Desistória – capítulo 2.

Desistória – capítulo 2.

 

 

 

            Estes são aqueles que vieram da grande tribulação e lavaram seus vestidos.

 

            2. o grande meio-dia.

 

            é impressionante perceber a grandeza e a perseverança e a capacidade de luta do homem. é reconfortante sentir o poder de reconstrução e a grande concentração de forças que foi levada a efeito, a partir do grande desastre.

            não quero me lembrar daqueles dias de dor e de sangue. todos os que estão vivos, a não ser os mais pequeninos, têm também suas histórias cheias de espanto. eu, menina, salva por um desses monstruosos acasos inexplicáveis, quando tudo ao redor era horror e susto. e como eu, ali e acolá, criaturas avulsas saídas dos buracos, milagrezinhos mirrados de uma fortuna não programada, que se juntavam aos bocados, conjugando um milagre mais digno, de um pequeno grupo peregrino, até se perceber que o grande milagre acontecera, as pessoas se chegando em prantos, como ratos à busca de comida, de sono tranqüilo, e se juntando e se perguntando o que fazer e por onde começar.                      

            não quero me lembrar daqueles primeiros dias. há coisa que não se conta. há vergonha que não se passa adiante. há tortura que não se deve ressuscitar. há sordidez que se amarra à pedra do silêncio e se atira à água do esquecimento.

            e estes novos dias pedem esperanças. então, não quero me lembrar de escuridões, mas tão somente cantar e louvar este grande sol que se levantou hoje, este momento grandioso desse meio do dia.

            sobrevivente por um grande milagre, já que a morte coletiva me tinha rejeitado, me vi no meio de um grupo de pessoas que se amparavam, hoje compreendo que muito mais para compensar sofrimentos do que para partilhar o pão difícil. e nos víamos levantando tábuas e quebrando pedras e desfazendo ruínas e formando pequenos lares. são dias difíceis, diziam as pessoas grandes, e é preciso muita ordem. pessoas chegavam de longe, falando de reconquistas, contando que tinham conseguido fazer funcionar uma fábrica de tecidos ou que um hospital fora reconstruído. e muitas vezes éramos levados a abandonar um lar arruinado e mudávamos para uma cidade distante, com ruas melhores, com casinhas novas e cheias de uma austera alegria.

            homens chegaram do sul, explicavam os adultos, com seus planos de disciplina e trabalho e suas promessas de inesquecíveis vitórias. e eu crescia e sentia a conquista lenta do homem sobre a destruição. veio então o tempo em que não se conseguia diferençar o dia de hoje daqueles dias de antigamente, quando o mundo era tão evoluído e as pessoas tinham de tudo que queriam. mas os mais velhos, então, advertiam:

            o mundo nunca mais será o mesmo. houve perdas irreparáveis. estamos conquistando lentamente a antiga situação, mas houve perdas irreparáveis. não temos e talvez não tenhamos mais computadores. alguns funcionavam em locais não atingidos, mas não houve quem os decifrasse. contam que um velho os conhecia e começou a ensinar do seu funcionamento a um grupo de pessoas, mas eram tantos os pequenos conhecimentos que eles ignoravam, que ele desistiu de ensinar-lhes e começou a escrever suas lições, para que muitos pudessem aprender pelos livros. este homem morreu subitamente e não se encontrou até hoje alguém que o substituísse para decifrar o mistério daquelas máquinas silenciosas.

             os antigos livros estavam destruídos, sobraram alguns, muito poucos, e se percebeu que a sorte não escolhera bem os livros que poupara. punhados e punhados de idiotices, escritas para encher o vazio das cabeças das pessoas. como se se pudesse encher cabeças vazias com livros ocos, diziam os mais velhos. não se tapa buracos com mãos cheias de nada. e aqueles livros remanescentes eram todo o patrimônio do homem. o que pôde ser reconstruído foi reconstruído, está sendo reconstruído, mas houve conquistas antigas perdidas para todo o sempre.

            eu, inexperiente, cheia de júbilo frente ao grande projeto de reconquista do progresso, procurava entender o pessimismo destas pessoas mais velhas. mas não deixava de ficar muito feliz quando lembrava que voltávamos a ter carros nas ruas, postos de gasolina, bancos, correio, tanta coisa! que parecia um impossível sonho. e quando nossa cidade reconstruída foi sacudida um dia, inesperadamente, pelo ronco de um avião imenso, que a sobrevoava de sul a norte, então saímos todos às ruas e dançamos e resolvemos comemorar aquela imensa alegria, instituindo o dia do grande meio-dia.

            a festa era barulhenta e os tambores me lembraram cenas confusas dos dias da destruição. tive que tomar mais comprimidos que o habitual, porque certos barulhos diminuem a minha resistência e estes dias de hoje devem ser dias de grande resistência.

            foi exatamente isso o que aprendemos nos nossos grupos, no início da grande jornada. enquanto os grandes homens organizavam o refazer da civilização humana, foram criados grupos de encontro a que chamavam grupos de alegria. e nos grupos de alegria, dávamo-nos as mãos e nos sorríamos e conversávamos de experiências agradáveis. as líderes, geralmente senhoras de aspecto sereno e bondoso, as senhoras nos ensinavam a ser tranqüilos, a não pensar nos traumas sofridos naqueles dias de tanto horror.

            que houve horror! e mesmo não querendo lembrar, mesmo tomando os comprimidos para pacificação interna, ainda assim há momentos insuportáveis de tensão crescente e avassaladora. aprendemos naquelas palestras com músicas e danças, que do passado só se deve lembrar das coisas que ajudam a levantar o bom humor, não o que pode estrangular a voz.

            começo a falar do passado e me sinto trêmula e impelida a não tomar comprimido nenhum, como se eu mesma me tentasse a reviver tudo, ver até onde é possível resistir.

            mas fui ensinada a não me tentar e a resistir até o fim, para que me fosse possível participar do grande projeto. e eis que minha dor poderia se transformar realmente em loucura, se eu continuar querendo caminhar para trás.

            por isso quero me fixar na lembrança dos dias presentes e pensar apenas nas grandes coisas que foram reinventadas e redescobertas e tentar ficar feliz ao perceber que temos novamente filmes a assistir e jornais para ler.

            e que coisas contam estes filmes? se não uma alegria falsa e cruel e um eterno presente! como se não tivéssemos passado e nem memória.

            eu quero de novo minha memória!

            quero esquecer aqueles horríveis encontros de alegria, onde me programaram a apagar a dor e o sangue e a humilhação e a vergonha e o medo! quero de novo a dor e o sangue e a humilhação e a vergonha e o medo! que mundo será esse sem dor, sem sangue, sem humilhação, sem vergonha nem medo?

            eu não queria estar tão excitada, como se estivesse diante de um portal enigmático, diante do momento em que abro as portas de um antigo mundo desconhecido, mas onde vivi e onde sofri e percebo que não serei eu nunca, se não desvendar este segredo de dor: voltar atrás e me lembrar e, se for o caso, ficar louca. mas livre, livre desse fantasma de dias perdidos que fui obrigada a sepultar. sinto como se os mortos de todo o meu desespero estivessem pulando furiosos no fundo de suas sepulturas para se verem livres da tampa pesada e correrem ao meu pescoço para ferrar os dentes em minhas veias.

            eu não quero mais ser razoável!

            eu me sinto impelida a lembrar de tudo por que passei, escancarando esta porta negra!

            eu quero voltar a possuir o meu passado. que ele me pese como um fardo de morte, que ele me machuque como a lâmina que degola, que ele me atire no país da única loucura! quero meu passado de volta, para me sentir viva, sem o quê eu me sinto um monstro que só existe pela metade! um demônio sem antes!

            eu quero lembrar! daqueles barulhos surdos e imensos e daquele luzeiro horrendo, como se as estrelas todas tivessem caído sobre o campo! e eu, acordada no meio de tábuas queimadas, salva por mistério, debaixo de uma pia de banheiro que não se partira! e eu tentando, cheia de um só medo, tentando me fazer livre. e eu, em cima de destroços a contemplar fogueiras e escuridão, uma noite que não mais se acabava e quanto tempo me machuquei de encontro àqueles paus e paredes que fechavam meu caminho? e achei uma sacola de pão e comi e só me lembro de que, a cada vez que ouvia gritarias horríveis como se todos estivessem se matando entre si, me escondia nos buracos e esperava o silêncio. e não sei quanto tempo durou o pesadelo porque a noite não acabava. e dormi um sono que não era sono mas um imenso zumbido febril dentro de minha cabeça e a língua seca e a boca doída de tanto chorar e os olhos inchados que nada mais viam. e houve um momento em que o sol parecia que ia nascer. e no meio daquela madrugada que nunca chegava ao fim eu fui em direção à cidade. e lá chegando descobri um homem que dormia nu, com uma feia máscara de borracha ao lado. e eu o acordei e ele se assustou ao me ver e me pegou no colo e saiu correndo comigo em direção oposta à cidade. e por um momento escutamos ao longe gritos horríveis de muitas mulheres enlouquecidas e uma criança que gritava mais alto ainda e era como se elas estivessem trucidando uma vítima. e encontramos um bosque de árvores negras, de folhas caídas, e ali dormimos e comemos tipos de raízes, por vários dias. e então sucedeu

            eu não devia provocar tanto sofrimento, mergulhando nessas convulsas águas que são os meus dias perdidos

            mas eu quero ir até o fim ou enlouquecerei da loucura do talvez e do inatingido. sucedeu que ouvimos uns sons parecidos com música e de repente estávamos cercados por um estranhíssimo bando de pequeninas crianças vestidas com roupas muito coloridas, túnicas imensas; nas cabeças flores de papel multicor e de seus braços enormes franjas feitas de tiras de celofane, brilhantes e vivas. nos pescoços e nos braços e nos pulsos e nos tornozelos, uma infinidade de pulseiras de miçangas e contas e conchas e metal. e elas estavam grotescamente maquiladas, com as boquinhas de um rubro quase negro, enormes sobrancelhas desenhadas e manchas azuis e verdes e lilases sobre os olhos. e pareciam muito esquisitas esculturas vivas, um pesadelo colorido. e logo surgiram duas enormes e gordas mulheres, de branco, uma delas batendo um pandeiro, a outra com um pequeno gravador à pilha, que executava, numa velocidade lenta e irregular, uma marcha de banda. e as crianças nos cercaram e nos olharam curiosas e começaram a nos pegar, rindo de modo indescritível. e me beliscavam e eu cheia de medo me abracei às pernas do homem que cuidava de mim e ele as evitava, primeiro delicadamente, mas elas redobravam os risos e beliscavam mais e lá longe as duas gordas gargalhando como bruxas furiosas. e o homem começou a empurrar as crianças mas elas começaram a nos morder. então,

            passado fundo e inesquecível!

            então ele se levantou com um grito horrível, me colocou no colo e principiou a avançar, tentando abrir caminho no meio daquelas coisas monstruosas, mas o bando tresloucado começou a nos arranhar e a nos dar cabeçadas. fechei os olhos e gritei e quando percebi que rodava no colo dele, abri os olhos e vi que com uma das mãos ele agarrara um daqueles demônios e girava, fazendo com que seu corpinho abrisse um vazio em torno de nós, e era uma massa de sangue que derrubava tudo em volta e as bruxas gigantas tentaram avançar e uma delas foi golpeada no rosto e o sangue espirrou longe e ela soltava gemidos pavorosos e eu senti que corríamos desesperadamente.

            acordei no meio de umas mulheres de negro que me deram água e umas frutas escuras.

            e é a partir dessa água e dessas frutas que eles querem que eu construa meu mundo mas eu grito que meu mundo não pode existir sem aquele bando de pequenos demônios a me envolver durante todas as noites de sono intranqüilo.

            e é a partir desse dia que eles querem que eu viva. e é para matar meus dias anteriores que eu devo freqüentar os clubes com suas reuniões semanais que nos inoculam otimismo e, agora, eu mesma devo passar esta pálida crença a outras pessoas, destinada que fui a orientar um pequeno grupo de alegria.

            mas eu desobedeço!

            quero gritar a estas bondosas senhoras que nos enfiam goela adentro estes horrores de alegria e tranqüilidade, nos quais elas não acreditam, quero gritar que engulam elas esta falsa tranqüilidade e esta impura alegria, embrulhadas em fezes e sangue!

            eu não vou esquecer jamais aqueles monstrinhos que povoam minha lembrança aterrada! eles falam de um povo livre mas se esquecem de que não há povo livre, mas pessoas livres. e eu não abdico dessa minha liberdade cheia de dor. e é nessa dor que eu quero que me conheçam. e é dela que quero falar aos outros, para que saibam que houve mortes e houve sofrimento e houve vergonha e houve humilhação. e quero lhes dizer que não existe futuro se não existe passado. e que um mundo que mata o seu passado não vai andar para frente, mas para trás.

            todavia eu abro a porta e entro e sorrio para esse grupo de alegria que me espera e principio a desfiar um caminho de visões alegres. e cheios de otimismo discutimos um projeto qualquer e eu os tranqüilizo e lhes dou esperança. e quando aquelas crianças de sombra me rodeiam de novo e me mordem, me beliscam e me dão cabeçadas, eu, com os olhos molhados, falo alto, com a voz calma, para o silencioso grupo que me vigia:

            e essas lágrimas, de que serão?, se não forem de felicidade.

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