O Sitio… Terceira parte

Reinações de Narizinho

 Terceira Parte: O Marquês De Rabicó

 1 – Os sete leitõezinhos

            Eram sete leitõezinhos. Bem sei que sete é conta de mentiroso, mas eram mesmo sete, todos ruivos, com manchas brancas pelo corpo. Quando a mamãe deles saía a passeio, os sete leitõezinhos acompanhavam-na em fila — rom, rom, rom…

            O tempo foi passando e os leitões foram crescendo, e à medida que iam crescendo iam entrando…

            — Para a escola, já sei!

            — Sim, para a escola do forno.

            — Que horror!

            — Pois é verdade. Vida de leitão no sítio do Pica-pau Amarelo não é das mais invejáveis. Está o lindo animalzinho brincando no terreiro, feliz, gordo como uma bola. Dona Benta olha e diz:

            — Tia Nastácia, a prima Dodoca vem jantar hoje aqui. Acho bom pegar “aquele um”! e aponta para o coitado.

            A negra vai ao paiol, toma uma espiga de milho e grita no terreiro — xuque, xuque, xuque!

            Os bobinhos ouvem e vêm correndo atrás do milho que ela começa a debulhar, e comem, comem, comem. De repente a malvada se abaixa e — nhoc! segura pela perna o tal “aquele um”. E pode o coitadinho espernear e berrar quanto queira! Não tem remédio. Vai arrastado para a cozinha, onde é assassinado com uma faca de ponta.E se fosse só isso! Depois de assassinado é pelado com água fervendo, é destripado, temperado e, afinal, assado ao forno.

            Na hora do jantar reaparece na mesa, mas muito diferente do que era. Vem num grande prato, rodeado de rodelas de limão, com um ovo cozido na boca. E ninguém lamenta a sorte do coitadinho.

            Todos tratam mas é de cortar o seu pedaço e comê-lo gulosamente, dizendo:

            — “Está delicioso!”.

            E ainda por cima lambem os beiços, os malvados!… Foi esse o triste destino daquela irmandade de sete leitões. Da irmandade inteira menos um, o Rabicó, assim chamado porque só possuía um toquinho de cauda. Rabicó salvou-se porque Narizinho costumava brincar com ele desde bem pequenino e acabaram amigos.

            — Fique sossegado que não deixo “ela” te assassinar, tinha-lhe dito a menina.

            “Ela”, sem mais nada, queria dizer tia Nastácia.

            Uma tarde Narizinho ouviu dona Benta dizer à preta:

            — Amanhã, dia dos anos de Pedrinho, temos de dar um jantar melhor. Há ainda algum leitão no ponto?

            — Só Rabicó, sinhá, mas esse Narizinho não quer que mate. É o ai Jesus dela.

            — Sim, mas você dá um jeito. Mata escondido, sabe — e piscou para a negra.

            As duas velhas eram danadas para se entenderem.

            A menina, entretanto, ouvira a conversa e fora correndo em procura do leitãozinho. Encontrou-o no pasto, fossando a terra como sempre — rom, rom, rom.

            Agarrou-o ao colo e disse-lhe ao ouvido:

            — Vovó deu ordem a tia Nastácia para assassinar você amanhã. Mas eu não deixo, ouviu? Vou escondê-lo, bem escondido, num lugar que só eu sei, até que o perigo passe.

            E assim fez. Levou-o para o tal lugar que só ela sabia, amarrou-o pelo pé a uma árvore; depois trouxe-lhe várias espigas de milho, uma abóbora e uma lata d’água.

            — Fique aí bem quietinho. Nada de berreiros, se não tudo está perdido. Quando não houver mais perigo, virei soltá-lo.

            Chegada a hora de pegar o leitão, tia Nastácia revirou o sítio inteiro de pernas para o ar. Procurou-o como quem procura agulha; por fim veio dizer a dona Benta que com certeza algum ladrão o havia furtado, ou alguma onça o tinha comido.

            — Que maçada! — exclamou a velha. — Nesse caso mate uma galinha bem gorda. E Rabicó fica para o Ano Bom, se aparecer.

            No dia seguinte, assim que todos se levantaram da mesa depois de comido o “jantarzinho melhor”, a menina correu ao lugar que só ela sabia e soltou o leitão.

            — Está salvo por uns tempos — disse-lhe. – Mas na véspera do Ano Bom tenho de prender você aqui outra vez, porque “ela” promete coisas para esse dia.

            Dali a pouco, muito serelepe, como se nada houvesse acontecido, Rabicó surgiu no terreiro, rom, rom, rom. Chegando à porta da cozinha para lambiscar umas cascas que a negra havia botado fora.— Ué! — exclamou tia            Nastácia, admirada. — Olhe quem está aqui! Rabicó em pessoa!… Você escapou desta vez, seu maroto, mas de outra não me escapa. Uma semana antes do Ano Bom já te tranco no paiol e quero ver!…

            Rabicó não ligou a mínima importância àquelas palavras. Tratou mais foi de encher a barriguinha com as cascas, deitando-se depois ao sol para uma daquelas sonecas gozadas que só porco sabe dormir.

 

2 – O pedido de casamento

            Narizinho estava no seu quarto conversando com a boneca.

            — Senhora condessa, acho que é tempo de mudar de vida. Precisa casar, se não acaba ficando tia. Amanhã vem cá um distinto cavalheiro pedir a mão de Vossa Excelência.

            Emília andava bem de saúde, gorda e corada. Tia Nastácia havia enchido de macela nova a perninha que fora saqueada no passeio ao reino das Abelhas e Narizinho havia consertado uma das suas sobrancelhas de retrós, que estava desfiando. Além disso, pintara-lhe nas faces duas rodelas de carmim, bem redondinhas.

            Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha gênio para aturar marido, além de que não via lá pelo sítio ninguém que a merecesse.

            — Como não? — protestou a menina. E Rabicó? Não acha que é um bom partido?

            A boneca ficou indignada e declarou que jamais se casaria com um poltrão como aquele. O fiasco feito na viagem à terra das Abelhas não era coisa que merecesse perdão.

            A menina riu-se e explicou:

            — Você está enganada, Emília. Ele é porco e poltrão só por enquanto. Estive sabendo que Rabicó é príncipe dos legítimos, que uma fada má virou em porco e porco ficará até que ache um anel mágico escondido na barriga de certa minhoca.

            Por isso é que Rabicó vive fossando a terra atrás de minhocas. Emília ficou pensativa. Ser princesa era o seu sonho dourado e se para ser princesa fosse preciso casar-se com o fogão ou a lata de lixo, ela o faria sem vacilar um momento.

            — Mas você tem certeza, Narizinho?

            — Tenho certeza absoluta! Quem me revelou toda essa historia foi justamente o pai de Rabicó, o senhor Visconde de Sabugosa, um fidalgo muito distinto que vem fazer o pedido de casamento.

            — Visconde? — repetiu Emília, desconfiada. — Então o pai desse príncipe é Visconde só? Eu quero casar com príncipe filho de rei.

            — Você é uma bobinha que não sabe nada. O Visconde finge de Visconde, mas na realidade é rei e muito bom rei de um reino lá atrás do morro. Quando ele vier, repare na cabeça dele e veja que tem um sinal de coroa em redor da testa. Para esconder esse sinal ele usa cartola, que não tira nunca, nem na igreja. Desse modo, como ninguém vê o sinal da coroa, ninguém desconfia.

            Emília pensou, pensou, pensou e disse:

            — Pois bem, aceito! Mas desde já vou dizendo que não saio daqui. Caso-me, mas não vou morar com Rabicó enquanto ele não virar príncipe novamente.

            — Muito bem! — concluiu Narizinho. — Nesse caso, vá preparar-se para receber o Visconde, que não deve tardar. Ele já está a caminho. Vista aquele vestido de pintas vermelhas e ponha mais ruge na cara, ouviu?

            Enquanto a boneca se vestia, a menina correu ao pomar em procura de Pedrinho, que estava ocupado em chupar laranjas-lima.

            — Depressa, Pedrinho! Arranje-me um bom Visconde de sabugo, bem

respeitável, de cartola na cabeça e um sinal de coroa na testa, e venha com ele pedir Emília em casamento. Enganei-a que Rabicó é filho desse Visconde, o qual é um grande rei de um reino lá atrás do morro. Os dois, pai e filho, foram encantados por uma fada, só devendo se desencantarem no dia em que Rabicó descobrir uma certa minhoca com um certo anel mágico na barriga.

            — E a boba acreditou?

            — Acreditou piamente e declarou que nesse caso aceitará Rabicó como esposo, embora não vá morar com ele enquanto não virar príncipe novamente.

            Pedrinho fez como Lúcia pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas, fez cara com nariz, boca, olhos e tudo – e não esqueceu de marcar-lhe a testa com um sinal de coroa de rei.

            Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com ele à casa da boneca.

            — Toc, toc, toc, bateu.

            — Quem é? — indagou de dentro a voz da menina.

            — É o ilustre senhor Visconde de Sabugosa que vem fazer uma visita à senhora condessa de Três Estrelinhas e pedi-la em casamento para o seu ilustre filho, o senhor marquês de Rabicó.

            — Esperem um minutinho que já abro — respondeu a menina. E voltando-se para a boneca:

            — Vê, Emília? Além de príncipe ele ainda é marquês. De modo que se você casar-se com ele começa já a ser marquesa e um dia virará princesa. Não pode haver futuro mais bonito para uma coitadinha que nasceu na roça e nem em escola esteve. Você vai ser a Gata Borralheira das bonecas!…

            Emília deu três pulinhos de alegria e foi correndo botar mais um pouco de pó de arroz. Enquanto isso o Visconde entrou.

            Narizinho fez-lhe uma respeitosa reverência e respondeu, sem dar a entender que estava falando com um rei disfarçado:

            — Muito prazer, senhor Visconde! Puxe uma cadeira e sente-se no chão. Creia que fico muito satisfeita de saber que seu filho é marquês. E como vai a senhora Viscondessa?

            — Sou viúvo — respondeu o Visconde, suspirando profundamente.

            — Meus pêsames! E a senhora sua mãe, dona Palha de Milho?

            O Visconde suspirou de novo.

            — Coitada! Faleceu num horrível desastre…

            — Como? Conte-nos isso — exclamou Narizinho, fingindo grande aflição.

            — Pois é. Foi comida pela vaca mocha — explicou o Visconde, enxugando nas palhinhas de milho do pescoço duas lágrimas, uma de cada olho.

            — A pobre! — murmurou a menina muito triste. — Eu sinto bastante, Visconde, mas o mundo é isto mesmo. Um come o outro. A vaca mocha come as donas Palhas e a gente come as vacas. A vida é um come-come danado! Estou aqui apostando que também os seus filhos foram comidos pela senhoras galinhas…

            O Visconde arregalou os olhos como se não soubesse que tinha mais filhos além do marquês.

            — Sim — explicou Narizinho. — Os grãos de milho que Vossa Excelência já teve pregados pelo corpo, creio que podem ser chamados seus filhos.

            — Ah, sim, é verdade! Foram comidos pelo galo índio há duas semanas.

            Nisto Emília apareceu à porta, no seu vestidinho de chita com pintas vermelhas.

            — Senhor Visconde — disse a menina — tenho o prazer de lhe apresentar a sua futura nora, a senhora condessa de Três Estrelinhas. Veja como é galante!…

            O Visconde levantou-se para saudar a boneca e por “distração” tirou a cartola, deixando que Emília visse o sinal de coroa em sua testa.

            — Tenho a mais subida honra de receber no seio de minha família esta nobre condessa — disse ele. — Pelo que vejo é a mais linda criatura destes arredores! Acho-a ainda mais bonita que a franguinha pedrês de tia Nastácia…

            Emília fez uma cortesia para agradecer a amabilidade, embora torcesse o nariz àquela comparação com a franguinha pedrês.

            — E não é só isso — interveio Narizinho. — Bonita e prestimosa como não há outra! Sabe fazer tudo. Cozinha na perfeição, lava roupa e lê nos livros que nem uma professora. Emília é o que se chama uma danada.

            — Muito bem! Muito bem! — ia exclamando o Visconde.

            — Também toca lindas músicas na vitrola, mia como gato, arrebenta pipocas e tem muito jeito para modista. Esse vestidinho de pintas, por exemplo, foi todo feito por ela.

            Emília, que ainda não sabia mentir, interrompeu-a, dizendo:

            — Não fui eu, foi tia Nastácia quem o fez. A menina deu-lhe um beliscão sem que o Visconde percebesse.

            — Não repare, Visconde. Emília é muito modesta. Faz as coisas mas não quer que se diga. Esse vestido ela o fez sozinha, sozinha. Ela mesma escolheu a fazenda, ela mesma cortou e coseu. E olhe como ficou bem assentado nas costas. Levante-se, Emília, e vire-se de costas para o Visconde ver.

            Emília levantou-se da cadeira e deu umas voltas pela sala.— Não está dos mais elegantes mas serve – continuou Narizinho. — Emília nasceu aqui na roça e nunca foi à cidade, nem aprendeu costura. Para uma criatura nessas condições não acha que está bem feitinho?

            O Visconde olhou, olhou e disse:

            — Eu, a falar a verdade, não entendo de modas. Mas acho muito bom. Só que a saia me parece um tanto curta…

            — Eu também acho e já o disse a ela; mas Emília como tem perna grossa, anda com mania de mostrá-la. Só usou saia comprida durante o tempo da perna seca — e contou ao Visconde o caso do ouro-macela. Depois, mudando de assunto, pediu informações a respeito do gênio de Rabicó.

            — Ele tem muito bom gênio — disse o Visconde. — Não é briguento, nem provocador. Possui belas qualidades. Quanto ao mais, gosta muito de dormir ao sol e fossar a terra para descobrir minhocas.

            Nesse ponto a menina piscou para a boneca, querendo referir-se à história de certo anel que ele andava procurando dentro de certa minhoca, e Emília convenceuse de que Rabicó era mesmo um príncipe encantado.

            — O único defeito que tem — continuou o Visconde — é comer tudo quanto encontra. Rabicó não respeita coisa nenhuma!

            Emília fez carinha de nojo e foi cuspir à janela. Depois, metendo-se na conversa, disse:

            — Pois se se casar comigo só há de comer coisas gostosas e cheirosas. Não consinto que meu marido ande comendo o que encontra.

            — Apoiadíssimo, Emília! — exclamou a menina. — Também penso desse modo e acho que você faz muito bem de exigir isso dele. Mas agora só resta saber se você aceitou ou não aceita o senhor marquês de Rabicó como esposo. Vamos lá. Resolva…

            Emília ficou meio aflitinha de ter de decidir por si mesma uma questão de tal gravidade como essa de escolher um esposo e olhou Narizinho interrogativamente, como quem pede auxílio. Mas a menina não quis intervir, porque não desejava ficar com a responsabilidade.

            — Não devo dar opinião, Emília. Você tem que decidir por si mesma. Casamento não é brincadeira.

            A boneca pensou, pensou, pensou e afinal, tentada pela idéia de começar marquesa e um dia virar princesa, resolveu-se.

            — Pois quero!

            Narizinho bateu palmas.

            — Bravos! Está tudo resolvido. Senhor Visconde, abrace a sua nora, a futura marquesa de Rabicó…

            O Visconde ergueu-se bastante comovido. Abraçou a boneca e deu-lhe um beijo na face.

            Emília, muito vermelhinha, foi correndo para o quarto.

 

3 – O noivado de Emília

            Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes, trazido à força por Pedrinho, aparecia o marquês de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor.

            Mas apesar de noivo Rabicó não perdia os seus instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna preocupação de descobrir coisas de comer. Além disso não prestava a menor atenção à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias.

            Uma tarde Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um representante.

            — Rabicó não vale a pena — disse ele aborrecido. — Não sabe brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? e saiu. Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que andava jogado por lá. — Está aqui. De agora em diante o noivo será representado por este vidro azul — e o tal marquês de Rabicó vai passear — concluiu pregando um pontapé no noivo. Rabicó raspou-se gemendo três coins, e desde esse dia, enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.

            Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando viesse com impertinências.

            — Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição!

            — Eu sei qual é! — adivinhou o senhor Vidro Azul. — Não quer morar na casa do marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, o Visconde.

            — Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não quero é sair daqui. Estou muito acostumada.

            O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.

            — Sim, mas…

            — Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O marquês fica por lá e eu fico por cá — declarou Emília, toda espevitadinha e de nariz torcido.

            O representante do noivo suspirou.

            — Que pena! O senhor marquês já mandou construir um castelo tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente…

            Emília deu uma risada.

            — Eu conheço os lagos do marquês! São como aquele célebre lago azul que prometeu à Libelinha lá no reino das Abelhas.

            O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que Emília não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar.

            — Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque…

            — Uma lata d’água, diga logo — completou Emília mordendo os beiços.

            Narizinho interveio, repreensiva.— Você está aqui para noivar, Emília,  para dizer coisas bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do marquês. Veja lá, hein?

            E dirigindo-se ao representante:

            — O senhor marquês não escreveu ainda uns versos para a sua amada noivinha?

            — Escreveu, sim — respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. — Aqui estão eles. E recitou:

            Pirulito que bate bate,

            Pirulito que já bateu,

            Quem adora o marquês é ela,

            Quem adora Emília sou eu.

            — Bravos! — exclamou Narizinho batendo palmas. — São lindos esses versos! O marquês é um grande poeta!…

            Emilia, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha.

            — O verso está todo errado! Vou casar-me com ele mas não “adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão!

            Narizinho bateu o pé e franziu a testa.

            — Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?

            Depois, voltando-se para o representante:

            — Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém sabe nunca o que ele realmente está pensando, não é, Visconde?

            O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não. Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira, com torradas de mentira. Depois do chá, o Visconde e o representante se despediam e Narizinho acompanhava-os até à porta, onde dizia:

            — Não tenha medo, senhor Vidro Azul. Pode dar um beijinho nela por conta do marquês.

            O representante beijava Emília na testa e retirava-se em companhia do Visconde…

            Passada uma semana, a menina queixou-se a dona Benta:

            — Este noivado está me acabando com a vida, vovó. Todas as noites tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!…

            — Mas que é que está faltando para o casamento, menina?

            — Os doces, vovó…

            — Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os doces. Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi aos pinotes, com os níqueis cantando na mão.

 

4 – O casamento

            Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pésde-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma festa em que quase todos os convivas iam comer de mentira.

            Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convivas. Lá estavam dona Benta, tia Nastácia e vários conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspetor de quarteirão, um velho amigo de dona Benta que às vezes aparecia pelo sítio, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de laranja na boca.

            Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço.

            Vinha muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada.

            Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emília e chorou uma lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos.

            Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o marquês: enfiou-lhe no braço uma aliança de casca de laranja, que Rabicó por duas vezes tentou comer.

            — Ao menos no dia de hoje comporte-se! — disse o menino, ameaçando-o.

            Os outros animais do sítio, as cabras, as galinhas e os porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem compreenderem coisa nenhuma.

            Terminada a festa, Narizinho disse:

            — E agora, Pedrinho?

            — Agora — respondeu ele — só falta a viagem de núpcias.

            Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de repente – nhoc, deu um bote na mais bonita.

            — Acuda os doces, Pedrinho! — berrou a menina. Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu para cima dele, furioso.

            Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente inspetorada no lombo do porquinho.

            — Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!… Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada.

            Foi um desastre. A festa desorganizou-se e Emília chorou e esperneou de raiva.

            -É isso! Eu bem não estava querendo casar com Rabicó! É um tipo muito ordinário, que não sabe respeitar uma esposa.

            Narizinho interveio e consolou-a.— Isto não quer dizer nada. Rabicó é meio ordinário, não nego, mas com o tempo irá criando juízo e ainda acabará um excelente esposo. Depois, é preciso não esquecer que qualquer dia ele vira príncipe e faz você princesa.

            Mas Pedrinho, que estava danado com a feia ação de Rabicó, estragou tudo, dizendo:

            — Príncipe nada, Emília! Narizinho bobeou você. Rabicó nunca foi nem será príncipe. É porco e dos mais porcalhões, fique sabendo.

            Ao ouvir aquilo, Emília caiu para trás, desmaiada…

 

5 – O jantar de Ano-Bom

            Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele casamento. Os gênios não se combinavam e além disso a boneca não podia consolar-se do logro que levara. Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve meio.

            Quando Emília desconfiava, era para toda a vida. E desse modo ficou casada com Rabicó, mas dele separada para sempre.

            — Está aí o que você fez! — costumava ela dizer em voz queixosa. —

            Casou-me com um príncipe de mentira e agora, está aí, está aí…

            Narizinho dava-lhe esperanças.

            — Tudo se arruma. Um dia ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.

            Afinal chegou o dia do Ano Bom. Era costume de dona Benta festejar essa data com um jantar onde reunia vários parentes e vizinhos. Tia Nastácia caprichava.

            Frangos assados. Peru recheado. Leitão de forno. Pastéis, doces e quantas coisa gostosa havia. Era assim sempre e foi assim naquele ano.

Quando bateu a hora e todos foram para a mesa, começaram a vir pratos e mais pratos, até que, de repente, apareceu, numa grande travessa, um leitão “risonho”, de ovo cozido na boca e rodelas de limão pelo corpo.

            Os meninos não esperavam que viesse leitão, porque a negra havia dito que o jantar seria só de peru. Narizinho imediatamente desconfiou e foi correndo ao terreiro procurar Rabicó. Chamou-o mais de vinte vezes e campeou-o por todos os lugares que ele costumava freqüentar. Não encontrando nem rasto, voltou para a sala a chorar desesperadamente.

            — Não coma esse leitão, Pedrinho! É Rabicó. Aquela diaba feia nos enganou e assou no forno o coitadinho…

            O menino, apesar de duro para chorar, ficou com os olhos cheios d’água, e ergueu-se da mesa furioso com a preta.

            Emília, porém, pulou de alegria. Estava viúva! Podia finalmente casar-se com o Visconde de Sabugosa ou outro fidalgo qualquer.Chegou a bater palmas e a cantar o “Pirulito que bate-bate”, que era a sua música predileta. Narizinho não pode suportar aquilo. Avançou contra ela, numa fúria, e pregou-lhe um peteleco.

            — Vou mandar o doutor Caramujo fazer uma operação nesta malvada para botar dentro o que está faltando .

            Dona Benta perguntou, muito admirada, que era que estava faltando em Emília.

            — Coração, vovó. Pois não vê? Emília não tem nem uma isca deste tamanhinho…

            Quantas lágrimas perdidas! Rabicó não fora assado, não! Na véspera do dia de Ano Bom, assim que percebeu as intenções de tia Nastácia, tratou de pôr-se ao fresco, sorrateiramente, de orelhas em pé. Em caminho encontrou um pobre leitão da sua idade, muito parecido com ele. Teve uma idéia.

            — Por que não vai amanhã cedo ao terreiro de dona Benta? — perguntou-lhe.

            — Deixei lá três abóboras quase inteiras.

            O coitadinho foi. Encontrou as abóboras, é verdade, e comeu-as, mas teve como sobremesa faca de ponta e forno.

            Desse modo conseguiu o ilustre marquês de Rabicó escapar à triste sina que lhe parecia reservada — e passado o perigo voltou, muito lampeiro da vida, como se não soubesse de coisa nenhuma!…

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