a espécie humana 0, 1, 2, 3 e 4

A Espécie Humana – capítulos 0. 1. 2. 3 e 4

(nota: a partir de hoje, 3 de julho de 2012, toda semana apresentarei 5 capítulos deste livro.)

0.   

    pode o velho conviver com o adulto que ele foi um dia?  ou com o menino?, cuja lembrança já está quase de todo apagada!

    o tempo é um espelho.  posso ver dentro desse espelho um menino distraído, mas não posso adverti-lo.  posso ver também um adulto ocupado, mas não posso consolá-lo.   

    e posso estender a mão para tocar o velho que me olha.  mas as pontas de meus dedos tocarão pontas de dedos de uma criatura que só existe nesse tempo de espelho.   

    e os três, o menino, o homem e o velho, com seus olhares tristes, me falarão daquilo que é irremediável.   

    ai de nós!, os vivos.   

1.   

a casa do jorge

ilustração: a casa do jorge, tela e óleo de Aluísio von Zuben (1979, 70cmx40cm)

    o entardecer silenciou as vozes do mundo.  os últimos pássaros teimosos se aninham em seus berços de galhinhos e plumagem.  no meio do silêncio eu espero.   
    então, sentindo que a vizinha noite está prestes a bater à minha porta, vou lá fora, abro a casinha de lenha, encho três caixas e as trago para a cozinha.   
    preciso insistir com meu fogo.  lento, ele se vai mostrando, tímido, inquieto, brincalhão, e de meu sopro sai sua vida.  ele se espalha e ilumina.  acendo as velas.   
    meu coração está cheio de ansiedade.  olho a porta da casa.  daqui a pouco entrarão meu filho e meu pai.  o menino e o velho estão para chegar e virão para ficar muito tempo.  por isso dói meu coração com esse palpitar de estranha e invencível alegria.   
    porque vem meu filho, por isso limpei vidros e arejei a casa.  porque vem meu pai, por isso lavei calçadas.  porque eles se chegam juntos, e desta vez para ficar muito tempo, por isso areei panelas e as transformei em espelhos de encantamentos.  por que eles se chegam daqui a pouco.   
    e é com o coração transbordando que corto e descasco legumes e preparo uma sopa, uma sopa cheia de saudades de outros tempos em que nós três estávamos juntos.  preparo a sopa que nós três preferimos: pedacinhos de mandioca soltos num caldo grosso e de tempero suave.   
    meus olhos voltam à porta à espera daqueles que virão.  tudo parou atento em torno a mim: o chão, os vidros, o calor que cresce lento, as panelas como que acesas; só o fogo inquieto não se segura na sua expectativa, dançando e esticando línguas tagarelas à porta de entrada.   
    eu me sento e espero.  quero estar tranqüilo porque sei que estou feliz.  mas meu coração, meu um só coração, para o que sou de pai e de filho, meu coração não aguenta a demora.   
    enquanto espero, dançam nas paredes as sombras de todas as coisas.  minha sombra espera.   
    eis que ladram lá fora os cães lá fora, na barriga da noite.  lá fora.  e uivam.   
    esse uivo sobe até os ventos e os ventos empurram as nuvens e um grande buraco no céu mostra a azulada lua nua.  meu pai e meu filho, iluminados, pairam à minha frente.  enrolados em cobertores, com seus sacos cheios da preciosa bagagem.  avançam cansados.  a lua se escondeu novamente e nós três nos miramos com os olhares cheios de alma.   
    meu pai partiu o silêncio:
    estamos aqui, enfim.  e viemos pra ficar muito tempo.   
    três abraços num só abraço.  peguei o menino no colo.   
    como é que se faz quando se tem saudades?
    chora-se.  e prepara-se a volta.   
    apertei-o mais forte e beijei-o na testa.   
    entramos.  eu, para o menino:
    quer comer uma sopinha bem gostosa?
    não.  estou com sono.  quero fazer xixi e dormir.   
    foi ao banheiro, lavou o rostinho, urinou, puxou a descarga e voltou, aconchegando-se nas almofadas.   
    preparei o prato de meu pai.  ele se sentou e pôs-se a comer.  sentei-me junto ao menino e o peguei no colo novamente.  estive a olhar o velho.  iluminado pela metade, com um lado do rosto afogado na obscuridade e tendo a silhueta assim marcada pelo vermelho das chamas do fogão lá atrás, mais parecia uma pintura do espanhol.  no lugar da malignidade, porém, pairava sobre ele uma atmosfera sacra.   
    de onde saem os pais?, pensei.  e o menino disse:
    pai, fale alguma coisa pra alimentar o meu sonho.   
    vou então falar sobre a verdade.   
    o pai suspendeu a colher e pôs-se à escuta.   
    sua sopa vai esfriar se pára pra me ouvir.   
    ele sorriu e balançou a cabeça, negando.  agora era uma escultura olhando para a eternidade.   
    de olhos nos olhos de meu pai, abraçando o quente corpo de meu filho, principiei:


    
    2.   
    
    há verdades
    espalhadas pelo mundo.   
    umas escondidas e outras iluminadas e num pedestal.   
    algumas cheias de mentiras,
    outras contendo uma apenas verdade.   
    algumas que vistas daqui são mentiras
    mas verdadeiras se vistas de lá.   
    há outras que vice-versa.   
    e outras ainda, que mentirosas, se vistas de lá ou de cá
    por serem verdadeiras só por dentro.   
    há as que não o são hoje mas já foram
    e aquelas que nunca foram e nunca serão
    por serem apenas anseios de verdade.   
    há as que são mentiras se viradas ao avesso
    e aquelas rebeldes
    verdadeiras por todos os modos.   
    houve um tempo em que a verdade precisava
    de deuses
    ou de deus
    para se impor.   
    e veio o tempo em que a verdade cresceu
    e apareceu inusurpada
    como sempre fora.   
    há verdades peregrinas
    que vêem em busca do homem que busca
    e as há também fincadas no seu lugar
    à espera daquele que está por chegar.   
    há as que dormem e acordam mentiras
    e há as irrequietas que não dormem nunca,
    de medo;
    essas são esquecidas no meio das teias da História.   
    há as que são brinquedos nas mãos das criaturas
    e há as que ferem e machucam.   
    há as que se fingem de mentira
    e conseguem enganar.   
    e há as que se fingem de mentira
    e são facilmente desmascaradas
    bem como há aquelas
    carregadas de dignidade
    que não aceitam tais brincadeiras.   
    umas precisam de jóias e flores e adereços
    e outras se mostram nuas.   
    há as amargas e difíceis
    e outras doces.   
    há as minhas
    e as tuas
    e as nossas
    e as deles
    e as de poucos
    e as de tantos
    e as de todos
    e as que não pertencem a ninguém.   
    há verdades
    espalhadas pelo mundo.   

3.   

    antes de o sol chegar, ainda na semi-obscuridade, percebi que meu pai estava sentado na cama, um colchão no largo chão do sótão.  a luz ia chegando lentamente, as sombras se desmanchavam.   
    não dormiu?, pai.   
    dormi, claro.  acordei antes do dia.   
    ele levantou-se enfim e abriu a única janela.  foi como se os passarinhos tivessem entrado voando e cantassem em torno de nossas cabeças.  o frio também entrou.  enrolamo-nos mais nos cobertores.  o menino levantou a cara.   
    está muito frio, pai.  não vou sair daqui.   
    quer dormir mais um pouco?
    não.  vou só ficar debaixo das cobertas.   
    fecho os olhos.  quero estar acordado mas muito é o sono.   
    então, filho, fale-me dos homens.   
    e ele:

4.   

    os homens, pai, são muitos animais e muitas são suas ordens e suas famílias e suas espécies e subespécies.   
    quero por hoje apenas falar daquilo que é o homem quando visto de longe.  suas cidades se espalham por todo o planeta e nem o frio nem o quente nem o baixo nem o alto chegam a ser obstáculo pra essa criatura.  só o fundo da água o tem distante.   
    agrupados e aprisionados dentro das leis que eles pensam terem eles mesmos edificado, semelham-se uns aos outros, vistos de fora.  mas no fundo de suas almas são tão parentes quanto o camelo da lesma, o elefante do lagarto, a borboleta do peixe.  não falo de diferenças físicas; falo de comportamentos.   
    vamos até seus lugares e quedemo-nos a observá-los.  eles vêem e vão com seus passos tão acertados entre si.  distribuem-se entre si suas tarefas, baseados naquilo que eles chamam de mútuo consentimento mas não percebem o quanto de compromisso há com o irracional que lhes domina a maior parte dos atos.  entre si combinam de filosofias que venham organizar todos os seus procedimentos e não estão sabendo que sempre resolvem o já resolvido antecipadamente nos miolos de suas vísceras.  querem esconder de si mesmos que, quando babam, quem baba é o cão ou o lobo; e, quando atacam, quem ataca é o tigre ou o leão; e, quando se confiam à proteção do mais forte, é o passarinho que se ajeita no lombo do paquiderme, para alimentar-se.   
    e marcam os limites de seus territórios com gritos e fezes e urinas, e serão capazes de lutar por aquilo que consideram deles, mas também serão capazes de devorar os próprios filhos se estes vierem a por em perigo aquilo que considerem o seu espaço vital.  e que varia o território conforme varia o animal que habita cada homem.  e há os mais medrosos e os mais ousados.  e os que se entregam e os que porfiam até a morte.  e os que precisam da companhia dos rebanhos e os que se escondem das gentes, nos seus covis.  e os que tecem para si graciosas casas ou fortalezas inexpugnáveis e aqueloutros a quem basta um teto no momento das chuvas.  e os que querem crescer como o lírio do vale ou as aves do céu e uns tantos que ajuntam nos porões e nos bancos mais do que poderiam usar em dez vidas.  e os garanhões indomáveis que se atiçam diante de qualquer cheiro ou qualquer forma, bem como aqueles a quem os primitivos medos de dor e de culpa impedem metade de uma ereção.   
    mas, vistos de longe, são semelhantes e muitas vezes não se logra descobrir que animal habita a este ou a aquele.  fingem-se gente e tecem malabarismos racionais para parecer que são aquilo que nunca conseguirão ser.  e acreditam em si.  e se põem furiosos quando algum feiticeiro curioso lhes vem trazer um espelho.  porque então eis que o que vêem são chifres e patas e caudas e garras e dentes e cheiros e fomes e instintos e corpos destinados tão só a vibrarem um momento antes da putrefação inevitável.  a estes loucos que ousam abrir mapas contendo distribuições geográficas e mostrar espelhos que eliminam as máscaras do que se supõe eterno e imarcescível, a estes demitem agora, prendem depois, torturam amanhã e condenam na madrugada de depois de amanhã.  para, dois ou três dias mais tarde, levantar-lhes monumentos, instituir feriados e escrever citações nos livros escolares.   
    supõem chamas brilhando no fundo do que supõem espíritos e não querem saber de químicas que lhes corroem as veias, instigando ações de que não se consegue fugir.   
    uns se sabem, outros não.  alguns dos que se sabem gastam a vida em busca de uma ilusão que lhes venha a devolver a divindade tão difícil de sustentar.  martelam sofismas, metem-nos no fogo e na água e os aquecem e os esfriam e os ajeitam aos golpes, até que desapareçam as contradições e o sofisma ganhe a forma de um silogismo.  verdade é que nunca tenham atingido a perfeição.  porque tanto o martelo quanto o fogo e a água e a intenção são passíveis de crítica.  e como os há de todos os jeitos, há os que criticam e exigem coerência.   
    por ora, pai, é tudo o que quero falar.  agora quero tomar café e passear na minha égua.   
    um eco ressoou na minha cabeça adormecida.  abri os olhos.  o menino está de pé diante de meu colchão, já vestido.   
    está dormindo?, pai.  quero tomar café e passear na minha égua. 

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