Fábulas
Fábulas 8, 9, 10, 11, 12,13 e 14
08 – O velho, o menino e a mulinha
O velho chamou o filho e disse:
– Vá ao pasto, pegue a mulinha e apronte-se para irmos à cidade, que quero vendê-la.
O menino foi e trouxe a mula. Passou-lhe a raspadeira, escovou-a e partiram os dois a pé, puxando-a pelo cabresto. Queriam que ela chegasse descansada para melhor impressionar os compradores.
De repente:
– Esta é boa! – exclamou um viajante ao avistá-los. – O animal vazio e o pobre velho a pé! Que despropósito! Será promessa, penitência ou caduquice?…
E lá se foi, a rir.
O velho achou que o viajante tinha razão e ordenou ao menino:
– Puxa a mula, meu filho. Eu vou montado e assim tapo a boca do mundo.
Tapar a boca do mundo, que bobagem! O velho compreendeu isso logo adiante, ao passar por um bando de lavadeiras ocupadas em bater roupa num córrego.
– Que graça! – exclamaram elas. – O marmanjão montado com todo o sossego e o pobre menino a pé… Há cada pai malvado por este mundo de Cristo… Credo!…
O velho danou e, sem dizer palavra, fez sinal ao filho para que subisse à garupa.
– Quero só ver o que dizem agora…
Viu logo. O Izé Biriba, estafeta do correio, cruzou com eles e exclamou:
– Que idiotas! Querem vender o animal e montam os dois de uma vez… Assim, meu velho, o que chega à cidade não é mais a mulinha; é a sombra da mulinha…
– Ele tem razão, meu filho, precisamos não judiar do animal. Eu apeio e você, que é levezinho, vai montado.
Assim fizeram, e caminharam em paz um quilômetro, até o encontro de um sujeito que tirou o chapéu e saudou o pequeno respeitosamente.
– Bom dia, príncipe!
– Por quê, príncipe? – indagou o menino.
– É boa! Porque só príncipes andam assim de lacaio à rédea…
– Lacaio, eu? – esbravejou o velho. – Que desaforo! Desce, desce, meu filho, e carreguemos o burro às costas. Talvez isto contente o mundo…
Nem assim. Um grupo de rapazes, vendo a estranha cavalgada, acudiu em tumulto, com vaias:
– Hu! Hu! Olha a trempe de três burros, dois de dois pés e um de quatro! Resta saber qual dos três é o mais burro..
– Sou eu! – replicou o velho, arriando a carga. – Sou eu, porque venho há uma hora fazendo não o que quero, mas o que quer o mundo. Daqui em diante, porém, farei o que me manda a consciência, pouco me importando que o mundo concorde ou não. Já vi que morre doido quem procura contentar toda gente…
*****
– Isto é bem certo – disse Dona Benta. – Quem quer contentar todo mundo não contenta ninguém. Sobre todas as coisas há sempre opiniões contrárias. Um acha que é assim, outro acha que é assado.
– E como então a gente deve fazer? – perguntou a menina.
– Devemos fazer o que nos parece mais certo, mais justo, mais conveniente. E para nos guiar temos a nossa razão e a nossa consciência. Aquela fita que vimos no cinema da cidade tem um título muito sábio.
– Qual, vovó?
– E ISTO ACIMA DE TUDO…
– Não estou entendendo…
– Esse título é a primeira parte de um verso de Shakespeare: “E isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo”. Bonito, não?
– Lindo, vovó! – exclamou Pedrinho entusiasmado. – E vou adotar esse verso como lema da minha vida. Quero ser fiel a mim mesmo – e o mundo que se fomente…
09 – O pastor e o leão
Um pastorzinho, notando certa manhã a falta de várias ovelhas, enfureceu-se, tomou da espingarda e saiu para a floresta.
– Raios me partam se eu não trouxer, vivo ou morto, o miserável ladrão das minhas ovelhas! Hei de campear dia e noite, hei de encontrá-lo, hei de arrancar-lhe o fígado…
E assim, furioso, a resmungar as maiores pragas, consumiu longas horas em inúteis investigações. Cansado já, lembrou-se de pedir socorro aos céus.
– Valei-me, Santo Antônio! Prometo-vos vinte reses se me fizerdes dar de cara com o infame salteador.
Por estranha coincidência, assim que o pastorzinho disse aquilo apareceu diante dele um enorme leão, de dentes arreganhados.
O pastorzinho tremeu dos pés à cabeça; a espingarda caiu-lhe das mãos; e tudo quanto pôde fazer foi invocar de novo o santo.
– Valei-me, Santo Antônio! Prometi vinte reses se me fizésseis aparecer o ladrão; prometo agora o rebanho inteiro para que o façais desaparecer.
No momento do perigo é que se conhecem os heróis.
*****
– Pois eu escorava o leão! – disse Pedrinho. – Se estivesse com uma boa espingarda escorava – ah, isso escorava! Levava a espingarda à cara, fazia pontaria e pum!…
– E se errasse? – interpelou a menina.
– Se errasse, pior para mim. Correr é que não corria, porque que adianta correr de leão? Ele pega mesmo…
Dona Benta riu-se da valentia e falou:
– Por essa razão é que a “moralidade” da fábula diz que é no momento do perigo que se conhecem os heróis. Se você não fugia, então é que é mesmo um herói. Mas o tal pastorzinho não era…
– E foi bom que não fosse – disse a menina.
– Por quê?
– Porque se ele fosse um herói como Pedrinho, não podia haver esta fábula.
10 – Burrice
Caminhavam dois burros, um com carga de açúcar, outro com carga de esponjas.
Dizia o primeiro:
– Caminhemos com cuidado, porque a estrada é perigosa.
O outro redarguiu:
– Onde está o perigo? Basta andarmos pelo rastro dos que hoje passaram por aqui.
– Nem sempre é assim. Onde passa um pode não passar outro.
– Que burrice! Eu sei viver, gabo-me disso, e minha ciência toda se resume em só imitar o que os outros fazem.
– Nem sempre é assim, nem sempre é assim… – continuou a filosofar o primeiro.
Nisto alcançaram o rio, cuja ponte caíra na véspera.
– E agora?
– Agora é passar a vau.
O burro do açúcar meteu-se na correnteza e, como a carga se ia dissolvendo ao contato da água, conseguiu sem dificuldade pôr pé na margem oposta.
O burro da esponja, fiel às suas ideias, pensou consigo:
– Se ele passou, passarei também – e lançou-se ao rio.
Mas sua carga, em vez de esvair-se como a do primeiro, cresceu de peso a tal ponto que o pobre tolo foi ao fundo.
– Bem dizia eu! Não basta querer imitar, é preciso poder imitar – comentou o outro.
*****
– Que é passar a vau? – perguntou Pedrinho.
– É uma expressão antiga e muito boa. Quer dizer “vadear um rio”, passar por dentro da água no lugar mais raso.
– E por que a senhora disse “redarguiu”? Não é pedantismo? – quis saber a menina.
– É e não é – respondeu Dona Benta. – Redarguir é dar uma resposta que é também pergunta. Bonito, não?
– Por que é e não é? Como uma coisa pode ao mesmo tempo ser e não ser?
– É pedantismo para os que gostam da linguagem mais simplificada possível. E não é pedantismo para os que gostam de falar com grande propriedade de expressão.
– E que é propriedade de expressão? – quis saber Narizinho.
– Propriedade de expressão – explicou Dona Benta – é a mais bela qualidade de um estilo. É dizer as coisas com a maior exatidão. Ainda há pouco Emília falou no “ferrinho do trinco da porta”. Temos aqui uma “impropriedade de expressão”. Se ela dissesse “lingueta do trinco” estaria falando com mais propriedade.
– Mas é ou não é ferrinho? – redarguiu Emília.
– A lingueta do trinco é um ferrinho, mas um ferrinho não é lingueta – pode ser mil coisas.
11 – O julgamento da ovelha
Um cachorro de maus bofes acusou uma pobre ovelhinha de lhe haver furtado um osso.
– Para que furtaria eu esse osso – alegou ela – se sou herbívora e um osso para mim vale tanto quanto um pedaço de pau?
– Não quero saber de nada. Você furtou o osso e vou já levá-la aos tribunais. E assim fez.
Queixou-se ao gavião-de-penacho e pediu-lhe justiça. O gavião reuniu o tribunal para julgar a causa, sorteando para isso doze urubus de papo vazio. Comparece a ovelha. Fala. Defende-se de forma cabal, com razões muito irmãs das do cordeirinho que o lobo em tempos comeu.
Mas o júri, composto de carnívoros gulosos, não quis saber de nada e deu a sentença:
– Ou entrega o osso já e já, ou condenamos você à morte!
A ré tremeu: não havia escapatória!… Osso não tinha e não podia, portanto, restituir; mas tinha vida e ia entregá-la em pagamento do que não furtara.
Assim aconteceu. O cachorro sangrou-a, espostejou-a, reservou para si um quarto e dividiu o restante com os juízes famintos, a título de custas… Fiar-se na justiça dos poderosos, que tolice!… A justiça deles não vacila em tomar do branco e solenemente decretar que é preto.
*****
– Esta fábula – disse Dona Benta – é muito dolorosa. É um verdadeiro retrato da justiça humana; e se eu fosse explicar a lição que existe aqui, levaria um ano. Não vale a pena. Vocês vão viver, vão crescer, vão conhecer os homens – e irão percebendo a profunda e triste verdade desta fabulazinha…
– Que quer dizer “maus bofes”, vovó?
– Quer dizer de má índole, de maus sentimentos, e foi por ser assim que o cachorro acusou a pobre ovelha.
– E os urubus, juízes também, eram de maus bofes?
– Não. Esses eram apenas maus juízes, dos que julgam de acordo com certos interesses, em vez de julgar de acordo com a justiça.
– Que interesse tinham eles no caso?
– Estavam com fome e queriam comer a ovelha. Emília protestou. Achou que nesse ponto a fábula não tinha “propriedade gastronômica”.
– Por quê?
– Porque urubu não come carne fresca, só come carne podre…
12 – O burro juiz
A gralha começou a disputar com o sabiá afirmando que sua voz valia mais que a dele. Como as outras aves se rissem daquela pretensão, a barulhenta matraca de penas gralhou furiosa:
– Nada de brincadeiras! Isto é uma questão muito séria, que deve ser decidida por um juiz. O sabiá canta, eu canto, e uma sentença decidirá quem é o melhor cantor. Topam?
– Topamos! – piaram as aves. – Mas quem servirá de juiz?
Estavam a debater esse ponto quando zurrou ao longe um burro.
– Nem de encomenda! – exclamou a gralha. – Está lá um juiz de primeiríssima ordem para julgamento da música, porque nenhum animal possui orelhas daquele tamanho. Convidemo-lo para julgar a causa.
O burro aceitou o juizado e veio postar-se no centro da roda.
– Vamos lá, comecem! – ordenou ele.
O sabiá deu um pulinho, abriu o bico e cantou. Cantou como só cantam os sabiás, repinicando os trinos mais melodiosos e límpidos.
– Agora eu! – disse a gralha, dando um passo à frente. E abrindo a bicanca matraqueou um berreiro de romper os tímpanos aos próprios surdos.
Terminada a prova, o juiz abanou as orelhas e deu sentença:
– Dou ganho de causa a Dona Gralha, que canta muito melhor que Mestre Sabiá.
Quem burro nasce, togado ou não, burro morre.
*****
– Estou compreendendo – disse Narizinho. – A gralha escolheu para juiz o burro justamente porque um burro não entende nada de música – apesar das orelhas que tem. Essa gralha era espertíssima…
– Pois se escolhesse o nosso Burro Falante – disse Emília – quem levava na cabeça era ela. Impossível que o Conselheiro não desse sentença a favor do sabiá! Já notei isso. Sempre que um passarinho canta num galho, ele espicha as orelhas e fica a ouvir, com um sorriso nos lábios…
Dona Benta riu-se e deixou passar a fábula sem nenhum comentário.
13 – Os carneiros jurados
Certo pastor, revoltado com as depredações do lobo, reuniu a carneirada e disse:
– Amigos! É chegado o momento de reagir. Sois uma legião e o lobo é um só. Se vos reunirdes e resistirdes de pé firme, quem perderá a partida será ele, e nós nos veremos para sempre libertos da sua cruel voracidade.
Os carneiros aplaudiram-no com entusiasmo e, erguendo a pata dianteira, juraram resistir.
– Muito bem! – exclamou o pastor. – Resta agora combinarmos o meio prático de resistir. Proponho o seguinte: quando a fera aparecer, ninguém foge; ao contrário: firmam-se todos nos pés, retesam os músculos, armam a cabeça, investem contra ela, encurralam-na, imprensam-na; esmagam-na!…
Uma salva de bés selou o pacto e o dia inteiro não se falou senão na tremenda réplica que dariam ao lobo.
Ao anoitecer, porém, quando a carneirada se recolhia ao curral, um berro ecoou de súbito:
– O lobo!…
Não foi preciso mais: sobreveio o pânico e os heróis jurados fugiram pelos campos afora, tontos de pavor.
Fora rebate falso. Não era lobo; era apenas sombra de lobo!…
Ao carneiro só peças lã.
*****
– Por que só pedir lã aos carneiros? – disse Emília. – Podemos também pedir-lhes costeletas. Dos carneiros é só o que interessa Tia Nastácia, as costeletas…
Dona Benta explicou que o principal do carneiro não era a carne, e sim a lã. –
Carne todos os animais têm – disse ela – e lã, só o carneiro. Lã em quantidade, que dá para vestir todos os homens da Terra, só o carneiro. É por isso que o autor desta história fala em lã, e não em carne. A moralidade da fábula é que não devemos exigir das criaturas coisas que elas não podem dar. Se pedimos lã a um carneiro, ele no-la dá muita e excelente. Mas se pedimos coragem, ah, isso ele não dá nem um pingo.
– Por quê?
– Porque não tem. Não há bichinho mais tímido, mais sem coragem que o carneiro. Quando queremos falar de uma pessoa muito pacífica, dizemos: “É um carneiro!”.
14 – O touro e as rãs
Enquanto dois touros furiosamente lutavam pela posse exclusiva de certa campina, as rãs novas, à beira do brejo, divertiram-se com a cena.
Uma rã velha, porém, suspirou.
– Não se riam, que o fim da disputa vai ser doloroso para nós.
– Que tolice! – exclamaram as rãzinhas. – Você está caducando, rã velha!
A rã velha explicou-se:
– Brigam os touros. Um deles há de vencer e expulsar da pastagem o vencido. Que acontece? O animalão surrado vem meter-se aqui em nosso brejo e ai de nós!…
Assim foi. O touro mais forte, à força de marradas, encurralou no brejo o mais fraco, e as rãzinhas tiveram de dizer adeus ao sossego. Inquietas sempre, sempre atropeladas, raro era o dia em que não morria alguma sob os pés do bicharoco.
É sempre assim: brigam os grandes, pagam o pato os pequenos.
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– Estou achando isto muito certo – disse Narizinho. – Os fortes sempre se arrumam lá entre si – e os fracos pagam o pato.
– É a lei da vida, minha filha. A função do fraco é pagar o pato. Nas guerras, por exemplo, brigam os grandes estadistas – mas quem vai morrer nas batalhas são os pobres soldados que nada têm com a coisa.
– Pagar o pato! Donde viria essa expressão?
– Eu sei – berrou Emília. – Veio de uma fabulazinha que vou escrever. “Dois fortes e um fraco foram a um restaurante comer um pato assado. Os dois fortes comeram todo o pato e deram a conta para o fraco pagar…”