o retábulo das maravilhas – cervantes

O RETÁBULO DAS MARAVILHAS, de Miguel de Cervantes
                                reportagem
 
    Esta tradução adaptada foi feita especialmente para a turma da oitava série da Escola Raphael Hardy, no ano de 1974, tendo sido apresentada no palco da Biblioteca Municipal, a 31 de outubro de 1974, e no palco do Centro de Criatividade de Curitiba a 10 de novembro do mesmo ano.

    Esta postagem apresenta três partes:

    na primeira, o texto da peça;

    na segunda, entrevista feita pelo jornal O Estado do Paraná, publicada em 17 de novembro de 1974, página 27, incluindo, na parte final, os comentários feitos pelos alunos que participaram;

    na terceira, como curiosidade, cópia do selo da Censura Federal de Brasília e de trecho do texto cortado pela mesma, com uma pequena nota explicativa de como era a via-crucis da cultura brasileira durante a ditadura militar, que atingia, inclusive, atividades curriculares.

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Primeira parte: O Retábulo das Maravilhas (Entremés del Retablo de las Maravillas)

Personagens: ZÉ PIMENTA, MARIA ANGU, NANICO, PREFEITO, VICE-PREFEITO, DELEGADO, ESCRIVÃO, PANCRÁCIO REPOLHO, JOANA CASTRADA, SOLDADO.

ZÉ PIMENTA: Não se esqueça do que combinamos, Maria Angu. Tudo tem que dar certo.
MARIA ANGU: Sempre trabalho do mesmo jeito: muita memória, muita cuca. Mas me diga uma coisa, Zé Pimenta: pra que serve esse tal de Nanico que você contratou? Nós dois juntos não damos conta do recado?
ZÉ PIMENTA: Precisamos dele pra tocar música nos intervalos entre uma e outra figura.
MARIA ANGU: Maravilha será se não nos jogarem tomate e ovo podre por causa dele. Nunca vi um sujeito tão desajeitado. (entra Nanico)
NANICO: Vamos representar nesta cidade?, senhor. Estou louco para mostrar pros senhores que não me tomaram apenas como carga.
ZÉ PIMENTA: Quatro de você não dão nem um terço, quanto mais uma carga inteira.
MARIA ANGU: Se você for tão músico quanto é grande, estamos fritos.
NANICO: Acho que me darão um papel pequeno porque sou miúdo.
ZÉ PIMENTA: O tamanho do papel será de acordo com o seu tamanho. Será invisível.
MARIA ANGU: Parece que chegamos no vilarejo. E estes que vêm ao nosso encontro devem ser o prefeito e seus ajudantes. Vamos cumprimentá-los com adulação, mas não muita. (entram o Prefeito, o Vice, o Delegado e o Escrivão).
ZÉ PIMENTA: Beijo as mãos de Vossas Senhorias. Quem dos digníssimos é o Senhor Prefeito?
PREFEITO: Eu, eu. Que querem?
ZÉ PIMENTA: Fosse eu um pouco mais inteligente e já teria visto que esta peripatética e graciosa presença não podia ser de outro se não do mui digníssimo Prefeito deste lugar honrado.
MARIA ANGU: Saudações à sua esposa e a seus filhinhos.
DELEGADO: Minha Senhora, ele não é casado.
MARIA ANGU: Então… para quando for… que nada se perderá.
PREFEITO: Mas o que deseja o Senhor?
ZÉ PIMENTA: Honrados dias viva Vossa Senhoria, que assim nos honra. Enfim, como se diz: o carvalho dá bolotas, a pereira peras, a parreira uvas e o honrado honra sem poder fazer outra coisa.
VICE-PREFEITO: Eis uma sentença ciceronianca, sem tirar nem por.
ESCRIVÃO: Ciceroniana, quer dizer o vice-prefeito Benito Repolho.
VICE-PREFEITO: Sempre quero dizer o que é melhor mas nem sempre acerto; enfim, boa gente, o que querem?
ZÉ PIMENTA: Senhores, eu sou Montiel, o que traz o Retábulo das Maravilhas. Mandaram me chamar aqueles que cuidam do hospital porque aqui não há autor de comédias e os doentes morrem de tristeza no hospital e a minha vinda será o melhor remédio e tudo se remediará.
PREFEITO: E o que quer dizer Retábulo das Maravilhas?
ZÉ PIMENTA: É chamado das Maravilhas pela quantidade de maravilhas que encerra. Foi feito pelo sábio Antanelo observando os paralelos terrestres, as órbitas dos astros e os rumos das estrelas, com tais pontos, caracteres e observações, que só conseguirá ver as maravilhas que o teatro encerra… aquele que for filho legítimo de seu pai e de sua mãe, dento de um legítimo matrimônio. Quem for filho… da… quer dizer… outras pessoas não poderão ver nem ouvir as maravilhas que o teatro encerra.
VICE-PREFEITO: Cada dia este mundo aparece com coisas novas. E quem é este Antanelo?
ZÉ PIMENTA: Antanelo é o sábio que nasceu na cidade de Antanela. A fama dele é de que tinha uma barba que ia até a cintura.
VICE-PREFEITO: Dizem mesmo que os homens de barbas grandes são grandes sábios.
PREFEITO: Senhor Delegado! Já que hoje à noite será a festa de casamento de sua filha, eu, como padrinho, quero que o senhor Montiel apresente o teatro na sua casa.
DELEGADO: Concordo com o senhor, ainda que tenha algo contra.
MARIA ANGU: O algo contra é que se não nos pagam adiantado, as figuras se recusam a sair. Além disso, nessas bodas costuma ir muita gente e se amanhã formos apresentar na Praça, quem vai aparecer pra nos ver? Não! Será preciso que  “antecipado” nos pague.
VICE-PREFEITO: Senhora, nenhum senhor Antecipado vai pagar. Nem mesmo nenhuma dona Antecipada. Eu mesmo vou pagar e, se eu não pagar, pagam os cofres públicos. Não conhecem nossa cidade, decerto. Aqui não se fica esperando que esse tal de Antecipado pague alguma coisa.
ESCRIVÃO: Senhor Vice. Ela não falou em algum senhor Antecipado. Ela disse que precisamos pagar adiantado, antes de tudo, antecipado.
VICE-PREFEITO: Ai, ai, ai. Falem direito que eu entendo direito. Vocês que são lidos e escrevinhados podem entender esses “ingrês”! Eu, não.
DELEGADO: Pois bem. Venham comigo e já lhes darei seis ducados. E também avisarei pra não deixarem o povo entrar na sala do teatro.
ZÉ PIMENTA: Sim, senhor. Dessa maneira penso que tudo acabará bem.
DELEGADO: Vamos examinar a minha casa pra escolher um cômodo propício à representação.
ZÉ PIMENTA: Vamos. E não tenham medo de ficar sem ver as figuras maravilhosas.
VICE-PREFEITO: Pois eu vou seguro. Sei bem que meu pai foi o Vice-Prefeito que foi meu pai. Imaginem se não hei de ver o tal Teatro.
ESCRIVÃO: Todos nós havemos de ver, senhor.
DELEGADO: Afinal, ninguém aqui é… eu, por exemplo, sou filho de João Castrado com Maria Machona. Estou seguro de que poderei me defrontar com as figuras maravilhosas. (saem o Delegado e Zé Pimenta)
PREFEITO: Senhora! Como vai a poesia na Capital? Que eu cá tenho minhas pontas de gênio e escrevo comediazinhas entre um despacho e outro. Aguardo uma ocasião para ir à Capital, enriquecer com minha obra alguma dúzia de autores.
MARIA ANGU: Poetas, há muitos, senhor, e todos se acham geniais e famosos. Mas me diga o senhor, como se chama?
PREFEITO: A mim, me chamam o Licenciado Gomecilhos.
MARIA ANGU: Valha-me Deus! O senhor é o famoso autor das peças “O diabo estava doente” e… daquela outra… ah, já me lembro… “Tudo anda mal por aqui”?
PREFEITO: Sou tão autor destas quanto da Bíblia. Sei bem que há poetas que são ladrões de versos, mas eu cá nunca quis furtar versos de ninguém. Sou o autor do poema sobre a construção da Grande Estrada! (volta Zé Pimenta)
ZÉ PIMENTA: Senhores, está tudo pronto. Agora, é só esperar a noite.
MARIA ANGU: E o dinheiro?
ZÉ PIMENTA: Muito bem guardado.
MARIA ANGU: Estão nos olhando. Sabia que o nosso Prefeito é poeta?
ZÉ PIMENTA: Poeta? Putisgrila!
VICE-PREFEITO: Vamos, vamos, senhores. (saem todos)

II
(entram Joana Castrada, vestida de noiva, e Pancrácio Repolho.
JOANA CASTRADA: Vamos sentar bem em frente. Você já sabe do mistério do Teatro. Quem é filho da… quer dizer… não se descuide que seria uma desgraça.
PANCRÁCIO REPOLHO: Você sabe bem que eu sou quem sou e não digo mais. Estou seguro de que verei tudo o que o Teatro mostrar. E ainda havia de ver, mesmo se me arrancassem os olhos.
JOANA CASTRADA: Veja, aí vem gente. (entram todos)
ZÉ PIMENTA: Sentem-se, sentem-se, senhores. As figuras sairão daqui. Aqui ficará o músico.
VICE-PREFEITO: Músico, isso aí? Enfie ele atrás da cortina. Pode ser que não sendo visto também não seja ouvido.
ZÉ PIMENTA: Não tem razão de falar assim, senhor Vice-Prefeito. Ele é fidalgo de brasão muito conhecido. Pertence à nata da capital.
VICE-PREFEITO: Não interessa a nata. Quero é ouvir a nota.
NANICO: Isto eu bem mereço por me rebaixar a tocar diante de…
VICE-PREFEITO: Na verdade, já tocaram diante de minha Senhoria músicos notórios.
NANICO: Notórios otários.
PREFEITO: Se continuarem assim, nunca mais paramos. Senhor Montiel, está tudo pronto?
VICE-PREFEITO: Tem pouco aparato, este autor. Nenhum cenário…
DELEGADO: É que tudo há de ser maravilhoso.
ZÉ PIMENTA: Atenção, senhores, que começo. Oh, tu! Quem quer que foste, que fabricaste este teatro tão maravilhoso, que alcançou o renome de Teatro das Maravilhas, pelo que contém. Oh sábio Antanelo! Te conjuro e determino que mostres a esses senhores algumas de tuas maravilhosas maravilhas, para que todos se alegrem. Vejo que já estou sendo atendido. Pois eis que surge lentamente o vulto de Sansão, o valentíssimo, para abraçar as colunas do templo e derrubá-lo sobre seus inimigos. Força, cavalheiro, força! Já racham as paredes, já tremem os pilares, já estala o teto. Não exagere, para não enterrar vivos, no meio dos tijolos e da caliça tanta gente nobre que aqui se encontra.
VICE-PREFEITO: Pare, pare! Não vá suceder que em vez de nos alegrarmos, acabaremos por ser enterrados vivos!
ESCRIVÃO: O senhor está vendo tudo?
VICE-PREFEITO: Pois não havia de ver? Repare na careca dele!
PREFEITO: (à parte) Mas que milagre é este? Eu tenho certeza de que sou filho legítimo e não estou vendo nada.
MARIA ANGU: Cuidado, senhores! Protejam-se. Pois sai agora o mesmo touro que na Grécia antiga raptou a linda Europa. Escondam-se, escondam-se. Deus nos livre dele. Cuidado! Cuidado!
ZÉ PIMENTA: Cuidado! Cuidado! Ô! Ô! Eia, touro! Ô! Ô!
VICE-PREFEITO: Ao diabo com este touro! É todo pintado. Se não me escondo, ele me derrubava.
DELEGADO: Senhor Autor! Faça com que não saiam mais figuras tão ferozes! Não por nós, cavalheiros, mas por esta donzela aflita, que se vê já no seu vestido de noiva uma gota de sangue, da ferocidade do bruto.
JOANA CASTRADA: Oh, meu pai! Vou ficar três dias fora de mim. Já me via em seus chifres!
DELEGADO: Se você não fosse minha filha, não veria nada.
PREFEITO: (à parte) E eu, que continuo sem ver nada. Mas pelo jeito vou ter que acabar dizendo que vejo tudo.
MARIA ANGU: Atenção!, todos! Esta manada de ratazanas descende por linha reta dos ratões que se criaram na arca de Noé. Alguns são brancos, outros são negros, alguns azuis, mas todos são ratazanas.
PANCRÁCIO REPOLHO: Aiaiaiaiai! Cuidado, querida. Ratos! Olha que não são poucos, são mais de mil!
JOANA CASTRADA: Eu é que sou infeliz porque um rato moreninho está subindo pela minha perna. Está subindo! Está nos joelhos! Aaaaai!
VICE-PREFEITO: Ainda bem que estou com esta calça apertada. Aqui não entra rato nenhum, por menor que seja.
ZÉ PIMENTA: Agora, esta água que começa a cair é da fonte que dá origem e princípio ao rio Jordão. Toda a mulher a quem tocar no rosto se transformará numa beldade de prata. E a todo o homem, transformará a barba em ouro.
PANCRÁCIO REPOLHO: Tire o véu, querida! Assim! Oh, que água saborosa!
JOANA CASTRADA: Cuidado!, pai. Não se molhe.
VICE-PREFEITO: A água me entrou pelas costas até…
ESCRIVÃO: Pois eu, eu estou bem protegido.
PREFEITO: (à parte) Que diabo é isto que não sinto uma gota onde todos se afogam? Será que sou o único bastardo aqui?
VICE-PREFEITO: Tirem daqui este músico louco, se não vou embora daqui. Músico encapetado, que tira o som sem viola!
NANICO: Senhor Vice-Prefeito. Pois fique sabendo que toco como Deus me ensinou.
VICE-PREFEITO: Deus ia te ensinar alguma coisa?, bastardo duma figa. Vai-te daqui.
ESCRIVÃO: A água está fresquinha. Apesar de estar coberto, acho que molhou meus bigodes e eles devem estar dourados.
MARIA ANGU: Eis que surgem agora vinte leões e ursos famintos. Cuidem-se todos, apesar de fantásticos, poderão fazer estragos.
DELEGADO: Senhor Autor! Mas agora são ursos e leões?
VICE-PREFEITO: Senhor, chega! Faça sair figuras menos perigosas!
JOANA CASTRADA: Pois eu prefiro ursos e leões!
DELEGADO: Mas você acabou de ficar apavorada por causa dos ratos!
JOANA CASTRADA: Mas rato é sempre rato!
MARIA ANGU: Atenção, muita atenção, senhores. Esta maravilhosa ninfa que surge agora é a linda Salomé, que com uma dança conseguiu a cabeça de João Batista. Se alguém aqui souber dançar, venha, e nós veremos maravilhas.
TODOS: Prefeito! Dance com ela! Prefeito! O Prefeito vai dançar.
VICE-PREFEITO: Esta, sim. Vejam como rebola! Mas esta velhaca, sendo bastarda, pode pertencer ao Teatro?
ZÉ PIMENTA: Toda regra tem exceção. (ouve-se uma trombeta; entra um Soldado)
SOLDADO: Quem é o Prefeito?
PREFEITO: Eu. O que deseja?
SOLDADO: Que prepare alojamento para trinta homens dentro de meia hora! (sai)
VICE-PREFEITO: Acho que quem mandou estes homens foi Antanelo.
ZÉ PIMENTA: Não, não. Ele não pertence ao Teatro. Acho que é da tropa que estava acampada perto da cidade.
VICE-PREFEITO: Este Antanelo e seus trinta homens, incluindo esse músico aí, são todos uns sem-vergonhas. Pois fiquem sabendo que, se estes trinta homens entrarem aqui, serão recebidos a porradas!
ZÉ PIMENTA: Eu digo, senhor, que estes homens não são figuras do Teatro.
VICE-PREFEITO: Pois eu digo que sim, como todas as outras figuras que eu vi.
TODOS: Que nós todos, nós todos, vimos.
VICE-PREFEITO: Não estou dizendo que os senhores não viram. E você, músico, pare de tocar ou te quebro o focinho. (volta o Soldado)
SOLDADO: Então, senhor Prefeito. Onde serão alojados os homens?
VICE-PREFEITO: (para Zé Pimenta) Ah, quer dizer que quer mesmo trazer os trinta homens?
ZÉ PIMENTA: Sejam os senhores testemunhas de que ele quer me bater!
PREFEITO: Tenho pra mim que estes trinta homens não são homens de verdade!
SOLDADO: Não são homens de verdade? Está maluco?
VICE-PREFEITO: Sim, eles devem estar antanelados. Senhor Autor, faça sair a Salomé pra que este Soldado a veja e provaremos a ele de que deverá ir embora com os seus homens de mentira.
ZÉ PIMENTA: Salomé! Salomé! Chamam-te novamente. Dance graciosa, e que seu bailador te ajude.
VICE-PREFEITO: Aí, Prefeito. Mais depressa! Mais depressa! É uma loucura, mais, mais, mais!
SOLDADO: Parem com isto! Estão todos loucos?
ESCRIVÃO: Então não vê a donzela que dança?
SOLDADO: Que diabo de donzela?
TODOS: (entre risos e gargalhadas) Ele não vê ninguém! É filho batuta! Filho Batuta! Filho Batuta! Filho Batuta! Filho Batuta!
SOLDADO: Filho Batuta é a batuta que vos pariu!
TODOS: Filho Batuta! Filho Batuta! Filho Batuta!
SOLDADO: Parem com isto ou eu dou porrada em todo mundo!
VICE-PREFEITO: Pois fique sabendo que um filho batuta nunca é corajoso. Qualquer coisinha e ele se estraga todo.
TODOS: Filho Batuta! Filho Batuta! Filho Batuta! (o Soldado começa a bater em todos e todos fogem)
MARIA ANGU: O sucesso foi absoluto!
ZÉ PIMENTA: Amanhã voltaremos com outro espetáculo e sairemos tão triunfantes que o povo gritará: Viva eu! Viva eu! Viva eu! (pano)

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Segunda parte: Teatro como parte do aprendizado escolar. Uma experiência válida? (O Estado do Paraná, de 17 de novembro de 1974, página 27)

    O professor Jorge de Souza Teles, da Escola Raphael Hardy, resolveu tentar uma experiência entre seus alunos de Educação Artística. Com o tempo disponível de um semestre de aulas, montou uma peça teatral, adaptando “O Teatro das Maravilhas”, de Cervantes. Domingo passado levou seu trabalho ao palco do Centro de Criatividade. E o resultado foi bom. Pergunta-se: deveria ser incentivado o ensino do teatro na escola? Como isso viria contribuir para o desenvolvimento do aluno?

    A experiência do diretor Jorge de Souza Teles está aqui:

    Pergunta: Em que consistiu a experiência, de maneira geral?
    Resposta: Em 1972 foi feita com esta turma uma tentativa frustrada de se realizar, no final do ano, a encenação de uma poeça teatral. No ano passado nova tentativa, também sem resultado. Em agosto desse ano, a etapa final do 1o. grau, apresentei a possibilidade de ser feita uma última tentativa. A proposta  foi aceita. Dividi a turma em equipes para a escolha  do tema e posterior confecção do texto. O temo escolhido foi os tóxicos. Segundo os alunos, a peça terminaria de maneira muito real, sem o happy-end moralista e paternalista dos “teatrinhos” de fundo ético. Por sugestão da diretoria, o tema foi abandonado. Propus uma comédia clássica, de conteúdo profundo e de fácil montagem. Pediram que eu levasse um texto. Traduzi, adaptando para uma linguagem acessível o entremês El Retablo de las Maravillas, de Cervantes. O texto foi lido e foi aceito. Após a leitura, distribuimos os papéis. A escolha dos intérpretes procurou respeitar as características individuais, protegendo os mais tímidos com pequenos papéis e responsabilisando os mais desenvoltos com participações mais exigentes. Os ensaios ocorreram durante as aulas, duas vezes por semana, alpém de três ensaios no palco da Biblioteca Pública, para reconhecimento do local de apresentação. Foi feito um ensaio geral, para a liberação da encenação de quinta-feira e no dia 31 apresentaram-se para o publico.

    Pergunta: Que motivos impediram a conclusão dos trabalhos nos anos anteriores?
    Resposta: As duas experiências diferiram entre si. Em 1972 apresentei um texto enorme, composto exatamente para a turma, uma turma especialíssima, com 27 rapazes e 2 moças. Era ator demais. Levavam pra aula de Educação Artística a mesma má-vontade que todo aluno normal leva pras outras aulas. Eu era paciente e complacente e eles não entendiam minha atitude, aparentemente fraca. Se o clima geral era de desânimo, eu os abandonava. Se eles se animavam na outra aula, ensaiava-se. Era uma questão de filosofia de trabalho. Arte não existe sem liberdade. Acho que isto é tudo em Educação Artística: Arte não existe sem liberdade. Ninguém é criativo por coação. Ninguém cria o que quero que seja criado, mas o que quer criar.
    Baseado nesse princípio, não podia admitir atitudes ameaçadoras ou coercitivas: ou se quer fazer e se faz ou não se quer fazer e não se faz. Não se fez. No final do ano o trabalho capengava, comparado com as apresentações de outras duas turmas. Foi frustrante. Mas uma lição valiosa. Havia alunos muito interessados que se decepcionaram. Os responsáveis pelo fracasso, de certa forma, se responsabilizaram por essa decepção.
    No ano seguinte tentei um trabalho extra-classe, convocando voluntários. Os ensaios seriam no recreio e nos fins de semana. Começamos Vida e Morte Severina, de João Cabral. Disseram que era uma peça muito triste. Dora de Paula Soares, então no 6o. ano, sugeriu o Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare. Fiz uma tradução adaptada e começamos os ensaios. A proposta parecia excelente, o trabalho amadurecia com rapidez, mas logo surgiu um problema sério. O recreio era tempo insuficiente e não se conseguiu conciliar os horários dos 22 atores. O trabalho foi suspenso. Perdido? E a vivência em comum? E o contacto, ainda que incompleto, que os interessados tiveram com uma das mais graciosas criações de Shakespeare.

    Pergunta: Essa apresentação do Teatro das Maravilhas, seria, então, trabalho coroado de êxito?
    Resposta: De jeito nenhum. Para os alunos, de certa forma, foi. Para mim, não. Eles fizeram o máximo e chegaram a me surpreender na noite da estréia. Mas numa situação ideal, podia se fazer muito mais. Por exemplo: a trilha sonora. Eu selecionei e gravei a trilha: Berlioz, Strauss, Tchaikovski, Strawinski e Beatles. Por que a trilha sonora não foi selecionada pelos próprios alunos? Poderia, inclusive, ter sido gravada com eles, num trabalho de expressão rítmico-sonora. Não tivemos tempo pra isto.
    O mesmo se deu com o figurino. Esperei que se manifestassem, mas reparei que eles esperavam o trabalho pronto. Alguns se prontificaram, na meta final, a procurar livros com roupas do tempo de Cervantes. Como os livros não apareceram, eu desenhei o essencial, dando liberdade para improvisações e adaptações. Era preciso abreviar a estréia para não coincidi-la com o período das últimas provas.

    Pergunta: Na qualidade de “diretor”, como foi que o “professor” agiu?
    Resposta: Antes de tudo é preciso um relacionamento mais íntimo com os alunos. Pra um estranho, posso parecer um professor avacalhado, sem autoridade.
    Quanto à direção, seria ideal deixar que eles descobrissem sozinhos os próprios defeitos. Tive que chamar a atenção em alguns detalhes.  Dei orientação sobre a personalidade do papel. Algumas vezes indiquei o tom de voz. Mas o mínimo possível, o indispensável. Não interessava tanto o resultado, mas a criatividade desenvolvida no trabalho. É verdade que me peocupava com a visão geral da peça “enquanto espetáculo”. Eles esperavam isto de mim. Mas, quando podia, deixava que eles resolvessem o problema do modo mais próprio. Posso citar dois pequeninos detalhes muito curiosos. O Delegado precisa dizer à Maria Angu: “Minha Senhora, ele não é casado.” O aluno Carlos Pereira custou a descobrir uma entonação convincente. Não lhe indiquei pista nenhuma. Saiu. Zé Pimenta, por sua vez terminava a primeira cena dizendo: “Poeta! Putisgrila!” A palavra putisgrila me lembra alguém despreocupado com convenções, com ordem. Edison Pinto, porém, não aceitou a palavra. Tentou sucessivamente: “Pucha!” “Pocha!” “Purinhonha!”, “um silêncio expressivo” e não se deu por satisfeito. Eu tinha dito que ele faria como quisesse. Na apresentação ele não falou o putisgrila do texto. Aliás, ninguém esteve amarrado a roteiro. E sempre que pude, observei: “Vá falando desse jeito, até descobrir um melhor”.

    Pergunta: Qual teria sido o principal obstáculo no trabalho
    Resposta: O jovem é muito crítico. Não sente a mínima obrigação em aceitar o que não parte dele mesmo. Isto criou problemas. Alguém esquecia uma palavra e nove berravam em uníssino, quebrando aquela atmosfera que a peça exigia. Isto aconteceu em todos os ensaios. O ensaio geral foi surpresa, porque levado com toda a seriaedade. Foi por isso que a apresentação me espantou. Não esperava por aquilo.
    Outro problema, já sugerido anteriormente, é o fato de ser teatro na Escola. A Escola, enquanto se mantiver dentro dos padrões conhecidos, emperra o desenvolvimento de determinados trabalhos. Escola é quase pejorativo. Escola é desagradável, é chata, é maçante, um saco, etc. e tal. Apesar de ser um trabalho diferente, uma experiência quase que inteiramente desligada do ambiente, era um “trabalho escolar”. Penso que isto bloqueou bastante. Mas foi um problema superado. Eles entenderam, creio, que é possível uma experiência vital na Escola, mais do que simples experiência escolar. Essa teria sido a nossa vitória: ficou entendido que a experiência, realizada na sala de aula pode ultrapassar os limites didáticos e se integrar na própria vida do indivíduo.
    É curioso observar os reversos dessas duas medalhas. A crítica desenfreada que atrapalhou o desenvolvimento da atividade e a condição de ser trabalho escolar.
    Se, por um lado, eles tinham a liberdade da crítica, usaram a liberdade para desenvolver com segurança a participação na experiência. Dois se abstiveram. Criou-se uma atmosfera de abertura total. Este termo, abertura, é meio modismo. Não encontro um mais próprio.
    Assim, também, a mesma Instituição que, no meu ver, emperrou a liberdade absoluta, a Escola, foi o elemento que tornou possível a experiência. A Escola Raphael Hardy nunca pediu conta dos trabalhos fracassados e sempre gozei do privilégio de poder argumentar em torno de minhas atividades.

    Pergunta: Existe uma tendência atual, entre os professores de Educação Artística, a rejeitar o “espetáculo” dado por estudantes. Como você se defende diante da argumentação desses educadores?
    Resposta: Eu conheço os argumentos e admito que, em certos casos, eles são válidos. Acho que dá pra conciliar os prós e os contras. É como alguém que não sofre do estômago e deixa de tomar café porque café faz mal “pra quem sofre do estômago”. Vamos por partes.
    Alega-se que o trabalho não é espontâneo. Talvez não o seja pra crianças pequenas, não pra adolescentes e jovens. Alvos da crítica geral, ninguém se exibiu, mas procurou desenvolver o potencial de cada personagem.
    O papel é dito de maneira formal, dizem, ensaiado pelo professor e limitado pelo texto e pela marcação. Acho que depende do professor. Além do mais, o teatro não é mesmo um texto e uma marcação ensaiados pelo diretor? Depende do diretor…
    A platéia é de pais complacentes! Geralmente, sim. Pergunto se também não somos, de modo geral, complacentes com os Robertos Carlos e os Secos e Molhados da vida!
    Penso que o ideal seria tirar de cada atividade o que ela de melhor oferece. Quando fazemos o jogo dramático, visamos a espontaneidade, o improviso, a liberação de frustrações e tensões. Com o espetáculo, pretendemos a concentração de energias em torno de um objetivo comum, a criação de uma realidade total a partir de quatro folhas de papel, o contacto direto com uma das formas mais antigas e resistentes da cultura da humanidade!
    Isto não seria suficiente?    
    O fato de eu achar válido não quer dizer nada. O que acham os alunos? Em que se resumiu a experiência para eles?
    Numa aula posterior, após a apresentação na Biblioteca, foram feitas reflexões individuais em torno do trabalho do semestre. Eles falam o suficiente.

    William Bufara:
    O teatro foi uma experiência muito boa porque eu senti o clima de uma estréia e do esforço de todos para conseguir formar algo que interessasse a todos.

    Edison Pinto:
    Para mim, foi uma experiência nova e legal. Eu, na minha opinião, me adaptei perfeitamente e, pelo menos na estréia, espero ter cumprido com o papel de Zé Pimenta.

    Sérgio Zem:
    Pra mim, a apresentação do “Teatro das Maravilhas” foi uma experiência muito bacana. Antes de entrar no palco a gente fica com medo, eu, por exemplo, fiquei tremendo durante toda a primeira parte da peça, mas na segunda já havia cessado o nervosismo, e garanto que numa segunda apresentação estarei bem mais calmo. O que acontece é que não se sabe ao certo se haverá sucesso, ou então se algum colega hesitará um pouco, ou se se atrapalhará com o texto, estará tudo perdido, e há também o medo de errar.

    Carlos Pereira:
    No começo achei meio chato participar de uma peça, não me acostumava com a turma e não participava muito. Mas foi passando o tempo e fui me acostumando com a turma. Comecei a achar legal. Cada um fazia seu papel, bem ou mal, e a questão é que a peça saiu e, pelas críticas, não foi tão mal. O teatro para mim ajudou um pouco com os colegas. Na estréia estava mais ou menos calmo. Sei que não falava muito alto, pois não conseguia. Meu desembaraço melhorou mais, acho que valeu a pena participar da peça.

    Ivan Luiz Bittencourt:
    A peça para mim foi uma nova experiênca. Nunca pensei que eu fosse capaz de estrear em uma peça, mesmo sendo infanto-juvenil. Desde o primeiro ensaio eu já estava com medo do público, mas na hora H eu senti que não era aquela guerra entre o público e o ator.

    Sérgio D. Urquiza:
    O teatro foi muito legal para unir a turma fora do colégio. O papel que eu fiz foi o da Joana Castrada. Realmente foi muito interessante, pois ninguém queria fazê-lo. Foi então que me candidatei só pra ver no que dava. A única coisa que era chata era a gozação da turma em cima de mim, apesar de eu não me tocar muito com isso, pois só teme quem é.

    Rodrigo Pimpão:
    Pra mim o teatro não influenciou muito. Não é que tenha sido ruim e nem outra coisa. Mas é que eu sei que não serei artista. Eu gostei muito de representar mas não por amor à àrte, mas sim por ter achado “jóia”, por ter me alegrado.

    Denis Lewis:
    Essa experiência, nova, por sinal, em minha vida, trouxe muitos benefícios em vários pontos. Esse papel de “Nanico” do qual muito gostei, trouxe-me várias experiências positivas. No entanto acho que não desempenhei o papel convenientemente, pois houve muitas falhas minhas. Um aspecto positivo, considerei o de poder notar como se desempenhavam os outros papéis.

    Sylvana Souza:
    Minha experiência no teatro foi super válida. Logo de início, não me sentia muito entusiasmada porque estávamos na fase de decorar os papéis e a situação ficou meio monótona. Porém, logo já estava com o papel de cor, sem ter precisado dormir em cima do roteiro. A parte dos ensaios foi uma das mais difíceis pois tinha que aprender como agir em cena, os tons de voz, gestos, e fazer tudo para que não parecesse muito teatral e sim mais natural. Mesmo depois do ensaio geral, meu maior medo era de que o pessoal (público) não entendesse a peça pois é fantástica demais. No dia da apresentação, estava nervosíssima e na hora em que o Jorge disse que ia começar, minha vontade era de sair dali. Isto me pareceu um tanto ridículo, depois de tanto ensaio eu estar naquele estado nervoso. Bem, o que interessa é que numa hora a cortina abriu e eu tive que entrar em cena. Tudo saiu muito bem, e a partir de algum tempo, o nervoso sumiu. A crítica (a maioria) gostou, o que foi ótimo pra gente, uma vez que depois de tanta tentativa pro teatro, esta foi a única que deu certo.

    João Eduardo Freitas:
    A peça ensinou-me muita coisa. Nós sempre sabemos criticar mas quando a crítica “atua sobre nós” é muito diferente. Aprendi a dar valor ao trabalho dos outros e ao meu também. A turma uniu-se mais e apesar das gozações ela compreendeu-se mutuamente. Aprendi a aceitar mais os erros dos outros pois antes eu não aceitava. Gostei muito pouco do meu papel (Escrivão), pois ele não tem iniciativa própria, esconde-se. É o tipo de cidadão que age fazendo as coisas que os outros fazem.

    Luis Artur Oswald:
    Não participei. Se eu quisesse, poderia entrar no elenco, mas foi melhor assim. Não fiquei sentido, porque acho que não tenho talento e assim sendo é melhor eu não participar.

    Aluísio von Zuben:
    Quando cheguei uns dias atrasados das férias, o teatro já havia sido iniciado. Aproveitei a situação pra me servir de pretexto, assim não participei. Não lamentei isso porque se eu tivesse entrado iria atrapalhar. E por isso fiquei atrapalhando de fora do teatro.

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    Não acredito que tenham escrito isto para me agradar. Eles não fariam nada apenas por me agradar e penso que tenho, por isso mesmo, o direito de me considerar um professor realizado.

    (Observação acrescentada hoje, 2010: Luis Artur e Aluísio não atuaram, realmente. Fizeram a iluminação do espetáculo).

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Terceira parte: A censura.
                                                selo
                                                         selo

    Quando os milicos mandavam no país, assim se fazia teatro:
    
1. Pedia-se autorização à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), com sede no Rio de Janeiro, para tradução ou apresentação da peça.
2. Após a autorização, pagava-se a taxa de direitos autorais à SBAT local.
3. A SBAT local carimbava todas as páginas do texto.
4. Encaminhava-se esse texto carimbado a Brasília, para obtenção do selo de liberação da peça.
5. Requeria-se à Delegacia de Diversões Públicas local a liberação do espaço de apresentação, indicando-se a data do ensaio geral, feito especialmente para o censor.
6. Após o ensaio, durante o qual o censor conferia cortes de textos, etc, recebia-se desse funcionário a liberação para a apresentação da peça.

    No caso em questão, um comentário:
    
o corte

    Estudantes entre 14 e 16 anos não puderam falar no palco a expressão “filho batuta”, abrandamento eufemístico que criei para o original “filho da puta”, expressão, esta sim, pertencente ao dia-a-dia de todos eles. Os milicos tinham um zelo feroz na defesa dos bons costumes. Falar filho batuta não podia.

    Torturar e matar ou fazer desaparecer estudantes com alguns anos a mais… podia.

Campo Largo, 17 de julho de 2010.

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