou a princesa na testa e disse para o príncipe:— Muito bem! Só resta agora que fiques rei. Adianta-te, meu filho, e vem sentar-te neste trono, ao lado de tão formosa princesa.

            Deste momento em diante o rei és tu, e ela a rainha. Já estou cansado e até enjoado de ser rei. Amém.

            Assim terminou Emília a sua historinha, inventada por ela mesma, sem ajutório de ninguém, nem tirada de nenhum livro. Todos bateram palmas e dona Benta cochichou para a negra:

            — Boa razão tem você de dizer que o mundo está perdido! Pois não é que essa boneca aprendeu a contar história que nem uma gente grande?

            — Mas eu não gostei! — disse o gato Félix, que andava a implicar se com a boneca. — Histórias de virar são muito fáceis. Assim que aparece uma dificuldade, isto vira naquilo e pronto!

            — Não acredite, Emília! — gritou Narizinho. — A história que você contou está muito boa e merece grau dez. Para uma boneca de pano, e feita aqui na roça, não podia ser melhor.

            Emília, toda ganjenta com o elogio, botou a língua para o gato Félix. Nisto o relógio da sala bateu dez horas.

            — Vamos dormir, criançada — disse dona Benta — e amanhã quem vai contar uma história é o Visconde.

            No dia seguinte tia Nastácia veio dizer que havia desaparecido outro pinto.

            Dona Benta ficou muito aborrecida; viu que naquele andar lá se ia a ninhada inteira.

            — E Pedrinho? — indagou. — Que é que Pedrinho diz a isto?

            — Ele e o Visconde andam lidando, lidando, lá no galinheiro, mas até agora não descobriram nada.

            Pedrinho estava naquele momento em conversa com o Visconde no quintal.

            — Na minha opinião — dizia ele — isto é alguma raposa que vem visitar o galinheiro de noite.

            — Pois eu acho que não é raposa nenhuma — afirmou o novo Sherlock Holmes. — Examinei tudo muito bem examinado, e encontrei um pêlo de animal que não é raposa nem gambá, nem ratazana.

            — Que é então?

            — Ainda não sei. Tenho que examinar esse pêlo ao microscópio e preciso que você me faça um microscopinho.

            — Vovó tem um binóculo. Quem sabe se serve?…

            — Há de servir. Vá buscá-lo. Pedrinho foi e trouxe o binóculo de dona Benta.

            O Sherlock pôs o pelinho em frente do binóculo e examinou-o atentamente. Depois disse:

            — Acho que estou na pista do ladrão…

            — Quem é?

            — Não posso dizer ainda, mas é um bicho de quatro pernas da família dos felinos. Vá brincar e deixe-me só por aqui. Preciso “deduzir” e pode ser que de noite já esteja com o problema resolvido.

            Pedrinho foi brincar, deixando o Visconde mergulhado em profunda meditação. Estava um dia muito lindo, de sol quente. Dona Benta sentou-se na sua cadeira de pernas serradas a fim de acabar um vestido de Narizinho e a menina ficou ao seu lado para enfiar a agulha e virar a máquina. E Emília? Emília, na varanda, balançava-se numa pequena rede especialmente armada para ela num canto. A boneca estava pensando na vida, e com idéia de virar escritora de histórias.

            Nisto o gato Félix, que ia passando, resolveu parar. Sentou-se sobre as patas traseiras e cravou os olhos na boneca, enquanto sua cauda ia desenhando um preguiçoso “S” no ar.

            — Que tanto olha para mim? — disse de repente Emília. – Nunca me viu?

            O gato fez um riso de ironia e miou:

            — Tão importante assim, nunca! Parece que está mesmo convencida de que é uma grande contadeira de histórias.

            Emília deu um balanço na rede e murmurou:

            — A inveja matou Caim!…

            O gato mordeu os lábios e replicou com ar de desprezo :

            — Era só o que faltava, o célebre gato Félix ter inveja duma boneca de pano feita por uma negra velha…

            — A inveja matou Caim! — repetiu a boneca. — Você está mas é danado com o grande sucesso da minha historinha.

            — História mais feia e sem graça nunca vi…

            — Mas todos gostaram, até Narizinho, que sabe todas as histórias dos livros.

            — Gostaram de dó de você. Se não gostassem, você punha-se a chorar que não acabava mais.

            — Mentiroso! Eu nunca chorei nem hei de chorar, e muito menos por causa de uma simples brincadeira. Você é um grandessíssimo mentiroso, sabe?

            — Por quê?

            — Porque é! Você não é americano, nem nasceu em nenhum arranha-céu, nem é parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum. Tudo isso não passa de potoca. Eu sei conhecer muito bem quando uma pessoa está mentindo ou falando a verdade…

            O gato ficou furioso e quis arranhar Emília. A boneca deu um berro e chamou Narizinho.

            — Que é, Emília? — indagou a menina aparecendo. – Que aconteceu que está tão danadinha?

            Emília ergueu-se da rede, colérica, e apontou para o gato.

            — É esse cara de coruja que está querendo me arranhar! Já se viu que desaforo?

            — E por quê? Por que é que vocês brigaram?

            Emília empertigou-se toda.

            — Ele está morrendo de inveja da minha história e veio aqui me procurar. E como eu disse que ele não é americano, nem parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum, o burrão quis arranhar-me. Esse hipopótamo!…

            O gato virou-se para Narizinho:

            — Veja bem quem é que está insultando. Se eu sou hipopótamo, que é ela? Uma macaca!…

            Aquilo era demais. Emília perdeu a cabeça, avançou para o gato Félix, agarrou-lhe a barba e deu tal puxão que arrancou um fio. A menina apartou os briguentos; pôs o gato para fora e deixou Emília sozinha na varanda. Emília ficou falando consigo mesma, pensando num meio de vingar-se do gato Félix. Nisto apareceu o Visconde.

            — Senhor Visconde, venha ouvir a história da minha briga com o gato Félix.

            O Visconde sentou-se na rede junto dela e ouviu a história inteira. Quando chegou no ponto do fio da barba que Emília havia arrancado ao focinho do gato, indagou :

            — E onde está o fio? Como ando fazendo um estudo sobre pelos de animais, teria muito gosto em examinar esse.

            Emília abriu uma caixinha, tirou de dentro o fio de barba e deu-o ao Visconde, dizendo:

            — Leve, mas depois traga-o outra vez. Quero guardar esse fio como prova da esfrega que dei naquele cara de coruja…

            O Visconde tomou o fio e foi examiná-lo com o binóculo de dona Benta.

 

3 – A história do Visconde

            Logo que a noite caiu, tia Nastácia acendeu o lampião da sala e disse: “É hora, gente!” Todos foram aparecendo e cada qual se sentou no lugar do costume. O último a vir foi o Visconde. Antes de entrar para a lata, aproximou-se de tia Nastácia e disse-lhe ao ouvido:

            — Pegue na vassoura e ponha-a ao alcance de sua mão.

            A negra achou esquisitíssima aquela idéia e pediu explicações.

            — Não posso explicar coisa nenhuma — respondeu o Visconde. — Mas faça o que estou pedindo. Ponha a vassoura bem ao alcance de sua mão, porque no fim da minha história é bem possível que seja preciso “varrer” qualquer coisa…

            A negra trouxe a vassoura e fez como o Visconde mandou, embora não pudesse nem por sombra adivinhar quais fossem as suas intenções. Liquidado o caso da vassoura, Emília disse:

            — Tem a palavra o senhor Visconde de Sabugosa!

            O Visconde ergueu-se dentro da lata, tossiu um pigarrinho e começou:

            — Meus senhores e minhas senhoras!

            O gato Félix espremeu uma risada irônica.

            — Isso nunca foi história, senhor Visconde! Isso chama-se discurso e muito bom discurso. Pelo que vejo, ninguém nesta casa sabe contar histórias…

            Aquilo era indireta para Emília, que se remexeu toda, já danadinha e pronta para responder. Mas Narizinho interveio e acalmou-a. O Visconde não se atrapalhou com o aparte. Limitou-se a lançar sobre o gato um olhar terrível, dizendo:— Não é discurso, não, senhor gato! É outra coisa, e quem vai explicar o que é não sou eu e sim aquela senhora vassoura, ali ao lado de tia Nastácia…

            Todos olharam muito espantados para o Visconde, sem compreender o que ele queria significar com aquilo. Em seguida o Visconde recomeçou:

            — Meus senhores e senhoras! A história que vou contar não foi lida em livro nenhum, mas é o resultado dos meus estudos científicos e criminológicos. É o resultado de longas e cuidadosas deduções matemáticas. Passei duas noites em claro compondo a minha história e espero que todos lhe dêem o devido valor.

            — Muito bem! — exclamou Narizinho. — Mas desembuche de uma vez.

            — Era uma vez um gato — começou o Visconde. — Mas um gato à-toa de roça, um gato que não valia coisa nenhuma, além de que nascido com muito maus instintos. Se fosse um gato sério e decente, eu teria muito gosto em o declarar aqui, mas não era. Era o que se chama — um gato ladrão. E porque era um gato ladrão, ninguém queria saber dele. Na casa onde nasceu logo descobriram a sua má índole e o tocaram para a rua com uma boa sova. O gato saiu correndo e foi morar numa casa bem longe da primeira, dizendo que o seu dono tinha morrido e que ele era o melhor caçador de ratos do mundo. Todos acreditaram nas palavras do mentiroso e o deixaram ficar. Mas tão ordinário era esse gato, que em vez de corrigir-se e viver vida nova, continuou com maroteiras. Na primeira noite que dormiu nessa casa foi à cozinha e roubou um pedaço de carne que a cozinheira havia guardado para o dia seguinte. Roubou e ficou quietinho, deixando que a cozinheira pusesse a culpa numa pobre negrinha e a castigasse com vara de marmelo.

            — Ah, eu lá! — exclamou Pedrinho. — Ferrava-lhe uma pelotada de bodoque, que ele havia de ver estrelas…

            — Por fim — continuou o Visconde — também nessa casa lhe descobriram as patifarias e o puseram no olho da rua. Ele fugiu e resolveu mudar-se para um sítio onde houvesse muitos pintos. Achou o sítio que precisava e ficou morando lá. Mas o dono observou que os pintos estavam diminuindo, um, dois e até três por dia, e falou à mulher que ia arranjar um cachorro policial para tomar conta do galinheiro durante a noite. O gato ladrão percebeu a conversa e fugiu. Andou, andou, andou até que encontrou outro sítio onde moravam duas velhas e dois meninos, um do sexo masculino e outro do sexo feminino.

            — Que coincidência! — exclamou Narizinho. — Parece o sítio de vovó…

            — Escolheu esse sítio — continuou o Visconde — e foi entrando por ele a dentro com a maior sem-cerimônia deste mundo, com partes de que era um grande gato de família nobre e que tinha nascido num país estrangeiro, etc. Emília olhou para o gato Félix.

            — Deve de ser algum seu parente. Os traços estão muito parecidos…

            — Não tenho parentes dessa laia — respondeu o gato com orgulho. — Esse gato ladrão deve de ser parente mas é dalguma senhora boneca…

            — Continue, senhor Visconde — disse Narizinho.

            O Visconde tossiu outro pigarrinho e continuou:

            — O tal gato ladrão ficou morando nesse sítio. Todos o tratavam com a maior gentileza, mas em vez de mostrar-se grato por tantas atenções, ele tratou de continuar a sua triste vida de gatuno. E foi e comeu um pinto carijó…

            Neste ponto o Visconde parou e olhou firme para o gato Félix. O gato sustentou o olhar do Visconde e deu o desprezo. O Visconde continuou:

            — Comeu esse pobre pinto, que era tão lindo, e no dia seguinte comeu outro pinto ainda mais bonito. O gato Félix levantou-se indignado.

            — O senhor Visconde está me insultando! — gritou. – Esses olhares para meu lado parecem querer dizer que sou eu o gato ladrão!…

            O Visconde pulou fora da latinha e berrou:

            — E é mesmo! O tal gato ladrão é você, seu patife! Você nunca foi gato Félix nenhum! Você não passa de um miserável comedor de pintos…

            Foi um rebuliço! Todos se ergueram, sem saber o que fazer. O gato Félix, furioso da vida, berrou ainda mais alto que o Visconde:

            — Prove, se for capaz! Prove que comi os tais pintos…

            — Provo e já! — urrou o Visconde. — Tenho as provas aqui no bolso.

            Disse, e puxou do bolso dois pelinhos de gato.

            — Eis as provas! Este pêlo eu o encontrei no galinheiro, bem no local do crime e ainda manchado com o sangue da vítima. E este outro a senhora Emília arrancou dessas fuças, seu miserável! Estão aqui as provas. Quem quiser pode vir examiná-las com o binóculo de dona Benta. São perfeitamente iguais, até no cheiro.

            Ambas têm cheiro de gato ladrão!…

            A prova era esmagadora. Tia Nastácia, passando a mão na vassoura, avançou feito uma onça para cima do falso gato Félix. O gatuno deu um pulo e sumiu-se pela janela na escuridão da noite.

            — Bravos! Bravos ao Visconde! — exclamaram todos. — Viva o nosso Sherlock Holmes!… — Viva! Viva !…

            E fizeram-lhe uma grande festa, e deram-lhe muitos abraços e beijos. Até Emília, que era muito envergonhada, encheu-se de coragem e beijou-o na testa.

            Dona Benta tomou a palavra e disse:

            — Vejam que injustiça íamos cometendo com o nosso pobre Visconde, só porque havia embolorado e estava muito feio! Os acontecimentos desta noite acabam de provar que ele é um verdadeiro sábio — e dos que dão lucro a uma casa.

            Deste momento em diante, quem vai tomar conta dele sou eu. Vou curá-lo do bolor e botá-lo como administrador do sítio.

            O relógio bateu as dez horas, e enquanto os meninos se recolhiam a velha pegou o Visconde e guardou-o bem guardadinho na sua estante, entalado entre uma Aritmética e uma Álgebra – fato que iria ter notáveis conseqüências futuras.

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