a tragédia grega

A TRAGÉDIA GREGA 

Aspectos gerais e A Electra, de Eurípides

Obs.: Este texto foi escrito para o saite www.50anosdefilmes.com.br, de Sérgio Vaz, como informação adicional aos comentários sobre o filme Electra, de Cacoyannis.

01. Aspectos Gerais

O altar do deus Dionísio (fecundidade, delírio, embriaguês) ficava no centro de um círculo. Nesse círculo um coro dançava e cantava hinos em homenagem ao deus. Estes hinos eram os ditirambos, numa forma mais livre e exagerada de emoção descontrolada. Segundo indicações, os cantores se cobriam com peles de bode; o bode era consagrado ao deus e sacrificado durante as festas. Aristóteles define a palavra tragédia como junção de “trag” e “ode”, o que significa “o canto do bode”.
No século VI aC, um grego chamado Téspis introduziu um ator que dialogava com os cantores, apresentando comentários ou fazendo perguntas. O coro cantava e o ator falava. Com o passar do tempo, os cantos se tornaram cada vez mais ricos e variados e o momento do culto permitia a narração de histórias, não mais necessariamente relacionadas com o deus Dionísio. De acordo com o papel que desempenhava, o ator vestia roupagens diferentes.
Aristóteles escreveu que esta ação era uma “imitação da vida”. Eis a origem da tragédia.

Durante o século de Péricles (500-400aC) as tragédias atingiram seu apogeu. As apresentações eram verdadeiras festas nacionais, que atraíam visitantes de todo o mundo grego. Por essa ocasião, já o espaço teatral se tinha desenvolvido e apresentava sua arquitetura específica. O círculo (orquestra) para a apresentação se situava junto a uma colina e o declive do terreno era aproveitado para uma escadaria, onde se sentava a audiência. Atrás da orquestra havia uma casinha comprida (a “skene” – no começo apenas um tipo de tenda de pano), onde os atores trocavam de roupa. Todos traziam máscaras com cores definidas e expressões faciais fixas, facilitando aos espectadores o reconhecimento dos personagens. (Os famosos coturnos – sapatos com sola e salto muito altos, para aumentar a estatura dos personagens, só aparecerão após a conquista de toda a Grécia, feita por Alexandre Magno (356-323aC). 
Entre a construção (skene) e o círculo (a orquestra) havia uma espécie de terraço, onde os atores representavam (algumas vezes eles desciam ao círculo do coro). E um terraço mais alto, atrás da “skene”, onde surgiam sentinelas ou até deuses.
As tragédias sempre eram apresentadas em grupos de 3 – as trilogias, e após a trilogia, via-se um drama satírico. Nem sempre as trilogias mostravam a sequência de uma mesma história.
Um cidadão muito rico era nomeado para assumir as despesas de cada dramaturgo; ele devia escolher as pessoas para o coro e pagar tudo durante os ensaios. Geralmente o próprio autor dirigia os ensaios e a apresentação. Dez juízes eram indicados e entre eles sorteava-se cinco, para o julgamento da melhor obra. O autor da trilogia vencedora recebia um prêmio em dinheiro.
Em função de seu próprio desenvolvimento, derivada dos hinos dionisíacos misturados com diálogos, a tragédia grega finalmente se transformou numa apresentação artística de forma mais ou menos fixa. Primeiro, havia o Prólogo, onde a fala de um personagem anunciava o tema do drama. A seguir, entrava o coro, cantando seu primeiro canto. Depois disso, um trecho de diálogo entre os personagens, chamado de episódio. Entre um episódio e outro, o coro cantava novamente, ora para comentar o acontecido, ora para mostrar alguma passagem de tempo. Após a consumação trágica, o coro saía cantando. Enquanto cantavam, os elementos do coro, divididos em dois grupos, dançavam lentamente. Algumas vezes o diálogo do protagonista acontecia com o chefe do coro – o coreuta – e não com outro personagem. 
Todos os atores da tragédia grega eram homens. Geralmente os mais jovens assumiam os papéis femininos. (Isso se repetirá no período elizabetano, nas peças de Shakespeare e seus contemporâneos.)
Em algumas peças, também os atores cantavam. Também era possível uma cena em que um personagem cantava e outro respondia com fala. Havia ainda monólogos ao som de música, o melodrama. Toda a parte musical da tragédia consistia apenas no toque de uma flauta.
Deve ser mencionado que muitos dos detalhes da mitologia grega eram criação livre dos poetas trágicos. Quando se estuda essa mitologia é costume encontrar frases do tipo… “segundo Ésquilo, fulano era filho de A e B, mas segundo Eurípides era filho de C e D”. A mais horripilante destas interferências no mito grego é apresentada na tragédia Medéia, de Eurípides. Todos os documentos anteriores contam que, após o assassinato do rei e da princesa de Corinto, Medéia fugiu, ora com os filhos, ora sem eles. E os filhos foram mortos pelo povo enfurecido ou fugiram logo depois. Eurípides não teve escrúpulos em mudar a lenda. Tragédia é tragédia e na Medéia todo o terror da narrativa está vinculado ao desespero da mulher que resolve matar os próprios filhos, como vingança contra o pai infiel.
Para finalizar, vale dizer que, assim como acontecia com as cores das máscaras e a sequência entre os cantos corais e os episódios, a ação encenada também obedecia a um rígido esquema de convenções: um assassinato nunca acontecia em cena, mas nos bastidores, geralmente atrás da porta do palácio; a seguir, o cadáver era trazido à vista da platéia. Em As Bacantes, de Eurípides, a rainha entra com a cabeça do filho nas mãos, decepada; o corpo surge depois. Quando o assassinato ocorria longe do cenário, sempre, era um mensageiro que chegava e narrava todo o acontecido; isto propiciava ao autor, oportunidade para exibir um virtuosismo na arte da narração. Quando um ator representava uma divindade, ele surgia por trás da cena, flutuando no ar, pendurado por um tipo de guindaste.

É muito comum encontrar nas tragédias gregas referências à “democracia de Atenas”. E também comum encontrar falas dos reis, anunciando que não poderão assumir determinada atitude sem antes consultar o povo. Usava-se pois uma festa nacional para propaganda política sobre a democracia ateniense e crítica às outras cidades.

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Três grandes dramaturgos deixaram uma obra soberba: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Infelizmente perdeu-se a maioria das aproximadamente 270 obras feitas pelos três. Atualmente temos 7 tragédias de Ésquilo, 7 de Sófocles e 18 de Eurípides.

Ésquilo (525-456aC) introduziu um segundo ator para dialogar e isto muito enriqueceu a possibilidade de se criar um verdadeiro teatro. Nas suas tragédias o coro desempenha um importantíssimo papel, exatamente como acontecia nos rituais de Dionísio. Em algumas das peças é o coro o verdadeiro protagonista da ação. Os dois atores tinham diversas atuações cada um, entravam e saíam de cena com papéis diferentes. A mais antiga tragédia de Ésquilo é um exemplo vivo dessa forma teatral: As Suplicantes. O coro é formado por moças gregas que fugiram do Egito até Argos para escapar de um casamento com seus primos, os filhos do rei. A cena mostra o pedido de asilo.
Das 7 tragédias de Ésquilo, três formam a única trilogia que se conservou intacta até nossos dias: A Oréstia, com as tragédias Agamenon, As Coéforas (portadoras de oferenda para os mortos) e As Eumênides (fúrias que perseguem os culpados de assassinato).
O teatro de Ésquilo é eloquente, solene, hierático. Seus temas são a justiça e a obediência aos deuses. Os cantos do coro são longos. A estrutura dramática é simples e não há aprofundamento na personalidade do herói. Cada personagem tem um papel bem determinado. Mas dentro deste painel, quase sem movimento, se desenvolve uma luta terrível entre os elementos que participam da tragédia. Aristófanes, o grande comediógrafo, dizia que Ésquilo era um “criador de abismos”. Seu trabalho mais conhecido é Prometeu Encadeado.

Sófocles (495-405aC) foi o mais estimado dramaturgo em seu tempo. Ainda jovem, participou em corais de odes e tragédias de outros dramaturgos e, mais tarde, quando ele mesmo passou a criar tragédias, foi ele quem mais vezes recebeu o prêmio. Sófocles introduziu um terceiro ator e isto permitiu intrigas mais elaboradas, já que em alguns episódios surgem três personagens em cena, além do próprio coro. Apesar da pequena diferença de tempo entre ele e Ésquilo (em algumas ocasiões ambos disputaram o mesmo prêmio), Sófocles deu um grande passo em direção ao aprofundamento da psicologia de seus personagens.
O teatro de Sófocles é lírico, menos solene que o de Ésquilo, mas bem mais profundo e humano. A religião não desempenha um papel tão importante e em algumas de suas obras os personagens lutam contra uma fatalidade impiedosa. Isto é mostrado principalmente em Édipo Rei. Sófocles é considerado como o artista mais harmonioso de seu tempo. Aristóteles registrou em seu estudo sobre as tragédias gregas que Édipo Rei é a mais perfeita entre todas.

Eurípides (480-406aC), o último dos grandes trágicos foi no seu tempo considerado como de mau gosto e de emoções exageradas. Recebeu menos prêmios do que seus rivais. Todavia, curiosamente, foi ele quem deixou uma maior quantidade de tragédias completas. Para nós, seu teatro é muito atual, provavelmente pelo realismo que ele imprimiu em sua obra. Diminuiu a importância do coro, quase anulando-a, e introduziu nas suas peças elementos demasiado humanos, mendigos, esfarrapados, camponeses. Mas seu maior sucesso vem do fato de que ele mostra em profundidade a alma humana. Seus personagens apresentam disputas cheias de sofismas e põem a nu emoções violentas como vingança, paixões cegas, malícia. Ou são exemplos notáveis de amor filial, abnegação. Aproveitava os comentários do coro para criticar alguns costumes religiosos ou mesmo para zombar de algumas passagens da mitologia.
Para se ter uma idéia sobre a importância da trama sobre os cantos do coro, registremos que em As Suplicantes de Ésquilo, dos 1074 versos, 68% pertencem ao coro, enquanto que a penúltima tragédia de Eurípides, As Bacantes, contém, dentre os 1341 versos, apenas 24% de versos do coro.
Dentre os três trágicos, é o que melhor consegue criar um vínculo entre o personagem e o espectador. E é também o que mostra com frequência terríveis papéis femininos, inesquecíveis.


 2. A Electra, de Eurípides – Um Exemplo De Tragédia

A tragédia Electra foi criada por Eurípides quando o autor já mostrava um talento superior (413aC). Não é dos últimos trabalhos, mas já é uma obra madura e cheia de uma poesia agressiva e seca.
No meu ponto de vista esta tragédia apresenta dois aspectos dignos de menção.
O primeiro aspecto é ligado às alterações feitas pelo autor, como o abuso do que era considerado feio e de mau gosto, a presença de discussões filosóficas cheias de argumentos e uma visão pessoal sobre os motivos do crime, mais psicológicos que religiosos.
Criticada foi a introdução de um camponês como marido de Electra e o cenário, que é o espaço em frente a uma pobre cabana. O coro é formado por vizinhas e amigas de Electra, também mulheres do povo. O autor em vida era bombardeado, principalmente pelo comediógrafo Aristófanes, por mostrar esse lado muito humano e despojado, sem a presença do heróico. A própria protagonista entra em cena em farrapos, saindo da cabana com uma bilha para buscar água no rio e de cabelos curtos, como se fosse escrava. Quer mostrar-se aos deuses como pessoa ultrajada pelos reis e já no quinto verso de sua fala, amaldiçoa a mãe, Clitemnestra, que a expulsou de casa. Poderíamos dizer que Eurípides, além de não evitar, evidenciava o que hoje chamaríamos de falta de glamur. Algo como o neo-realismo italiano.
Mas o autor, como foi costume entre os dramaturgos de seu tempo, também apresenta outras modificações na lenda original, para melhor realçar a intriga e preparar os acontecimentos para o desenlace final. A platéia de Eurípides já conhecia a lenda. Portanto, o que interessava era mais a maneira como o poeta apresentaria a sequência de fatos que desembocariam no crime de matricídio cometido pelos irmãos Electra e Orestes. O povo grego tinha o terrível hábito de pensar. E é com essa nova concepção do crime que Eurípides se mostra mais pessoal, moderno e emocionante.
O segundo aspecto digno de menção é que a Electra, de Eurípides, é a única das 270 tragédias gregas, que repete o assunto de uma Electra, de Sófocles, e de As Coéforas, de Ésquilo. Sabemos que todos os trágicos – pois que eram mais do que os três que deixaram obras integrais – usavam e abusavam da mitologia grega, aproveitando todos os mitos para levá-los à cena, no que eles tinham de mais espantoso e terrível. (Uma curiosidade: Os Persas, de Ésquilo, não tem assunto mitológico, e sim a visão dos persas derrotados pelos gregos – é o único caso entre todas as tragédias gregas). O resultado é que havia uma série de tragédias sobre o mesmo assunto. Infelizmente tudo foi perdido. Menos as três, sobre o crime de Electra e Orestes.
Por isso, para se ter uma idéia bem nítida sobre as diferenças entre os três trágicos, a leitura das três peças nos evidencia as principais características de cada um dos autores. Na minha opinião, todavia, nenhuma das três peças poderia ser considerada como a obra prima de cada um. Eu diria que, em sua totalidade, o trabalho de Ésquilo é o mais equilibrado, já que suas tragédias apresentam sempre uma poesia de altíssima qualidade. Se o seu Prometeu é muito famoso, isto é mais por mostrar uma situação que se repete ao longo da história da humanidade – a opressão do poderoso sobre o fraco e a violenta rebeldia deste. As obras de Sófocles e Eurípides mostram momentos de maior ou menor inspiração. E suas Electras são obras primas mas não competem com um Édipo-Rei ou As Bacantes, como exemplos.

A Electra de Ésquilo (a peça se chama As Coéforas – portadoras de oferendas aos mortos), é majestosa, toda vinculada à religião. O coro é formado pelas moças que vão com Electra levar oferendas ao túmulo de Agamenon, a mando de Clitemnestra. Electra considera isto um ultraje. Surge Orestes e após o reconhecimento pela irmã, tramam os dois assassinatos, o de Egisto e o de Clitemnestra. Orestes, no entanto, está obedecendo a ordens recebidas do deus Apolo. Ele é um representante da vontade divina, para a manutenção da justiça. Electra não participa do crime. Os coros são grandiloquentes, a tragédia mantém todo tempo um clima de grande tensão.

A Electra de Sófocles é mais delicada, mais lírica. Há menos tensão, por isso costuma-se falar que as obras desse autor são muito equilibradas. Sófocles introduz uma irmã de Electra (nunca encontrei outra referência e esta Crisótemis, parece que é invenção dele), que cria com ela um contraste: enquanto uma é rebelde e desobediente, a outra é boazinha, medrosa. Este contraste tinha aparecido trinta e um anos antes numa outra famosa peça, Antígona. Mas essa Electra é mais centrada em si do que Antígona, que age por uma elevada piedade religiosa. A Electra de Sófocles, do lado de fora do local do crime, instiga Orestes, no momento de matar a mãe: “Um golpe mais, Orestes, se ainda tiver força para isto!”

A Electra de Eurípides mostra uma mulher mais decidida, chegando à ferocidade. Os personagens de Eurípides são presas de suas emoções violentas, até um momento em que não há mais raciocínio mas apenas decisão cega. É ela que inventa um estratagema para trazer a rainha até sua cabana. É ela que faz um discurso terrível de vitória e deboche, diante do cadáver de Egisto. Ironiza, quando a mãe vai entrar no local do crime: “Cuidado para não sujar as vestes no negro da fuligem!”. E ela entra na cabana onde já estão o irmão e o amigo, para a consumação do crime.
Na tragédia Electra, de Eurípides, encontra-se uma curiosíssima passagem, que fala tanto da liberdade criativa e realista do autor, quanto de seu tempo, uma Atenas já consumida pelas guerras, pela perda do poderio e dominada por um ceticismo muito crítico. Nas obras de Ésquilo e de Sófocles, a prova de que Orestes tinha voltado do exílio, para a vingança, é a presença no tumulo de Agamenon, de um cacho de cabelos, a pegada de seus pés no chão e a oferenda de um manto, que Electra fizera para o irmãozinho, antes que ele se escondesse junto a um tio, após o assassinato do rei. O preceptor de Orestes entra em cena feliz, anunciando que o jovem deve ter voltado, porque encontrara estes vestígios junto do túmulo do rei: cabelos iguais ao dela, marcas de pés do mesmo tamanho e o manto do irmão. Electra zomba: cabelos podem ser semelhantes sem ser indício de parentesco; o pé de um homem é maior do que o pé de uma mulher, além do chão pedregoso da Grécia, que não dá chance a pegadas; e o manto que ela tinha tecido era pequeno, Orestes não o usaria agora.
É a tragédia falando da tragédia. Os críticos falam em paródia. Hoje diríamos que é uma gozação.

Uma trivialidade, para terminar. Na Electra de Sófocles, a personagem recebe das mãos de Orestes, sem saber quem ele é, as supostas cinzas do irmão, numa pequena urna, para serem levadas à rainha e permitir que o mensageiro portador possa entrar no palácio. Electra, com a urna na mão, faz um pungente solilóquio, demonstrando sua dor desesperada. Por ocasião de uma apresentação, todos sabiam que o ator, Polos, tinha recentemente perdido um filhinho, e que ele usaria a urna com as cinzas do próprio filho. A platéia arrepiada silenciou e estremeceu. Ah, esses gregos! 
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