canção 03. reflexão pequenininha

Canções Diversas 01: REFLEXÃO PEQUENININHA.

Perdido no nevoeiro
da vida mal percebida,
pensei em pensar, primeiro,
pra não errar toda a vida.

Mergulhei no contratempo
pra vencer o mundo meu.
Não queria perder tempo,
mas o tempo me perdeu.

Achado no nevoeiro,
Eu pude entender a vida.
E fui o meu timoneiro
pra vida ser bem regida.

Criei o meu passatempo
Mas meu mundo envelheceu.
Queria enganar o tempo,
e o enganado fui eu.

(canta jorge teles)

Curitiba, 1976

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CONTA OUTRA VÓ 05.AS ALMINHAS PENADAS

as alminhas penadas

desenho de Ricardo Garanhani 

Nota: De todas as historinhas contadas por minha avó, esta é a única que narra um acontecimento vivido por ela. Registrei-a por sentir que ela tem uma carga folclórica mas não acredito que o fato tenha acontecido. Deve ser mentira, dessas mentiras míticas, inventadas ingenuamente para justificar uma crença qualquer. Quem sabe?, minha vó ouviu o conto de alguém e no recontar se colocou como personagem. A mesma ideia de que se pode e se deve batizar bebês morituros, ou mesmo depois que morrem, quando não há padres à disposição, era reforçada pela vizinha de Vila Isabel, Dona Cacilda, a mãe, paraibana. Nunca li texto em que tal fato fosse narrado.

    Quando morre alguém que não foi batizado, a alma não vai pro céu nem pro inferno nem pro purgatório. Fica vagando pelo mundo, assustando as pessoas, vira alma penada. Se quem morre é uma criancinha pagã, a alminha penada fica penando até que alguém batize ela. Gente grande não pode ser batizada depois de morta. Não adianta. Vai penar pela vida afora até o dia do juízo, quando então o deus separará os bons dos maus. Mas os pequeninos inocentes podem ser batizados depois de mortos.

    Uma vez eu e duas filhas mudamos duma roça pra outra. O Anísio já tinha morrido, eu estava viúva. O Oliveira estava no Rio, tirando o tiro de guerra. Os outros filhos já estavam casados. Então, eu e a Nanísia e a Natália mudamos duma roça pra outra. Saímos com o embornal e pedimos pousada muitas noites. Antigamente a gente ganhava pousada. A dona da casa fazia um mingau de couve com linguiça e toicinho, fritava torresmo, mexia um angu gostoso, a gente comia e conversava até tarde em volta do fogão. No dia seguinte, escuro ainda, a gente levantava, levantava antes do galo. A dona da casa dava frango frito, carne, a gente pegava o embornal e caçava rumo. Na noite seguinte, a mesma coisa. A gente ficava quinze, vinde dias viajando. Aí chegamos em Manhuaçu. Fomos direto pra casa da Milota.

    Perto dali, na entrada da cidade, tinha uma casinha abandonada. Perguntamos e disseram que era uma casa mal assombrada. Crianças tinham vivido lá e morreram pagãs. Ninguém conseguia morar lá.

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canção 02. senzala e casa grande

A ditadura da imoralidade 01. Senzala e Casa Grande

SENZALA

Mãe, tem um buraco
perto da esteira,
não posso dormir
dessa maneira.
Meu filho, meu filho,
acorde não,
já foi abolida
a escravidão.

Mãe, não vou à escola,
já estou cansado.
Eu nunca sei nada,
Sempre atrasado.
Meu filho, meu filho,
desista não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, aquele guarda
tomou meu dinheiro
depois de chamar-me
arruaceiro.
Meu filho, meu filho,
não ligue não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, frio e fome
e esse cansaço,
Só querem que a gente
vire palhaço.
Meu filho, meu filho,
fale isso não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, penso que alguém
vai me dedar,
e eu acho que o tira
quer me apagar.
Meu filho, meu filho,
não tema, não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, se me procuram
eu não estou,
e nem sei dizer,
pra onde vou.
Meu filho, meu filho,
não fuja, não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mão, falta coragem
pra te escrever,
aqui é horrível,
precisa ver.
Meu filho, meu filho,
não sofra não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, quando eu sair
eu não sei, não,
Pois tenho aprendido
cá na prisão.
Meu filho, meu filho,
não chore não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, você não vai
mais me rever,
Já foi resolvido,
vão me abater.
Meu filho, meu filho,
não morra não,
Já foi abolida
a escravidão.

Mãe, sangue, jornal,
e o chão lavado,
O dever cumprido,
tudo acabado.
Meu filho, meu filho,
me deixe não,
Já foi abolida
a escravidão.

CASA GRANDE

A casa está suja e feia,
Quebrado foi o portão.
Vazia a mesa da ceia,
O pão e o vinho no chão.

Os quartos não têm mais portas,
Em cada aposento, um cão.
Nos jarros, as flores mortas.
E os livros lá no porão.

Vassouras aposentadas
Quebrado está o escovão.
Em seu lugar, levantadas,
As armas da corrupção.

Mas nossa casa é esta.
Não adianta fingir
Que não existe a afronta.
Se a gente não protesta,
Ou não quer reagir
Eles vão tomar conta.

Nos cantos, ratos e aranhas,
E ninhos de escorpião.
E cobras de muitas manhas
Gozando da usurpação.

Areia, poeira, chuva,
Dor, fome, contravenção.
De negro, qual uma viúva,
A casa é um refúgio vão.

A vergonha foi calada.
E no Poder, o Aleijão.
Ferida e desrespeitada,
A virgem Constituição.

Mas nossa casa é esta.
Não adianta fingir
Que não existe a afronta.
Se a gente não protesta,
Ou não quer reagir
Eles vão tomar conta.

(canta jorge teles)

Curitiba, 30.09.1977

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