o dia sem nome, 18

O dia sem nome, 18.

Ao ouvir o assobio Ingrid num relance pensou o aparelho enguiçou vou levá-lo amanhã mas os homens da tela foram diminuindo e tudo foi ficando curvo e confuso, subindo, escuro, desceu sobre Ingrid o esquecimento. Um punhado de matéria informe, molhada, misturada a roupas bem brancas dentro de uma casa limpíssima, que nunca mais ia ser limpa, até sua total destruição, alguns séculos mais tarde. Nos aeroportos, aviões apodreceram, painéis permaneceram acesos, instrumentos funcionaram para o vazio. A ata da Assembléia Constitucional não foi assinada. O homem que furava um poço ficou lá no fundo, desmanchado, e não foi destruído por vermes que não foram consumidos por bactérias que não mais existiam. O petróleo jorrou para ninguém, milhões de barris incendiaram, as máquinas não precisavam mais do óleo negro. Nas sedes dos jornais, imensos e vazios, não se falou mais da moda nem da economia nem dos ditadores. Na aula de pintura, o modelo nu não mais se levantaria e os estudos amarelaram incompletos. Em Epidauro, o guarda-roupa desenhado para o festival não seria confeccionado e Dionísio, morto, não ouviria mais o entoar da fúria divina das bacantes.
Silêncio de gente, silêncio de animais, silêncio de farfalhar de folhas. O eco repetia pedaços de coisas que tombavam, agora uma parede, daqui a um ano uma janela. O silvo não das serpentes do vento que tinha agora o seu caminho livre. A música não dos pássaros da água acumulada dentro das construções sem telhado, escorrendo depois por sobre panelas furadas, televisores arrebentados, trens parados e enferrujados. 
No fundo do grande mar vagavam os destroços mais leves dos navios e dos submarinos e dos petroleiros, explodidos por não terem sido frenados. Não tinha mais importância, o envenenamento das águas. Não havia vida a matar, agora.
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o dia sem nome, 17

O dia sem nome, 17.

Valparaiso, dia 14 de abril, 13 horas, hora de verão.

por favor, que caminho tomo pra chegar ao centro da cidade? – abaixando o resto do vidro do carro.
é só seguir esta rua. – curvando-se, pra ver quem perguntava.
vai pro centro? – levando a mão à maçaneta interna.
vou! – sorrindo.
quer carona? – abrindo a porta.
O jovem não respondeu. Olhou envergonhado, envergonhado não recusou, entrou, sentou, o outro verificou o trinco, se estava fechado, fazendo pressão do braço sobre as coxas do rapaz.
vai pra aula? – mudando a marcha e colocando a mão sobre os genitais do jovem.
O jovem não respondeu. Tentou tirar a mão que o apalpava mas teve vergonha.
quantos anos você tem? posso continuar? – abrindo ou tentando abrir o fecho da calça.
dezenove. – segurando a braguilha.
não quer que eu abra? – acariciando a parte interna das coxas do outro.
é melhor não! – colocando as duas mãos sobre o baixo ventre.
O outro não retirou a mão, entretanto.
vai pra aula?
vou.
não quer dar uma saída comigo? – continuando a acariciar o membro, que começava a inchar.
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o dia sem nome, 16

O dia sem nome, 16.

Eric não acordaria jamais. Jamais seria ouvida a gravação de sua vozinha aflita e soluçante. Por que Bengazi seria diferente das outras? Não. O destino de Bengazi estava escrito na mesma rota implacável das estrelas que tinham condenado todas as cidades da terra. E esse destino também se cumpriu.
A cidade se aquietou nos incontáveis dias e nas pacientes noites que se seguiram. Criminosos não foram libertados e outros tantos não chegaram a ser presos. Foi suspenso o choro infecundo dos inocentes. Os pactos de paz futura não chegaram a ser assinados, pelo mesmo motivo pelo qual pãezinhos no forno não chegaram a ser comidos. Cartomantes tinham sido pagas e não consumaram a leitura do fado triste dos esperançosos. Também não gastaram o dinheiro recebido. Ovos, larvas, crizálidas e girinos não floresceram para a sua participação na harmonia universal. Casas, ruas, cidades, desenhadas com cuidado, tiveram sustada a sua construção. Os indolentes deixaram de trabalhar e o trabalho ficaria à espera para todo o sempre. Nos hospitais desmancharam-se os tumores cancerosos e as hemorragias secaram.
Exemplares de Os Irmãos Karamázovi, em todos os idiomas do planeta, foram soterrados, foram incendiados, foram molhados, foram folheados por brisas desatentas, ventanias analfabetas, vendavais desintereessados em Ivan, que nunca mais falaria, de coração a coração, sobre o desespero do homem.
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