Monteiro Lobato

Aventuras de Hans Staden

              O homem que naufragou nas costas do Brasil em 1.553 e esteve oito meses prisioneiro dos índios tupinambás; narradas por Dona Benta aos seus netos Narizinho e Pedrinho.

 

Capítulos 1 e 2

01 – Quem era Hans Staden

         Dona Benta sentou-se na sua velha cadeirinha de pernas serradas e principiou:

         – Hans Staden era um moço natural de Homberg, pequena cidade do Estado de Hesse, na Alemanha.

         – De S? – exclamou Pedrinho, dando uma risada. – Que engraçado!

         – Não atrapalhe – disse Narizinho. – Assim como em São Paulo há a Freguesia de Nossa Senhora do Ó, bem pode haver o Estado de S na Alemanha. Em que o O é melhor que o S?

         – Não digam tolices – interrompeu Dona Benta. – Esse Estado da Alemanha escreve-se em português h e s s e, diz-se Hessen em alemão. Nada tem que ver com a letra S.

         Depois desta lição Dona Benta continuou:

         – O moço Staden tinha o temperamento aventureiro; não se contentava com o sossego da cidade natal. Queria ver o mundo, viajar, cortar os mares, e insistia nisso por mais que seu pai lhe dissesse que boa romaria faz quem em casa fica em paz.

         Um dia resolveu sair de Homberg.

         – Adeus, meu pai! Não nasci para árvore. Quero voar, conhecer o mundo. Adeus!

         – Pois vai, meu filho. Todos nós temos um destino na vida; se o teu destino é viajar, que se cumpra.

         Hans partiu para a cidade de Bremen e de lá para a Holanda, onde, no porto de Campon, encontrou várias naus que se apresentavam com destino ao reino de Portugal. O moço embarcou em uma delas e chegou a Setúbal depois de quatro semanas de travessia.

         – Quatro semanas! – exclamou Pedrinho. – Que carroça!

         – Naquele tempo de navegação a vela as viagens dependiam dos ventos, sendo por isso incertas e demoradas; Fazia-se em meses o que hoje se faz em dias.

         Hans esteve algum tempo em Setúbal, com certeza provando o gostoso vinho moscatel que lá fabricam. Depois tomou o caminho de Lisboa. Sua intenção era seguir para as índias numa das frotas que dali costumavam zarpar.

         – Zarpar? – interrompeu Pedrinho. – Por que fala assim tão difícil hoje, vovó?

         – Não estou falando difícil, Pedrinho. Há certas expressões que se chamam “técnicas” e que vocês precisam ir aprendendo. Zarpar se diz quando um navio ou uma esquadra sai dum porto. É uma expressão técnica, isto é, de sentido exato.

         – Muito bem. Continue. Achou ele navio que o levasse para as índias?

         – Não teve sorte. Hans não encontrou nenhum navio com destino às índias. Em vista disso engajou-se como artilheiro num barco do Capitão Penteado, que se destinava ao Brasil. Essa nau era mercante, mas ia armada de canhões, como se fosse navio de guerra, e levava ordem do rei para atacar os barcos franceses encontrados pelo caminho.

         – Por que isso, vovó?

         – Portugal e França estavam em luta por causa das terras novas descobertas em 1.500, e era no mar que justavam contas.

A França julgava-se com tanto direito de explorar essas terras como Portugal, mas tais terras pertenciam a Portugal e Espanha que haviam tomado posse delas antes dos outros. Terra naquele tempo era de quem primeiro a pegava.

         Mas a França não concordava com isso e o seu rei nessa época, Francisco I, havia dito em certa ocasião:

         – Eu quero que me mostrem o testamento de Adão que repartiu o Novo Mundo entre o rei da Espanha e o rei de Portugal, pondo-me fora da partilha.

         Era por esse motivo que os franceses e portugueses se atracavam no mar, embora não existisse guerra declarada entre as duas nações.

         Mas a nau em que ia o nosso Staden partiu de Lisboa, seguida de outra menor, e foi ter à ilha da Madeira, onde já se produzia muito vinho e açúcar. Em Funchal, porto da ilha, a frota ancorou para receber víveres. Em seguida tomou o rumo das costas da Berberia.

         – Berberia ou Barbaria, vovó? – perguntou o menino. – Não quer dizer terra dos bárbaros?

         – Não, meu filho. Quer dizer terra dos berberes, nome genérico dado aos habitantes do norte da África. Talvez a palavra berbere venha de bárbaro. Os dicionários têm dúvidas a respeito.

Os navios foram ter ao porto de Arzila, cidade que os portugueses tinham tomado aos berberes e que depois perderam.

         Por informação de pescadores espanhóis o Capitão Penteado soubera que por lá andavam navios corsários, em comércio com esses mouros, e tratou de dar-lhes caça.

         De fato, encontrou um e imediatamente o atacou, mas a tripulação do corsário teve tempo de tomar os botes e fugir para terra. Os portugueses apossaram-se do navio, nele encontrando grande quantidade de açúcar, amêndoas, couro de cabrito, goma-arábica e tâmaras.

         – Que gostoso! – exclamou Pedrinho, lambendo os beiços.

Ele gostava muito de tâmara.

         – Mas era direito isso, vovó? – indagou a menina.

         – Ah, minha filha, a história da humanidade é uma pirataria que não tem fim. O mais forte, sempre que pode, depreda o mais fraco. Só quando a justiça for uma realidade, em vez de ser um ideal, é que as coisas mudarão de rumo.

         A nau vencedora levou a presa para a ilha da Madeira, donde o capitão mandou o navio menor a Lisboa, saber do rei o que devia fazer, visto como parte do carregamento pertencia a espanhóis, com quem os portugueses não estavam em guerra.

         – Foi o navio a Lisboa só para dar o recado? Imaginem!…

         – Que remédio! Não havia outro meio; não era como hoje, que a radiotelegrafia põe os barcos em comunicação instantânea com a terra sempre que é preciso. O navio foi e voltou. El-rei mandou dizer que ia estudar o assunto; Penteado que deixasse a presa na ilha e continuasse a viagem.

         Em seguida o Capitão Penteado voltou para Arzila, na esperança de apanhar nova presa. Esse cálculo falhou. Sobreveio fortíssima tempestade, que arrojou a nau a quatrocentas milhas dali, para os lados do Brasil.

         – Quantos metros tem a milha, vovó? – indagou Pedrinho.

         – A milha varia muito, de país para país. É medida do tempo dos romanos, entre os quais valia mil passos. Mas como isso de passo cada povo o tem maior ou menor, conforme o comprimento das pernas, há milhas de 1.609 metros, como a inglesa, e milhas de mais de 8.000 metros, como a húngara. Mas hoje está generalizada a milha marítima de 1.852 metros.

         – É uma danada, esta vovó! Parece um livro aberto – disse o menino, entusiasmado com a ciência da velha.

         – Continue, vovó – pediu Narizinho, mais interessada na navegação de Hans do que na elasticidade da milha.

         Dona Benta continuou:

         – As naus, em vista do avanço que o temporal lhes imprimira no rumo do Brasil, deixaram em paz as costas da Berberia e seguiram viagem para as terras de Cabral.

         Pelo caminho toparam grande quantidade de peixes-voadores. Erguiam-se do mar em cardumes para fugir à perseguição dos peixes maiores; voavam um bom pedaço e iam cair n’água, muito longe dos seus inimigos. Às vezes voavam à noite e vinham dar de encontro às velas e cordas dos navios; de manhã os marinheiros não necessitavam de pescar para o almoço; era só colhê-los no tombadilho. E assim foram os navios singrando até alcançarem a linha do equinócio.

         – Que é isso, vovó?

         – É o equador, meu filho. Já esqueceu a sua lição de cosmografia?

         Chegados ao equador houve um período de calma, isto é, sem brisas, de modo que os navios ficaram parados sobre as ondas, com grande padecimento dos marinheiros em vista do calor sufocante.

         Às vezes trovejava e caíam chuvas violentas; mas a calmaria sobrevinha de novo, enchendo de pavor a pobre marujada, porque o prolongamento daquela situação poderia trazer a todos o mais triste dos fins.

         Certa noite de chuva apareceram no costado dos navios muitas luzes mortas, coisa que Staden não tinha visto ainda. Onde batiam as vagas ficava a brilhar uma luz azul. Os marinheiros alegraram-se com o fenômeno, a que chamavam santelmo e diziam ser sinal de bom tempo.

         Assim foi. Quando raiou o dia principiou a soprar um vento favorável, que permitiu às naus prosseguirem na viagem.

         A 28 de janeiro (isso no ano de 1548) avistaram uma ponta de terra, que Hans soube ser o cabo de Santo Agostinho. Mais oito milhas de marcha e finalmente atingiram o porto de Olinda, depois de oitenta e oito dias de mar.

         – Mas a tal luz morta, vovó, que era? – quis saber Pedrinho, e Dona Benta explicou.

         – Trata-se de fosforescência, de certos bichinhos que boiam sobre as águas do mar aos bilhões de bilhões, numa verdadeira Via-láctea de massa viva. É a mesma fosforescência dos vaga-lumes, mas em animálculos extremamente pequenininhos…

         – Pare um pouco, vovó – pediu a menina. – Quero dar um pulo lá dentro para trazer a Emília. A coitadinha gosta tanto de ouvir histórias…

 

02 – A revolta dos índios

         Logo que a menina voltou, Dona Benta, já esquecida dos “animálculos”, prosseguiu:

         – A colônia de Pernambuco era governada por Duarte Coelho, a quem o Comandante Penteado foi logo apresentar-se. Duarte Coelho contou-lhe que estavam em má situação, em vista de se terem revoltado os selvagens daquela zona.

         – Por quê, vovó?

         – Porque os colonos haviam capturado e escravizado alguns selvagens. A raça vermelha, ou índia, nunca suportou a escravidão. Prefere a morte, e se não fosse a ganância dos brancos, quer portugueses, quer espanhóis, ganância que os levou a insistir na escravidão dos índios, não teria havido nas Américas os horrores que houve.

         Duarte Coelho pediu ao Capitão Penteado que o ajudasse naqueles apertos, indo com os seus homens guarnecer uma colônia de nome Iguaraçu (1), naquele momento cercada pelos índios. Essa colônia ficava a umas cinco milhas de Olinda.

         O capitão reuniu em um bote quarenta marinheiros e mandou remar para Iguaraçu, situada num braço de mar que avançava terra adentro.

         Lá encontraram noventa portugueses e uns trinta e tantos escravos, entre pretos e índios. Os selvagens sitiantes eram avaliados em oito mil.

         – Oito mil, vovó? Que horror! Um verdadeiro exército!…

         – “Avaliados” em oito mil, meu filho. As avaliações dos interessados em geral erram para mais. O compadre Teodorico, nosso vizinho, sempre avaliou o seu sítio em setenta alqueires. Veio o agrimensor, mediu e achou trinta…

         A praça de Iguaraçu era defendida apenas por uma estacada de madeira, que a fechava de todos os lados. Para além da estacada estendia-se a floresta, na qual os índios construíram dois redutos feitos de grossos troncos; ao pé desses redutos abriram trincheiras nas quais passavam o dia, só saindo para guerrilhar.

         Os índios conheciam imperfeitamente o poder das armas de fogo, e sempre que os portugueses davam uma descarga deitavam-se, convencidos de que assim se livrariam das balas.

De todas as bandas havia índios, de modo que ninguém podia sair da estacada sem ser flechado. Além disso os sitiantes atiravam as flechas para cima, calculando a curva de jeito que fossem cair verticalmente dentro da praça.

         – Eu punha uma panela de cobre na cabeça e queria ver! – disse Pedrinho, com cara de quem descobriu a pólvora.

         – Também usavam – continuou Dona Benta – flechas incendiárias, preparadas com algodão embebido em cera. Acendiam-nas e lançavam-nas contra os tetos das casas. E tanta certeza tinham de vencer aos portugueses, que já combinavam o modo de os devorar a todos numa grande festa.

         O cerco ia-se prolongando e as provisões começavam a escassear. Havia mandiocas junto à estacada, mas era impossível chegar até elas. Em vista disso o capitão de Iguaraçu ordenou que os quarenta marinheiros saíssem em dois barcos e fossem até à colônia de Itamaracá (2), a fim de trazer mantimentos.

         Os quarenta marinheiros partiram sem demora, encontrando o braço de mar atravancado de grandes árvores, derrubadas pelos índios. Foi preciso jeito para conseguirem passar.

         Vendo que a tranqueira tinha sido inútil para tomar-lhes o passo, os selvagens procuraram mais adiante asfixiá-los com a fumaça de grandes fogueiras erguidas nas margens, nas quais lançavam pimenta.

         – E esta, vovó – acudiu Pedrinho. – Então já conheciam o uso dos gases asfixiantes?

         – É para ver, meu filho, que nada há de novo sob o sol. Essa fumaça de pimenta, aliás, pouco adiantou: fez arder os olhos dos marinheiros mas não os impediu de, com o auxílio da maré, passarem além e alcançarem Itamaracá.

         Nessa colônia encontraram as provisões requeridas; encheram os botes e regressaram.

         Quando iam chegando a Iguaraçu viram que os selvagens não tinham desanimado de lhes atrapalhar a expedição. Haviam lançado à água novos troncos; além disso, cortaram rente ao chão duas árvores muito altas, que cresciam à beirinha d’água, mantendo-as de pé por meio de cipós, cujas pontas iam ter aos seus redutos. A intenção dos índios era deixar caírem as árvores no momento em que os barcos lhes passassem ao alcance.

         Os marinheiros, porém, foram felizes e conseguiram escapar da armadilha. Uma das árvores tombou um pouco atrás de um dos barcos, e a outra, talvez empurrada pelo vento, caiu do lado da terra.

         Restava a tranqueira da paulama derrubada na água, a qual oferecia um sério embaraço. Vendo a situação dura, os marinheiros pediram em altos brados o ajutório dos da praça. Mas os índios ergueram um tal berreiro que os sons se misturaram no ar e não foi possível ouvir-se em Iguaraçu o pedido de socorro.

         Apesar disso, como esses quarenta homens fossem dos mais esforçados, mesmo sem auxílio estranho puderam romper os tropeços e penetrar com as provisões na estacada.

         Este fato valeu a vitória para os portugueses. Os sitiantes desanimaram de vencê-los e propuseram uma paz que foi logo aceita, retirando-se em seguida para as suas tabas.

         O cerco de Iguaraçu havia durado um mês.

         Nada mais tinham que fazer ali os marinheiros de Penteado. Regressaram, pois, a Olinda, onde receberam muitos agradecimentos do governador. E como já os navios estivessem carregados, desfraldaram as velas e partiram.

         – Coitada da Emília! – exclamou Narizinho, beijocando a boneca. – Está com cara de quem não entendeu coisa nenhuma, esta boba…

1- Canoa grande.

2- Pedra de maracâ.

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