Segunda Parte: Sonhar não é pecado.
O circo é visto de longe, como que num crepúsculo, de diversos ângulos. Sobre tais imagens, os textos: Segunda Parte. Sonhar não é pecado. A imagem desmaia até desaparecer.
Seqüência 15:
Aplausos, risadas, rostos que gargalham, em flashes rápidos. Uma tomada mostra palhaços que trocam porradas entre si. Jorge observa por trás da cortina. Chico chega e cochicha:
– Tem um ceguinho aí, pedindo para assistir sem pagar.
– Um ceguinho? Então, não é assistir. É ouvir. Bota ele aqui perto de mim. Já que ele não vai ver, deixa ele aqui. Ele que se segure nesta barra de sustentação.
Tambores rufam. As luzes diminuem quase até a escuridão. O sanfoneiro entra lentamente, tocando alguns acordes, bem baixinho. Entra Jorge lentamente, com roupa mais luxuosa do que na apresentação anterior. Jorge fala sem estardalhaço, como que anunciando algo muito grave:
– Senhoras e Senhores! Enquanto nosso pessoal prepara o cenário para o drama sacro A ressurreição de Lázaro, apresentaremos o nosso número mais emocionante. Preparem-se, corações apaixonados! Por que a seguir, ouviremos uma canção de amor. É com imenso orgulho que apresento a Vossas Senhorias minha esposa, minha bem amada… Com os Senhores… Maria!
Uma salva de palmas. Maria surge deslumbrante, num vestido de baile com flores estampadas, jóias reluzentes e uma tiara na cabeça. Avança lenta, um sorriso mal esboçado. Segura um dos lados do vestido. Olha para Jorge. Ele a apresenta ao público num gesto suave, afasta-se e se esconde de novo. Maria espera, tranqüila. Jorge volta, trazendo pelas mãos, seus dois filhos. Leva-os até uma banqueta perto do sanfoneiro. Os dois pegam os seus instrumentos, um tambor e um pandeiro para Menininha, um triângulo para Menininho. Jorge solenemente dá um beijo na testa de cada um. E sai.
Ao som dos instrumentos, Maria começa a dançar. E canta a canção da Pombinha branca:
– Pombinha branca,
Fuja do laço do caçador.
Que eu também quero
Fugir do abraço do meu amor.
Seu beijo arrebata
E mata de paixão.
Amor que mata, eu não quero não.
Amor que mata, eu não quero não.
– Você tem asas
E do perigo pode voar.
Mas eu não tenho
E por castigo vivo a chorar.
O olhar dele maltrata
Dá um nó no coração.
Amor que mata, eu não quero não.
Amor que mata, eu não quero não.
Menininho e Menininha cantam o refrão em duas vozes. Durante a canção, serão vistos rostos que ouvem com atenção. E Jorge, chegando-se ao seu lugar, verá o ceguinho, grudado numa barra de madeira que sai do chão. Entre as tomadas do rosto de Maria, da dança e do público, Jorge olhará o ceguinho. Na segunda vez estará desconfiado. Uma tomada mostrará o ceguinho, totalmente embevecido, como em oração, com os olhos para o vazio, ao alto. Numa pose de extrema comoção. O ceguinho está maravilhado. O rosto de Jorge indica, primeiro, estranheza, depois, alguma preocupação. E se transforma numa máscara de dureza.
Ao término da canção, um grande aplauso. Maria e os meninos, de mãos dadas, agradecem. Jorge vai até eles. Dá a mão à mulher, entre ela e Menininha, e agradecem diversas vezes. Jorge cochicha algo à mulher. Ela sorri, lisonjeada e espera. Ele pede silêncio, com as mãos. E fala:
Seqüência 16:
Senhoras e senhores. Nosso cenário já está pronto. Mas sinto que a emoção é tão grande, que pedi que minha mulher repita a canção… mas isto… é claro… se for do agrado de todos os presentes.
Todos gritam sim. O sanfoneiro recomeça, Maria dança, à espera da entrada do canto. Jorge volta ao seu posto. Fala pro ceguinho, cochichando alto, para mudar a voz; mas ao final do diálogo sua voz soará clara e desesperada:
– Está gostando?, ceguinho.
O ceguinho afirma com a cabeça.
– A voz é bonita?
– A voz é bonita!
Todo o diálogo a seguir se dará enquanto a canção continua. Para combinar o tempo com o diálogo, Maria pode ser vista apenas dançando, com uma música que muda para uma melodia dissonante, à medida que o diálogo avança. O ritmo do diálogo será ascendente, terminando quase que como uma repetição histérica e rápida de cada frase.
– E a dona da voz? O que você acha?
– A dona da voz? Como é a dona da voz?
– Como uma rainha, ceguinho.
– Como uma rainha? Como é uma rainha?
– Primeiro, ceguinho, vou te dizer como são as crianças que tocam e cantam junto com ela. São como príncipes.
– São como príncipes?
– Vestidos de seda colorida, cheios de anéis e correntes de ouro…
– Anéis e correntes de ouro…
– E ela…
– E ela? E ela?
O ceguinho começa a tremer.
– Ela é como uma rainha. Tem num dedo um anel de rubi.
– O rubi é vermelho.
– Sabe o que é vermelho?, ceguinho.
– Não. Sei que o rubi é vermelho.
– Na outra mão uma esmeralda…
– …verde…
– E na cabeça uma coroa de rainha…
– De ouro?
– Claro que de ouro!, ceguinho. E o vestido? Comprido, de rainha, cheio de flores coloridas…
– …flores coloridas…
– Tem um grande decote, ceguinho. Sabe o que é decote?
– Não sei o que é decote. Não sei… não… não sei…
– É a parte nua acima das mamas…
– … mamas?…
O ceguinho começa a se mostrar transtornado.
– Mamas, ceguinho. A safada está sem sutiã. Se você pudesse ver, ceguinho, dá pra ver a mancha acima da tetinha . Sabe o que é tetinha?, ceguinho.
– Eu não quero saber… por favor…
– O biquinho do seio está durinho e aparece por trás do vestido…
– … eu quero ir embora…
– Ainda não, ceguinho. Sou seu amigo, quero ajudar você a se divertir. Já pegou uma mulher?
– Eu quero ir embora…
O ceguinho solta o apoio que segurava e dá um passo no vazio. Jorge o segura firme pela gola da camisa.
– Fique aqui, ceguinho. Quero ajudar você a se divertir. Já pegou uma mulher?
– Não… não… (quase chorando).
– Então eu vou te ajudar. Imagine… Imagine, você com as duas mãos naquelas maminhas imensas… Ceguinho.. o que você faria?
– As duas mãos naquelas maminhas?… as duas mãos?…
Percebe-se, pela mudança na fisionomia, que o ceguinho está entrando no jogo.
– Você aperta de leve as duas maminhas, esfrega as mãos e aperta as tetinhas, ceguinho. Daí, você chega a boca pertinho das tetas…
– a boca pertinho das tetas?…
– E mama, ceguinho. Mama como um bebê. Está com medo?, ceguinho.
O ceguinho treme da cabeça aos pés.
– E a bunda dela?, ceguinho. Se você visse a bunda dela! Ela dança e rebola e a bunda vai e vem e vai e vem. Ceguinho, o que você quer fazer com a bunda dela? Hein? Cubra de beijos, ceguinho. Fique beijando a bunda dela, ceguinho…
O ceguinho entra num estado de torpor. Começa a gemer baixinho…
– E aí, ceguinho, ela se vira para você, ceguinho, ela está nua em cima de uma cama, ceguinho, e você vê, ceguinho, você vê como é na frente de uma mulher, ceguinho, um monte de pelos, ceguinho, um monte de pelos no meio de uma pele branca, branca como a de uma pombinha, e ela abre as pernas, ceguinho, e você se deita em cima dela, ceguinho, e ela abre mais as pernas e dá um nó com as pernas em volta de você, ceguinho, você enlouquece, ceguinho… Ela vai engolir você, ceguinho, vai engolir você e você vai desaparecer deste mundo, e vai dizer obrigado, minha rainha, minha rainha… vagabunda… rainha… vagabunda… puta!
Jorge também está transtornado, absolutamente fora de si. O cego geme, começa a chorar, esconde o rosto. Jorge o olha durante um tempo. Olha o palco. Maria agradece aos aplausos. Olha rapidamente para o sexo do cego, que tem a calça molhada do orgasmo não segurado. Corre até o picadeiro. Maria ainda agradece, com as crianças. Jorge a abraça desesperado e beija-a com volúpia, demoradamente.
Por um curto tempo os aplausos quase desaparecem. Mães tapam os olhos dos filhos e algumas pessoas se levantam. Mas os homens começam a gritar forte e os aplausos voltam até se tornarem ensurdecedores. Jorge cai em si. Os quatro se dão as mãos e Jorge agradece com a cabeça. Beija a Maria e aos meninos na testa, castamente. E com o dedo nos lábios faz sinal de silêncio. E, mais falando que apresentando…
– Com os senhores… o nosso momento sagrado.
Mudam as luzes e os quatro saem em silêncio. Ouve-se a voz de Chico, declamando alto e patético:
– E retirou-se Jesus dali, indo para as bandas de além do Jordão, onde João Batista batizava. E uma grande multidão o acompanhava…
Menininho e Menininha saem correndo. Jorge fala para Maria.
– Vamos comemorar a noite de hoje. Vamos dormir num hotel.
– Num hotel? Tá louco?, homem. Não é muito caro?
Ela sorri, embevecida.
Seqüência 17:
Rosto do ceguinho. Ele está encolhido num canto do circo, atrás de caixas grandes. Às vezes levanta a cabeça, para avaliar a origem de algum barulho. Coloca a cabeça sobre os joelhos. Abre e fecha os olhos diversas vezes. Entra-se no clima das imagens irreais.
Pantomima:
O corredor, a sombra, o palco. Na placa: Hoje: A princesa sereia.
Entra uma jovem com suas vestimentas já descritas. Um xale brilhante lhe cobre o colo e os braços. Dança. Surge um jovem. Ela dança em torno dele, retira o xale, joga-o para um lado. Exibe agora o colo desnudo e um grande decote. Abre os braços. O jovem vai até ela e ela o beija. Aos poucos ele vai desmaiando, cai, fica jogado no chão. Chega outro jovem. Acontece a mesma cena. E assim, com um terceiro, um quarto e um quinto. Ela dança. Retoma o xale, cobre-se e dança em meio aos cadáveres.
Seqüência 18.
Novamente o rosto do ceguinho. Está dormindo num canto do circo. Vê-se homens que riem uns pros outros, não se ouve suas vozes. Um deles faz o típico gesto que representa a penetração sexual. Um outro está mais afastado, arrumando coisas. Os outros fazem sinal um que significa: Vamos. Ele diz para irem, aponta os objetos. Sempre em mímica. Os outros desaparecem. Este começa a caminhar e se depara com o ceguinho. Guarda alguma coisa. Olha para os lados, para se certificar de que está sozinho. Vai até a saída do circo e vê o grupo que se afasta no escuro. Volta e acorda o ceguinho. Este se levanta, assustado.
– Você não pode dormir aqui.
– Não achei a saída. Já vou embora. Pode me ajudar a procurar minha bengala?
O cego dá passos no vazio.
– Não enxerga?
– Não. Sou cego.
Novamente o homem olha para os lados, olha para o lado de fora e volta.
– Mora longe?
– Moro.
– Vou levar você.
– Não precisa. Conheço a cidade inteira.
– Está muito escuro.
– Sempre está muito escuro…
– Desculpa. Não quis ofender.
– Só queria que me levasse até a saída. Há ali um poste de luz…
O homem toma o ceguinho pelo braço e os dois saem.
A partir desse momento, os dois serão vistos de longe e, de quando em quando, ouvir-se-ão suas vozes.
– Quantos anos você tem?
– Vinte.
– Nossa! Só de circo eu já tenho quase isto.
Caminham. As casas vão ficando mais raras.
– O que o senhor faz no circo?
– Sou o sanfoneiro.
– O sanfoneiro?
– Por que parou?
– Han? Parei… por nada. Vamos.
Caminham… Num momento, estarão parados num espaço aberto. Por gestos, o homem aponta numa e noutra direção. O ceguinho indica um ponto e começam a andar. O homem o toma pela cintura e o traz para mais perto.
Seqüência 19.
Chegam ao alto de um barranco vertical, correndo um rio na parte de baixo. São vistos de baixo. O ceguinho aponta em direções diferentes, como se estivesse falando de pontos pitorescos do lugar. Aponta para o rio.
O homem o abraça por trás e encosta seu rosto no rosto do ceguinho. Tudo sempre será visto de longe. O ceguinho se desvencilha e se coloca por trás. Um close mostrará o homem com a cabeça para o alto, os olhos fechados. Um close mostrará o ceguinho enfiando a mão direita no bolso traseiro. O rosto do homem dá um salto e vê-se de longe o ceguinho dando punhaladas em seu coração. O homem cai. O ceguinho continua com o punhal. Depois, rola o corpo até o barranco e faz com que caia no vazio. Ouve o barulho.
Está agora caminhando ao longo do rio. Chega a uma cachoeira. Lava mãos e rosto. E, no meio do ruído forte das águas, dá um berro desesperado. E grita:
– Rainha!… Matei por amor!… Matei por amor!…
A cena escurece.
Seqüência 20:
Um quarto simplíssimo de hotel. Apenas uma cama de casal, um guarda-roupa e uma penteadeira. Maria, sentada diante do espelho, está entre admirar o próprio rosto e perder-se entre pensamentos fugidios. Veste uma camisola de tecido brilhante, com alças de miçangas. Ouve um ruído e vira-se para a cama.
Jorge está acordando e a olha:
– Acordou muito cedo, mulher.
– Acho que nem dormi. Depois de uma noite como esta…
Olha para ele e sorri. Ainda sentada, se espreguiça e joga a cabeça para trás. Vê que Jorge está de pé, enrolado numa toalha.
– Vou tomar um banho.
Ele entra no banheiro. Volta de ceroulas. Maria está na cama, ainda de camisola, coberta da cintura para baixo com um lençol. Ele entra debaixo do lençol. (Durante o diálogo, eles se levantarão e se vestirão, isto é, colocarão as vestes por cima). Fala:
– A turma do circo ainda deve estar dormindo. Os homens devem ter chegado de manhã.
– Sempre que tem estréia, eles terminam a festa no puteiro?
– Sempre foi assim…
– Engraçado. Se um homem já tem uma mulher, quê que ele vai fazer lá? Não pode fazer o mesmo com a mulher?
– Claro que não!, mulher. O que um homem faz com uma puta, o marido não faz com a esposa.
– E por que não?
Jorge se dá conta de que Maria precisa de uma explicação.
– Mulher, deixa eu te explicar uma coisa. Isto que nós fazemos na cama… estas coisas, um casal não faz. Você, bobinha ainda, foi seduzida e foi cair na casa da dona Olinda. Ali, não tinha saída. Tinha que fazer o que o cliente mandava. Quem foi que te ensinou cada uma dessas… dessas coisas?
– Quando eu cheguei, não entendia nada. Tinha sido desrespeitada por aquele homem mas foi tão ruim que eu nem sabia direito como é que devia ser. Ele fez o que queria e me largou no mato. Ele repetiu duas outras vezes até que uma das vizinhas da minha mãe descobriu. Já na casa da dona Olinda, depois de alguns dias que passei lá, chorando, ela me chamou e disse: Hoje, o primeiro que entrar aqui, vai pro teu quarto. Você só tem que fazer tudo o que ele mandar. E se ele te machucar, fala pra ele parar, se não, você me conta. Isso é tudo que você tem que saber… E foi assim que eu fui aprendendo.
– Mas quando a moça se casa diante do padre e vai pra casa, é tudo diferente.
– Mas, por que é diferente? Não é a mesma coisa?
Jorge ri descontraído.
– Ô, mulher! Se você soubesse como é… ia rir como eu… Deixa eu te explicar: a mulher está deitada, de camisola. Coberta até a cabeça. O homem chega, vestido, e entra debaixo da coberta. Bem devagar ele vai pra cima dela, abaixa a cueca e… como dizem as honestas… faz tudo o que quer. Em silêncio.
– Só isso?
– Só isso. E tem mais… se ela mexer um pouquinho ou soltar um gemidinho… ele vai ficar bravo e dizer que ela é puta.
– Mas, então, ela nem se mexe nem nada?
– Nada, mulher. Petrificada como uma estátua. Isso é o que as mães ensinam pras filhas.
– Que tristeza. E elas gostam?
– Quem é que vai saber?
– Claro que não!, homem. Quem é que vai gostar duma coisa destas? Se essas coitadas vivem desse jeito, então, por que é que elas olham as putas como se elas fossem uns bichos?
– Elas se acham superiores.
– Superiores? Só porque têm mais dinheiro?
– Nem todas têm tanto dinheiro assim…
Há um momento de silêncio. Maria interrompe:
– Semana que vem, nós não vamos pra Friburgo?
– É.
– Hoje à tarde vamos sair. Quero comprar um vestido novo e uma roupa pras crianças. Em Friburgo mora um sobrinho, vou visitá-lo e quero que eles me vejam bem bonita.
– O Zico?
– É.
Maria vai até a janela, abre-a e fica olhando a cidade. Jorge vai até ela e ficam juntos. Ela fala.
– Quero te contar uma coisa e quero te fazer uma pergunta.
– Pois, conta, mulher.
– Não quero que fique com raiva do que vou falar… A primeira vez que um homem foi no meu quarto… Eu estava apavorada… Um homem que eu nunca tinha visto na vida. Ele entrou e ficou me olhando. E falou: tire a roupa. Eu falei: vou apagar a luz. E ele: De jeito nenhum. Quero te ver pelada. E eu fui tirando a roupa e tremia inteirinha… De repente eu olhei pra cara dele… Ô, homem, isto que eu vou contar… eu nunca falei antes… Os olhos dele… O que é que era aquilo que eu estava vendo? Os olhos… Eu senti uma coisa esquisita por dentro. Achei bom… Pode, isto? Fiquei orgulhosa… Metida… Olhava pra cara dele e tirava a roupa… E sorria… Pode, isto? Fiquei sem-vergonha de repente. E tirei a calcinha e mostrei pra ele. E ria. E ele riu… Ô, homem… eu te pergunto: eu já era safada? Aquele jeito dele me olhar… Eu só sabia que estava bom. E ele falou com a voz sumida: deite-se. Naquele momento, aquela vozinha fraca, aquele olhar medroso, naquele momento eu achei… que eu era a mais forte… É… eu era a mais forte… Deitei…
Jorge a olha emocionado. Há um vislumbre de sorriso em seu rosto.
– Deitei, homem. Ele veio pra cima e me beijou na boca. E enfiou a língua dentro da minha boca. Aquilo me deu um susto. Mas me derrubou por inteiro. Parecia que ele todo entrava dentro de mim… Comecei a tremer… Não, eu não era a mais forte… E eu não vi mais nada. Eu não vi mais nada.
Maria respira ofegante. Entra rápido.
– Fecha essa janela, homem. Que vergonha!
Jorge fecha a janela, vem e a abraça delicadamente. Maria descansa a cabeça no seu pescoço. Está quase chorando.
– Fala, mulher. Fala mais.
– Não tá com raiva de mim?
Ele apenas a aperta em seu abraço. Ela se desvencilha aos poucos, sorri nervosa e diz:
– Ele, já vestido, antes de sair falou pra mim: na próxima vez, quero você de novo. Eu falei: as moças me falaram que isto não pode. Dona Olinda disse que aqui ninguém tem dono. É de quem chegar. E ele: eu pago o dobro. E saiu. E eu, homem, sentei na cama, atordoada… e pensei assim: se isto é ser puta… eu estou gostando… Me diga, homem. Eu já era safada?
Jorge leva a boca até a orelha de Maria e mordisca. Ela:
– Pare com isto, homem. Estou morrendo de vergonha…
Depois de um silêncio, ele:
– Você disse que tinha uma coisa pra me perguntar. O que é?
– Nem sei mais se quero perguntar. É melhor a gente ir embora.
– Eu quero saber… eu quero…
Maria sai do abraço, senta-se diante da penteadeira e se olha no espelho.
– Homem! Eu sempre quis saber por que foi que você se casou com uma puta. Você foi lá e me tirou. Isto nunca acontece. Isso, eu sempre quis saber…
– Pois eu vou te dizer. (Jorge se senta na cama). Eu vou te dizer. São dois motivos mas, no fundo, os dois são uma coisa só…
– Mas são dois, ou um?
– Dois motivos que são a mesma coisa…
– Não dá pra entender…
– Vai entender, mulher. O primeiro motivo… bem… eu te vi no rio, lavando roupa, eu te vi na venda do seu José. Eu fiquei apaixonado, mulher. Nunca tinha sentido aquilo. Eu estava viúvo, sozinho, achava até bom… Mas na hora em que te vi na venda, saí atordoado. Sabia que você estava na casa da dona Olinda porque você estava com as outras no rio. E pensei: vou lá conhecer aquela mulher. E foi isto. O resto você sabe. Fui lá, fui pro quarto com você, fiz tudo o que queria. Tudo…
– Mas, e o outro motivo?, homem.
– O outro você também sabe, mulher. Vou dizer. (Jorge se levanta e se põe diante dela) Vou dizer. Você… você é gostosa demais! Como poucas! É isso! Não é só bonita, mulher… É mais… É uma máquina de prazer… É isso! É isso!
Maria fecha os olhos, como que cansada, está meio atordoada.
– E isso lá é motivo?, homem.
– Estou sendo sincero como você foi, há pouco… Quando eu estava com você, a primeira vez, caí pro lado e senti uma coisa que nunca tinha sentido antes. Não sei explicar. Só sei que pensei assim: esta mulher vai ser só minha. Era o amor? Era o tesão? Como vou saber? Foi o que pensei: vai ser só minha. Se alguém encostar um dedo… eu mato! Saí dali, sentei na frente da dona Olinda, pedi meio copo de pinga e falei com ela que ia levar você comigo. O resto você já sabe…
– E o que foi que ela disse?
– Olhou pra mim e não falou nada.
Os dois dão mostras de um grande cansaço. Tentam olhar-se mas não têm coragem. Maria fala baixinho:
– Não está na hora de ir?
– Ainda não. Vou pedir pra trazerem o café aqui.
– Aqui em cima? Eles trazem?
Jorge acena que sim Os dois se sentam, massacrados pelo peso das duas confissões. A cena desaparece aos poucos.
Seqüência 21:
O mesmo cenário. Os dois estão deitados na cama, com as roupas de sair. Jorge não tirou os sapatos. Sobre a mesa, restos de um café que já foi tomado. Xícaras sujas, farelos. Ao lado de Jorge, uma xícara com café, que ele tomará enquanto desenvolver a fala a seguir:
– O sexo, mulher, o sexo é um mistério terrível. Para os bichinhos é a coisa mais natural do mundo. Mas para as pessoas… O que é o sexo para as pessoas? Não devia ser só a colocação de uma sementinha dentro de um útero? Só isso! Pra que tanta confusão? Pois eu vou te dizer: quando a sementinha é colocada lá dentro, ela leva junto pedaços da alma. Com tudo que carrega uma alma humana, seu lado lilás e seu lado negro. Quando o homem entra numa mulher, leva junto suas humilhações… seus medos… suas raivas… suas glórias… seus delírios… às vezes… até sua vontade de matar…
Maria o olha sem compreender.
– E a isso, os bobalhões chamam amor… (Ele a olha rápido). Não quero dizer, com isto, que não gosto de você.
Maria se levanta e fica andando no quarto. Vai até a janela e começa a abri-la, mas fecha logo a seguir. Ela o olha e ri.
– O que foi?, mulher.
– Pensei numa coisa engraçada, homem. Quando eu passar na frente de uma dessas empertigadas, que não mostram nem o pescoço e ficam olhando pra gente como se a gente fosse uma cachorra, quando eu passar diante de uma dessas velhacas, vou pensar assim: (num tom de absoluto deboche, rindo) dona, a senhora não quer experimentar dar uma reboladinha na hora agá? A coisa vai entrar inteirinha, dona, até o talo…
Jorge ri e se levanta.
– Safada! E eu, quando passar na frente de um desses engravatados, que vivem lambendo o cu do padre, vou pensar assim: meu prezadíssimo senhor, por que não experimenta enfiar a linguinha dentro da coisa? Vai ouvir um delicioso gemido de gata machucada.
– Safado! E eu, vou pensar assim: dona, será que a coisa cabe inteirinha na sua boca? Por que não experimenta?, dona.
– Safadona! E eu, vou pensar assim: meu prezadíssimo senhor, já experimentou enfiar o dedinho na coisa e tocar o sininho?
– Ui, homem, assim também já é demais! Tô ficando envergonhada! (Fazendo-se mais séria). Não é melhor a gente sair pra dar uma volta?
-De jeito nenhum, mulher. Eu vou tirar a tua roupa.
– Agora?, homem. Assim, de dia!
– Vai me dizer que não quer?
– Ô, homem. Pois isso lá é coisa que se enjeite?
Jorge vai até ela, olhos nos olhos. Começa a baixar sua blusa e a cena vai desaparecendo.
Seqüência 22:
Jorge e Maria estão prontos para sair do quarto do hotel. Ele dá o braço a ela. Ao abrir a porta para saírem, Jorge pára.
– Não sei por que, mas lembrei-me da minha primeira mulher.
Maria o olha, intrigada.
– Feche os olhos, mulher. Vou te dar um presente que vem de muito, muito longe.
Maria fecha os olhos. Jorge lhe dá um beijo na boca, castíssimo, apenas um toque de lábios.
– Ô, homem. Que coisa gostosa! (Fecha os olhos). De novo!
Ele repete o beijo.
– Ô, homem. Desse jeito, eu não conhecia. Feche os olhos, você.
Jorge fecha os olhos e ganha um beijo. Jorge fecha os olhos e ganha o beijo. E ele pergunta a ela:
– Gostou?
–
– Gostou?
– É mais doce que o mel… É mais doce que o mel… Ô, homem. Essa lição eu ainda não tinha aprendido…
Ela o abraça cheia de emoção, quase chorando. Abrem a porta e saem. Enquanto descem a escada do hotel, Maria fala:
– Eu acho que um dia as mulheres vão acordar. Um dia, eles todos vão acordar pro prazer. Viver é bom. E todas as pessoas merecem a felicidade. Não é assim?
– Não sei, mulher.
E se também, num outro dia, acabasse o pobre e o rico? Todo mundo comendo a mesma comida…
Jorge sorri.
– Ê, mulher. Acho que, agora, você já está querendo demais…
– Deixa eu sonhar, homem. Sonhar acaba com o pesadelo da vida. Sonhar não é pecado.
Saem andando.
Seqüência 23:
Jorge e Maria caminham. Maria tem duas sacolas de plástico, cheias. Ao se aproximarem do circo, Menininho vem correndo.
– Pai, pai! O João-sanfoneiro desapareceu.
– Como desapareceu? Quem desapareceu?
– O João-sanfoneiro, pai.
– Mas o quê que é isto? Em plena temporada? Vamos lá, pra saber.
Há um tipo de agitação. As pessoas conversam, vão e vêm. Jorge se aproxima com Maria. Uma mulher fala:
– Todo dia a gente tem que se reunir às onze horas pra distribuir as tarefas. Almoça e toca a trabalhar. E se falta alguém, alguém tem que prestar contas. Seu Jorge, os homens nossos disseram que foram pra casa da dona Olinda com uns homens da cidade. E o João-sanfoneiro estava guardando coisas e disse que ia depois. Foi a última vez que foi visto.
Alguém perguntou pro povo do lugar? Quem sabe tem outra casa de mulheres? a cidade cresceu muito…
E a mesma mulher:
– Olha, seu Jorge, eu não quero fazer fofoca. Mas um dia ele falou bem assim pra mim, que às vezes tinha vontade de desaparecer. Aí eu falei bem assim: mas como que vamos fazer nas apresentações? E ele falou bem assim: eu desapareço e… vocês que arranjem outro sanfoneiro…
Chico se aproxima.
– Seu Jorge, aquele ceguinho de ontem está aí e disse que ele toca sanfona.
– Mas que história é essa? Me desaparece um sanfoneiro e me aparece outro sanfoneiro. O diabo andou por aqui, fazendo alguma arte?
De repente o semblante de Jorge muda completamente.
– O ceguinho?
– Aquele de ontem.
Jorge contrai os lábios. Balança a cabeça e dá um sorriso.
– Manda ele… leva ele até o picadeiro. Mulher, vai cuidar das tuas coisas. Vou tentar resolver este problema.
Maria vai até as crianças e mostra as sacolas. As crianças demonstram curiosidade. Maria aponta para a barraca. Vão para lá. Jorge se dirige ao circo.
Lá dentro está o ceguinho, sentado no centro. Ao lado uma sanfona. Jorge chuta um pau qualquer, pra fazer barulho e mostrar que estava próximo. O ceguinho levanta a cabeça.
– Seu Jorge?
– Eu mesmo. O que é que o senhor está fazendo aqui?
– Eu soube que o senhor ficou sem o sanfoneiro… e…
– Quem que te contou isto?
O ceguinho baixa os olhos:
– Todo mundo na cidade fala disso. Que o povo do circo…
– Já sei, já sei… Ceguinho, andou aprontando alguma coisa?
– Não, senhor, seu Jorge.
– É tudo muito esquisito. Muito esquisito… E o que é que você sabe tocar?
– Eu tocava na porta da igreja, nos horários da missa, pra ganhar um troquinho.
Jorge começa a ter um tom grosseiro na voz?
– Eu perguntei o que é que você sabe tocar?
– Eu… eu… (o ceguinho começa a tremer).
– Vamos ver isto. Pega a tua sanfona e toca alguma coisa.
O ceguinho pega a sanfona, tira uns acordes. Tenta se controlar. Está nervoso, seus dedos tremem. Jorge percebe. Muda de tom.
– Não precisa ter medo, ceguinho. Toque alguma coisa. Eu estou um pouco nervoso. Fique calmo. Toque alguma coisa bem bonita. Brinque com os dedos na sanfona e, quando se lembrar de uma canção bonita, toque.
O ceguinho obedece. Começa a brincar com as notas. Jorge se levanta, começa a caminhar. Olha o ceguinho, caminha, olha de novo. Vai até a entrada do circo e olha lá fora. Vê Maria conversando com os filhos. De repente, estremece. O ceguinho está tocando a canção Pombinha Branca. Seu olhar endurece, ele avança lentamente até o ceguinho e ouve, mas seu rosto diz que algo de maléfico lhe passa dentro da alma. De repente ele interrompe:
– Pode parar. Pode parar. Onde você aprendeu esta canção?, ceguinho. Esta canção é minha, ninguém a conhece.
O ceguinho, baixinho, quase em sussurro:
– Eu ouvi ontem, seu Jorge… Toquei a manhã inteira… até aprender…
Jorge cantarola os primeiros versos da canção.
– Ceguinho, e se eu aceitar você no circo… você sabe que vai sofrer?
– Sei.
– Responde direito, vagabundo.
– Sei, sim senhor.
– E se eu judiar de você, maltratar você, tratar você como se você fosse um lixo, você aceita?
– Aceito… aceito, sim senhor.
– E se eu chamar você de monte de merda, ceguinho. Aceita?
O ceguinho, quase chorando:
– Aceito, sim senhor.
– E por quê? E por quê?
O ceguinho muito comovido:
– A minha vida era muito triste, seu Jorge. Eu passava frio, eu passava fome…
– E aqui vai passar mais frio e mais fome!
– Mas vai ser diferente, seu Jorge. Aqui eu vou ser feliz…
– Como é que eu vou entender isto?, homem de Deus.
– Seu Jorge… eu tenho um segredo…
– Tem um segredo… seu vagabundo… Andou pensando alguma coisa feia? Andou pensando em fazer alguma coisa feia com alguém?, ceguinho de merda.
De repente o ceguinho se levanta, como quem quer fugir. Ele demonstra que percebeu ter sido de Jorge a voz da véspera.
– Pra onde você quer ir, vagabundo?
– O senhor… Era o senhor… Era o senhor que tava lá, judiando de mim… Eu vou embora… Eu não sabia…
– Que estava onde?, ceguinho de merda. Ah, estou começando a entender… Você, ontem, conversava com alguém… Eu vi… Você conversava com alguém na hora do bis.
– O senhor viu?
– Em vez de ficar quietinho, ouvindo a canção… ficou lá conversando com alguém que você nem conhece. Não foi isso, monte de merda?
– Então, não era o senhor?, seu Jorge.
– Eu vou te responder, safado do inferno. Eu sei o que está pensando. Não era eu. Não era eu, viu? Eu vi alguém conversando com você na hora do bis. Não ouvi, só vi de longe. Era gente do circo mas você nunca vai saber quem é. Está satisfeito? E eu pergunto de novo: aceita tocar a sanfona no circo?
– Aceito… aceito, sim senhor.
– Pra comer merda!
– Sim, senhor.
– Pra comer o pão que o diabo amassou!
– Sim, senhor.
– Pra comer o pão que eu vou esfregar no cu do diabo!
– Sim, senhor.
– Então, temos um novo sanfoneiro. O Chico vai te dizer as canções que vai ter que tocar. Se não souber, toque as que sabe. Tem que ser música alegre, só isso.
Jorge enfia a cara para o lado de fora.
– Manda o Chico aqui, rápido.
Senta-se no chão, com o rosto entre as mãos. Está totalmente transtornado. Treme. Chico chega.
– Leva o ceguinho pra barraca do sanfoneiro. Veja as músicas que ele sabe e veja quais nós vamos aproveitar pra hoje. E fala pra mulher que hoje ela não vai cantar. Os meninos vão cantar o desafio no lugar dela.
E para o ceguinho.
– Vai com ele, ceguinho. Vai sozinho. Aqui não vai ter ninguém pra ficar te levando e trazendo. Se vire.
O ceguinho pega a sanfona e sai, aos tropeços. Jorge volta a colocar o rosto entre as mãos. A cena desaparece aos poucos.