quatro marias (roteiro de filme, 4)

QUATRO MARIAS – Parte 4

 

Epílogo: A água lava. A água leva.

  

Seqüência 37:

 

Uma mulher caminha pelas ruas de uma cidade pequena. Vai vestida de negro, da cabeça aos pés. É dona Olinda. Leva a sacola de macramé com a caixa onde está a imagem e tem uma carta na mão. Durante seu passeio, os textos: Epílogo: A água lava, a água leva. Chegando à casa de dona Maria, bate palma. Esta aparece na janela:

          – Aconteceu alguma coisa?, dona Olinda.

Vê a sacola.

          – É a Maria?

          – É.

          – Ele matou ela… Eu sabia…

E após um silêncio:

          – Entra, dona Olinda.

Dona Olinda entra e se senta silenciosa. Após um tempo:

          – O Elói deixou isto na minha casa. A mando do Zico, que está morando em Friburgo. Tem uma carta, dona Maria.

          – Eu não sei ler, dona Olinda. A senhora tem tempo de ler para mim?

          – Tenho…

          – Primeiro, eu quero ver a santa. Deixa eu ver o pacote.

As duas abrem a caixa. A imagem agora tem uma vestimenta vermelha.

          – Ela trocou a roupa da santa. Quando eu dei… a roupa era branca… A senhora lê?

Dona Olinda abre a carta. Dona Maria corta:

          – Dona Olinda, desculpe. Eu não quero ouvir. Vai falar o que já sei. Agora, não adianta mais nada.

          – A senhora quer que eu reze um terço junto com a senhora? A oração alivia o coração.

          – Estas rezas são muito difíceis, dona Olinda. Não sei rezar essas rezas… As palavras são muito difíceis…

          – Não quer mesmo rezar um terço?, dona Maria.

Dona Maria nega com a cabeça. E fala:

          – Em vez de rezar… eu sofro. Não é a mesma coisa? Em vez de rezar… eu sofro. Coitadinha da minha filha… A senhora aceita um café?

          – Não. Obrigada, dona Maria. Então… eu posso ir andando?

          – Como quiser, dona Olinda. Muito obrigada, a senhora devia ter mandado alguém. Mora do outro lado da cidade.

Dona Olinda nega com a cabeça. E esboça um sorriso. Nega de novo.

          – Vou indo.

Dona Olinda sai. Dona Maria começa a esfregar o rosto com as mãos, para expressar sua dor. Abre novamente a caixa, tira a santa e a põe sobre a mesa. Sai e volta. Vai lá fora, até a beira rio, volta. Vai lá, de novo, e volta. Não sabe o que fazer. Parece um animal numa jaula. Vai ao fogão, põe nele uns gravetos e começa a soprar. Quando o fogo se inicia, ela põe mais gravetos. Vai à mesa, tira uma a uma as espadas de madeira.

          – Me perdoa, minha santa. Me perdoa.

Vai ao fogão e coloca as espadas no fogo. Fica olhando. Espera que as espadas se queimem. Levanta-se, vai até a mesa. Pega a imagem.

          – Me perdoa, minha santa. Me perdoa.

Vai até a beira do rio. Coloca a imagem na água e a imagem sai flutuando. Dona Maria fala baixinho:

          – Ô, minha filha. Se eu estivesse lá, ia te dar um banho. E ia te por uma roupa bonita. Uma roupa bem bonita… Eu ia te dar um banho e te vestir… Eu é que ia te vestir…

          Dona Maria se senta numa pedra. Seu rosto está coberto de lágrimas:

          – Ô, minha filha. Se eu soubesse rezar, ia ser mais fácil… Ia ser mais fácil…

          Dona Maria é focalizada de trás e o plano vai aumentando.

  

Seqüência 38:

 

À medida que a câmara se distancia, vê-se que ela está sentada numa pedra de papelão, no picadeiro, com a platéia inteiramente vazia. E novamente é vista de frente, repetindo baixinho:

          – Queria dar em você o último banho… Teu corpinho ia ficar cheiroso… Eu ia te vestir um vestido novo… bem bonito… bem bonito… bem bonito…

          Novamente o plano se amplia. Vê-se agora, no fundo da cena, todos os personagens, agora atores, atentos e em silêncio, vestidos com suas roupas modernas. Alguém grita:

          – Corta!

O rosto de dona Maria se descontrai e ela respira aliviada. Levanta-se, tenta sorrir, e vai para o fundo do picadeiro. Todos sorriem e avançam. A atriz que faz dona Maria grita:

          – Ah, que alívio. Acabou. Acabou.

Dançam. O ator que fez Jorge abraça a atriz que fez dona Maria. A atriz que fez Maria se aproxima. As duas atrizes abrem os braços, sorridentes, felizes.

          – Acabou! Até que enfim, acabou!

Abraçam-se fortemente. E ficam repetindo:

          – Nossa! Que catarse! Que catarse!

 

De repente, olham-se novamente. E seus sorrisos se transformam num choro terrível, abraçam-se e choram em convulsão. Demoradamente. A cena vai escurecendo.

  

Campo Largo, 02 de junho de 2008.

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