Indice: Desistória

Desistória – capítulo 1.

Desistória – capítulo 1.                   E as estrelas caíram do céu sobre a terra como a figueira,…

Desistória – capítulo 2.

Desistória – capítulo 2.                   Estes são aqueles que vieram da grande tribulação e lavaram seus vestidos.…

Desistória – capítulo 3.

Desistória – capítulo 3.     Toma o livro e devora-o.               3. dias de insônia.               quanto…

Desistória – capítulo 5.

Desistória – capítulo 5.                  E enquanto aqueles animais davam glória e honra e ação de graças ao…

Desistória – capítulo 6.

Desistória – capítulo 6.                   E não sabes que és um miserável e infeliz e pobre e…

Desistória – capítulo 7.

Desistória – capítulo 7.                 Eis que estou à porta do teu coração e bato. Se alguém ouvir…

Desistória – capítulo 8.

Desistória – capítulo 8.                 Ai, ai, grande cidade, que se vestia de linho, púrpura e escarlate e…

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Desistória – capítulos 9 e 10 (final).

Desistória – capítulo 9.

 

 

Ai, ai, ai dos que moram sobre a terra.

 

            9. crepúsculo de dor.

 

            desci a montanha de neve. não tenho idade. nunca terei. um espírito insano me condenou a presenciar estes fatos e participar desta história.

            fecho os olhos e vejo uma multidão atribulada a correr entre casas enormes. as criaturas estão escravizadas a máquinas imensas e inúteis. algumas dessas criaturas estão vivas.

            fecho os olhos e vejo uma catástrofe. explosões e morte. há um simultâneo silêncio de alguns dias. dos buracos saem criaturas sujas de negro. algumas dessas criaturas estão vivas.

            fecho os olhos e vejo um grande formigueiro, ordenado e correto. todos executam suas pequenas tarefas, pertencentes a uma grande tarefa: manter vivo aquilo que está morto. as criaturas trabalham. algumas dessas criaturas estão vivas.

            fecho os olhos e vejo discussões. as criaturas querem convencer as criaturas. amordaçam o instinto da vida e liberam o instinto da morte.

            fecho os olhos e vejo guerras.

            vejo guerras.

            abro os olhos e vejo uma tribo trabalhando seu cobre e seu bronze. vestem-se de maneira vistosa, cultuam seus deuses, elevam seus templos e palácios. escravizam os semelhantes. cada vez que conquistam um povo, destroem a todos. a vida humana não tem valor.

            ruem suas construções de tijolos e de pedras. quebram-se seus carros. arruínam-se suas pequeninas embarcações. fogem para a vida selvagem alguns dos seus animais domésticos. esquecem-se de semear a nova seara. seus filhos discutem e se dividem e procuram seus próprios caminhos. sacrificam seres humanos aos seus deuses, para que sucedam bem os seus planos.

            e mais guerras.       

            chegados aos lagos e mares mais mansos, elevam suas palafitas. nas toras de madeira, cavoucam o barco frágil. com fibras de vegetais, executam redes para pescar. das peles das caças fazem cobertas contra o frio. queimando o barro preparam vasilhas rústicas. quando têm tempo, sulcam no barro úmido desenhos simples. não se lembram que os avós dos avós derretiam metais. fazem suas armas com pedras que esfregam em pedras mais duras.

            espalham-se em pequenos grupos, pelo mundo cheio de perigo.

            ainda guerras.

            a vida é difícil. frio, fome, feras, espíritos que entram no corpo e matam com dores, inchaços, arrepios, prostração. os que morrem são enterrados, para que os animais não os devorem. mas eles aparecem em sonho, enchendo de terror o acordar. vão ao local onde o morto foi enterrado e o cobrem de pedras, para que ele não fuja e venha perturbar a noite. fazem de barro os pequenos simulacros dos que se foram, para que eles fiquem tranquilos. as mulheres estão sempre barrigudas. mas as crianças morrem por um nada. as mais peludas resistem mais ao frio.

            quando brigam, os que saem vivos se separam em bandos menores e se espalham mais ainda.

            não se lembram mais de como eram as casas dos lagos. entrar no lago é ser devorado pelos monstros. fogem e acham cavernas. vivem em pequenos grupos. espíritos terríveis habitam o mundo lá fora. desenham animais nas paredes. fabricam estatuetas de fêmeas inchadas, seios, nádegas, barriga.

            e guerras.

            falta água. o rio secou. o bando avança lento, as narinas ao vento, sentindo cheiros. qualquer ruído os enche de terror. as mães protegem seus pequenos. quando encontram, comem raízes, mel, frutas. armam-se com pedaços de madeira pesada. um chefe, à frente, avança encurvado. as narinas farejam. de repente um cheiro distante de água. os olhos brilham. por meio de grunhidos avisam-se uns aos outros. alegria, satisfação. ao transpor a colina, porém, vêem o brilho da água mas sentem também um cheiro diferente, ameaçador, inimigo. descem cheios de furor. os pequenos ficam à espreita, lá no alto, os olhos arregalados de espanto e horror. o bando inimigo avança. medem-se. farejam-se. pulam e recuam. súbito, um encontro de paus no ar, o ruído excita, todos se lançam à frente e se batem e se destroem e quebram-se as pernas e os braços e os crânios.

            os pequenos, lá no alto, voltam em desabalada carreira. os mais frágeis vão morrendo, comem o que encontram. de medo dos perigos, sobem em árvores. dias e noites a fugir e a procurar comida e água. os pelos aquecem.

            o tempo parou.

            é um eterno presente.

            um espírito insano me condenou a presenciar estes fatos e participar desta história. eis o que vi:

            uma fêmea caminha sobre a vegetação. está excitada. os cheiros a entontecem. qualquer ruído a assusta. tem o sexo molhado e sente contrações fortes. apalpa-se, umedece os dedos, cheira, estranha. as narinas arfam. então surge um macho. ele também excitado, impetuoso, o cheiro diferente. assustam-se, gritam, correm, vigiam-se. aproximam-se gemendo. arreganham-se os dentes mas avançam. inimigos mortais que se buscam. dois medos que se aproximam um do outro. olhos cheios de um ódio receoso. tocam-se, assustam-se, gritam, pulam. aquietam-se. nova tentativa. o macho arreganha as unhas e os dentes. seu sexo está crescido, furioso, grande, duro, com um cheiro fortíssimo. a fêmea tem medo. gemendo, os dentes afiados à mostra, curva-se, põe-se de quatro, exibe suas carnes molhadas. o macho sente o impulso, segura-a nos ombros, morde-a de jeito a subjugá-la, inicia uma série de movimentos e ao sentir o pênis encontrar o orifício, acelera, geme, enfia embrutecido, o baixo ventre trabalhando por si mesmo, convulsivo. uma pequena explosão, ele retira e se prostra no chão. ela se encolhe e descansa.

            um aviso longínquo não chega até eles: de que existe olhar, sorriso, abraço, carinho e beijo.

            um espírito insano me criou para que eu viesse presenciar estes fatos e participar desta história. eis o que vi:

            a fêmea está intranqüila. catou gravetos, folhas, farejou, afastou-se um tanto do resto. não muito, para não correr perigo, não pouco, para não ser incomodada. fez um ninho. algo se move dentro dela. está cansada, lenta, um peso ameaça escorrer por entre as pernas. suas mamas estão inchadas. então se deita e espera. a barriga como que fecha e abre. ela se entrega. as pernas se abrem, se escancaram. sente arder a vagina. leva as mãos, está molhado. algo se rompe, se abre. ela tateia. os olhos doces. ajuda a retirar o que quer sair. puxa devagar, sente-se livre. levanta-o, uma cria, um menininho. morde a tripa que lhe sai, vai mordendo, mascando, até chegar na barriguinha. aperta, esfrega os dentes. corta. a outra parte da tripa, ela puxa devagar e a abandona. leva a cria ao peito, para aquecê-la. aos poucos a cria se anima, sua boca procura, tateia, se mexe. acha o bico da mama. suga forte. a fêmea sente escoar-se o sangue de seu corpo. num gesto de instinto, aconchega o rosto junto à cria.

            nenhum dos dois ouve o aviso longínquo de que existe nome. e liberdade.

            um espírito insano me pediu para presenciar estes fatos e participar desta história. eis o que vi:

            a cria cresceu e sai atrás da mãe. procuram comida. mexem, levantam folhas, cavoucam o chão. a fêmea ouve um grito. tem tempo de ver uma cobra escorregando para longe. toma a cria no colo. berros de dor. ela o abraça, acaricia-o, dá-lhe a teta. a cria grita, cada vez mais alto, a fêmea geme desnorteada. chega ao rostinho da cria o seu rosto aflito. lambe-o. os gritos vão ficando mais fracos. a cria vai mudando de cor e sua perna aumenta de tamanho. os olhos fechados. gemidinhos. a fêmea caminha com aflição, geme cada vez mais alto. de um lado para o outro. de um lado para o outro. a cria está mole em seus braços. a fêmea levanta a cria, olha para os lados, medo e impotência. a cria esfria. a cria esfria. a fêmea carrega-o um tempo. deposita-o no chão, senta-se, fica olhando.

            não ouve um aviso longínquo, de que existe choro.

            um espírito insano me perguntou dessas coisas.

            respondi que vi a fêmea estender as duas mãos abertas para o alto e ficar um tempo a olhá-las.

            cheias de nada.

 

  

Desistória – capítulo 10 (final).

 

 

            Amém.

 

            10. a noite negra.

 

            assim não seja.

 

  

Curitiba, 22 de abril de 1982.

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Desistória – capítulo 8.

Desistória – capítulo 8.

 

 

            Ai, ai, grande cidade, que se vestia de linho, púrpura e escarlate e se ornava de ouro, pedras preciosas e pérolas, porque numa hora ficou devastada tanta riqueza.

 

            8. a lua nova.

 

            ele está dormindo. sonha que eu estou dormindo. não sabe que tenho nas mãos a sua morte. ele confia em mim. ele me ama. tem a perna direita descansada sobre minhas pernas. tem a mão direita segurando o meu seio. está respirando no meu pescoço. não sabe que tenho nas mãos o pó que vai silenciá-lo. sinto com o braço, o palpitar tranqüilo e confiado do seu coração. e penso novamente no anel que tenho no dedo, de onde tirarei o pó que vai adormecê-lo do outro sono. um sono em que ele não sentirá meu seio nem minhas coxas nem o cheiro de meu sexo. um sono em que não sonhará que me ama. ele me ama. desesperadamente. como todos os outros. com o amor da entrega total. eu o calarei e reinarei sozinha nesse imenso império. foi para isto que nasci.

            não tenho pai e nem mãe, cantava aquela velha canção.

             não tenho pai e nem mãe,

            sou filha daquela árvore,

            neta daquela montanha

             quem cuidava de mim era a gorda. mulher do chefe. ele, magro e esquelético, ela, uma elefanta prenhe na barriga, nos braços, nas coxas. ela me dava comida e banho e ele me dava as ordens. tinham um filho imenso, branco e louro, terrivelmente branco e desesperadamente louro. ele sempre me levantava, passava o bigode duro na minha barriga, me jogava para o alto, me pegava na queda, de novo o bigode e um beijo estalado nos pés.

            acordávamos todos muito tarde. não era muito fácil aquela vida de acampamento, um dia aqui, um dia ali; mas era bem divertida. acordávamos tarde porque o circo ia até de madrugada. eu já podia ajudar, diziam. então, logo depois de comer, o chefe me mandava ajudar o filho louro. era ele quem tinha de remendar as roupas dos monstros ou levar-lhes comida ou lavar-lhes as gaiolas. eu ficava em volta e dava conta das pequenas tarefas: apanhar a agulha que ficou lá, pegar a vassoura, trazer o martelo a tarde, depois da segunda refeição, era para organizar o programa noturno. ajudar a dispor as celas vazias, verificar se os nomes estavam pendurados nas gaiolas, estender a grande tela para que a chuva não nos apanhasse de surpresa.

            à noite eu não trabalhava. ficava grudadinha ao manto do filho, que apresentava, uma a uma, as notáveis figuras monstruosas, falando de seus crimes e de seus castigos. acendíamos as tochas e o povo ia se reunindo, cheio de risos e gritos. formado o pequeno grupo, ele começava:

            aqui, senhores, apreciem o meio homem! apontando o meio homem, que não tinha pernas nem sexo; só o tronco, a cabeça e os braços. eis, senhores, que esta criatura era um rico cidadão da grande capital! e veio um dia em que ele não imolou o cão para o sacrifício ao deus da vitória. e no dia seguinte metade de seu corpo desapareceu, foram-se as pernas e aquilo que os homens têm de mais precioso e mais agrada às mulheres! todos riam e batiam palmas e se olhavam cheios de um calor alegre.

            e íamos para a gaiola do homem de asas. o homem de asas! meus senhores! é esta horrenda criatura com as mãos agarradas nos ombros. contou-me ele mesmo, cheio de tormento, que num dia sagrado, na sua aldeia, ousou tocar a água da concepção, zombando da deusa dos casamentos, a água com que as mulheres estéreis molham os seios e o ventre, à espera de filhos gerados por auxílio dos deuses. e eis que no dia seguinte, desapareceram-lhe os braços, ficando suas mãos pregadas nos ombros, como asas sem penas. todos gritavam e vaiavam e batiam palmas.

            e assim íamos, do homem de asas à mulher de três seios e ao velho sem costelas e ao menor homem do mundo e ao homem que comia pelo pescoço, com seu tubinho. o público admirava, gritava, se divertia. algumas figuras não eram, todavia, autênticas. eu sabia mas não podia contar a ninguém. assim, por exemplo, a mulher-homem. aparecera no acampamento uma miserável mulher, a quem tinham, numa invasão de aldeia, cortado um dos seios. o chefe mandou pintar pelos no lado sem seio de seu corpo, colou-lhe uma meia barba e disfarçaram um pedaço de pênis e um só testículo entre as pernas. no momento de sua apresentação, os que seguravam as tochas, levavam-nas para trás, iluminando assim somente o contorno daquela fantástica aparição.

            o filho se exaltava muito ao apresentar todos aqueles seres. percebi um dia que ele trocava os milagres, conforme tivesse bebido mais ou menos. também, as pessoas não percebiam. eles falavam línguas diferentes, tantas eram aquelas línguas! eles apenas viam e se divertiam.

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