Memórias da Emília
Capítulos 4, 5 e 6
4 – O anjo falso. Protesto das crianças inglesas. Aparece Peter Pan. Conversas com o anjinho verdadeiro.
A criançada inglesa, depois que o Almirante entrou na sala de Dona Benta, foi com Pedrinho para o pomar.
– “O anjo! O anjo! – gritavam todas. – Queremos ver o anjo!…”
Pedrinho deteve-se diante da pitangueira e apontou para a estranha figura de mãos cruzadas no peito e olhos no céu, enganchada na forquilha da árvore.
– “Lá está ele! O anjo é aquilo.” Fez-se grande silêncio. Milhares de olhos azuis se enfocaram na figurinha. Súbito, uma das crianças exclamou: – “Que anjo feio!”, e a barulhada começou. “Não valia a pena virmos de tão longe para vermos isso”, gritou outra. E terceira: “Em qualquer casa de brinquedos em Londres temos coisa melhor”. E quarta: “Parece anjo de pau… Nem se mexe”.
Narizinho me fez sinal, a mim, Visconde, para que me mexesse e fiz uns movimentos muito desajeitados.
– “Quê? – berrou de repente uma menina. – Anjo de cartola? Onde já se viu isso?”
De fato. Na pressa da arrumação os meninos esqueceram-se de tirar da minha cabeça a célebre cartolinha, de modo que lá estava o anjo de cartola na cabeça, muito branca, porque também fora polvilhada de farinha de trigo.
Emília salvou a situação. Trepando no caixãozinho, pediu silêncio e disse:
– “Vou explicar o motivo da cartola. Dona Benta nos contou que a cartola é uma invenção inglesa; daí a nossa ideia de botar uma car-tolinha na cabeça dele como homenagem às crianças inglesas que o vinham visitar.”
Os inglesinhos entreolharam-se. A explicação era boa. Mas continuaram a estranhar o anjo.
– “Os que conheço dos livros de figura – disse um – são muito mais bonitos. São gordinhos. Esse é magro como bacalhau.”
Emília explicou:
– “É que andou doente. O pobrezinho quebrou a asa num tombo que deu lá nas estrelas. Está sarando; logo fica tão gorducho como antes. Não notam que está com a asa esquerda caída? Quebrou-a bem no encontro. Tia Nastácia já botou cola-tudo.”
– “Mas a cara dele não é de anjo – observou outra criança. – Parece cara feita com faca. Verdadeira cara de pau…”
– “É da doença – insistiu Emília. – Vocês que não têm asas não imaginam como quebradura de asa esquerda desfigura um pobre anjo…”
Apesar das belas explicações as crianças inglesas continuavam de nariz torcido. Não conseguiam engolir aquele anjo tão feio.
– “Francamente, perdemos a nossa viagem – murmuraram diversas – e o melhor é levarmos de volta os presentes trazidos. Esse anjo não merece nenhum, nem merece que brinquemos com ele. Só merece um pontapé…”
E a vaia começou.
– “Fora o anjo magro!…”
– “Morra o anjo feio!…”
– “Lincha o anjo cartoludo!…”
O berreiro tornava-se cada vez maior, e a coisa acabaria em desastre, se um lindo menino não surgisse berrando:
– “Parem! Nem mais uma palavra! Quem vai agir agora sou eu.”
– “Peter Pan!.” – exclamou Pedrinho, reconhecendo o famoso menino que jamais quis crescer.
– “Sim, sou Peter Pan, e já sei de tudo. Esse anjo é falso, é o tal Visconde disfarçado em anjo. O anjinho verdadeiro está escondido em qualquer parte.”
– “E se for assim?” – gritou Pedrinho assustado.
– “Se for assim – tornou Peter Pan – ou vocês nos mostram o anjinho verdadeiro, ou nós damos uma busca em regra neste sítio até o descobrirmos.”
Pedrinho encheu-se de coragem e disse com voz firme:
– “Nós estamos em nossa casa e saberemos defendê-la contra tudo e contra todos. Medo não temos medo de nada! Quem manda aqui no sítio sou eu – depois de vovó. Por bem a coisa vai, Senhor Pan, mas por mal a coisa não vai, não! Nem a pau! Nem a tiro de revólver! Lembre-se que o Almirante Brown está como refém lá na sala de vovó. A vida daquele velho nos foi confiada em garantia do bom comportamento de vocês…”
Peter Pan caiu em si. Além disso, não queria brigar; queria apenas ver o anjinho verdadeiro; de modo que perdeu a empáfia e disse conciliatoriamente:
– “Reconheço que está em sua casa, Pedrinho, mas você há de admitir que é uma verdadeira judiação nos receberem deste modo. Fizemos uma viagem longuíssima, por ordem do Rei, para visitar o anjinho, e ao chegarmos vocês nos impingem um macaco de sabugo! Ora, é preciso concordar que isso é um pouco meio muito…”
– “Macaco de sabugo dobre a língua! – gritou Emília. – O Visconde é um verdadeiro sábio, estimadíssimo de todos daqui, até de Dona Benta. Retire o macaco!…”
Peter Pan, que não queria brigar, retirou o macaco e disse, voltando-se para Pedrinho:
– “Vamos. Responda à minha interpelação.”
Pedrinho confessou tudo.
– “Sim, é verdade. Confesso que o anjo verdadeiro é outro – e está bem escondido. Fizemos isso porque sabemos o que são crianças e tivemos medo que nos escangalhassem o anjinho.”
– “Muito bem! – exclamou Peter Pan. – Agora que lealmente nos confessou a maroteira, mostre-nos o anjo real. Não receie coisa alguma. Eu me responsabilizo por tudo. Não deixarei que criança nenhuma toque nele.”
– “Isso muda o aspecto da questão – tornou Pedrinho. – Já que você se responsabiliza, poderei mostrar o anjinho verdadeiro. Mas ninguém há de pegar nele! É delicadíssimo, um verdadeiro vidro, e assusta-se com qualquer coisa.”
– “Não tenha medo de nada, Pedrinho. Eu não deixarei que as crianças da Inglaterra quebrem o anjinho.”
Enquanto os dois discutiam, Emília se atracava com Alice do País das Maravilhas, que também viera no bando. Alice estava torcendo o nariz a tudo e achando que aquele sítio não parecia digno de um anjinho. – “Uma casa velha, estas árvores tortas por aqui, aquele leitão lá longe nos espiando – então isto lá é morada digna de um anjinho caído do céu? Os anjos querem nuvens bem redondas. Se o levássemos para Londres, haveríamos de dar-lhe um palácio de cristal cheio de nuvens de ouro – ouro fofo bem macio.”
– “A senhora está muito enganada – rebateu Emília. – O anjinho anda muito satisfeito por aqui. Tem se regalado de brincar. Outro dia me disse que estava enjoado de nuvens redondas e não trocava este pomar por todas as nuvens do céu.”
– “Disse isso por simples delicadeza – volveu Alice. – Os anjos são as criaturas mais delicadas que há. Mas se você entrar bem dentro da ideia dele, vai ver que está doidinho por ir conosco para a Inglaterra.”
– “Pois daqui não sai, nem que o mundo venha abaixo! – gritou Emília. – Se fazem muita questão de possuir um anjo, podem levar o da pitangueira…”
Estavam nesse ponto quando Pedrinho e Peter Pan chegaram a acordo. Depois de tudo bem combinado, o reizinho da Terra do Nunca bateu palmas e gritou:
– “Criançada! Pedrinho cedeu aos meus argumentos. Vai mostrar-nos o anjinho verdadeiro, mas com uma condição: ninguém tocar nele, porque é um verdadeiro vidro. Espero que essa condição seja respeitada por todos, visto como acabo de dar a Pedrinho a minha palavra de honra.”
Houve um murmúrio de descontentamento. As crianças inglesas são como todas as mais: não se contentam com ver as coisas, querem pegar também. Em todo caso, como Peter Pan dera a sua palavra de honra, não houve remédio senão se conformarem.
– “Emília – disse então Pedrinho -, vá depressa ao oco e traga o anjo.”
Emília foi correndo. Instantes depois voltava, muito cheia de si, trazendo pela mão a encantadora criaturinha celeste.
Que delírio! Na maior curiosidade a criançada inglesa se reuniu em redor dele; como fossem muitas, as que não conseguiram lugar na frente treparam às árvores para ver melhor. As árvores do pomar ficaram mais cheias de crianças do que de frutas. Volta e meia um galho estalava e caía com diversas, num berreiro medonho.
Quem primeiro dirigiu a palavra ao anjinho foi Alice. Ajoelhou-se diante dele, no maior dos enlevos, e murmurou:
– “Encantinho, como é o seu nome?”
– “Meu nome é Florzinha das Alturas para a servir” – foi a galanteza da resposta.
– “Como é delicado! – exclamou Alice voltando-se para Peter Pan. – Florzinha das Alturas para me servir!… E que idade tem, anjinho?”
– “Não tenho idade – respondeu ele. – Sou parado, não cresço. Há séculos que vivo sempre deste mesmo tamanhinho…”
– “Está vendo, Peter Pan? – gritou Alice. – Tal qual você. É parado. Não cresce…”
– “É como eu também – juntou Emília. – Eu também não cresço. Nasci deste tamanho e deste tamanho ficarei sempre. Sabem que a professora do anjinho sou eu? Eu, sim!… Tenho-lhe ensinado mil coisas. Pergunte-lhe, por exemplo, o que é flor.”
Alice perguntou ao anjinho o que era flor. – “Flor – respondeu ele – é um sonho colorido e cheiroso, que com as raízes as plantas tiram do escuro da terra e abrem no ar. Foi como Emília me ensinou.”
Todos se admiraram da poesia daquela definição, mas Alice não queria ouvir o anjinho repisar as coisas ensinadas pela Emília; queria saber como eram as coisas lá no céu.
– “Conte-nos como é lá. Deve ser lindo, não? Conte a sua vidinha toda…”
O anjinho contou:
– “Não me lembro quando nasci. Acho que sou filho das nuvens e das estrelas, porque sempre me achei rodeado de nuvens e estrelas. Meu principal brinquedo era fazer bolinhos de massa cósmica para jogá-los no éter. Esses bolinhos iam crescendo no espaço e viravam novas estrelas…”
– “E os cometas de cauda? Fazia também bolinhos de cometas? – quis saber Alice.”
– “Sim. É muito fácil. Basta fazer um bolinho redondo e depois dar um puxo dum lado, deixando um começo de rabinho. Quando a gente joga esses bolinhos no espaço, a velocidade vai fazendo que o rabinho se encompride cada vez mais, e se abra todo, muito fofo, adquirindo aquela forma de cauda de cometa que vocês aqui conhecem…”
A criançada inglesa estava maravilhada e doida por ir brincar de “bolinhos de estrelas” no céu. Emília torceu o nariz, e como uma das crianças lhe perguntasse se também não estava doida por aquilo respondeu com ar de farta:
– “Já me enjoei disso. Fiz tanto bolinho de estrela e cometa lá na Via Láctea que hoje até prefiro fazer bolinhos de barro. Estou farta…”
As crianças inglesas olharam-na com profunda inveja. Alice prosseguiu nas perguntas. – “E as nuvens? Muito macias?”
– “Mais que a paina daqui. Não existe nada mais lindo que as nuvens, porque não param nunca de mudar de forma e cor. Eu rolava por cima das redondas, como se fossem travesseiros de sonho. Atirava-me de uma para outra, às vezes de grande altura. Quando caía, mergulhava até ao meio. Uma gostosura!…”
– “Mas brincava sozinho?”
– “Não. Há lá milhões de anjinhos como eu. Brincávamos o dia todo. Foi numa dessas brincadeiras que houve o desastre.”
– “Conte como foi esse desastre” – pediu Alice.
– “Eu estava com os outros brincando de rolar de nuvem em nuvem. Nisto formou-se embaixo de nós uma grande. Dei um pulo. Quando caía, afundei dentro da nuvem até ao meio, gostosamente. Súbito, um choque aqui no encontro da asa esquerda. Dei um grito. Eu havia esbarrado num corpo estranho.”
– “Corpo estranho? – exclamou Alice. – Pois há corpos estranhos nas nuvens?”
– “Não há – disse o anjinho -, mas nesse dia houve. Dentro da nuvem estava um corpo estranho que eu só enxerguei no momento do choque. Tinha pernas e braços, cabeça e cartola…”
– “Era o Visconde! – berrou Emília. – Na nossa viagem ao céu ele caiu da Lua e ficou girando no espaço como satélite. Numa das voltas com certeza esbarrou no anjinho.”
– “E depois?” – indagou Alice, cada vez mais curiosa.
– “Depois perdi os sentidos. Não vi mais nada. Quando meus olhos se abriram, encontrei-me na imensa planície da Via Láctea, no colo de uma criaturinha estranha. Era aqui a Emília…”
Emília voltou-se para a criançada, radiante de orgulho, para que todos vissem que era ela mesma.
– “E que mais?”
– “Emília me ninava, e quando abri os olhos me falou uma porção de coisas que não entendi. Depois vieram vindo os outros. Apareceu aquela lá – e apontou para Narizinho -; e aquele lá – e apontou para Pedrinho. – E também um senhor muito sério, de grandes orelhas e olhar triste.”
– “O Burro Falante!” – gritou Emília.
Peter Pan cochichou para Pedrinho que fazia muita questão de conhecer o burro.
– “E depois?” – volveu Alice.
– “Depois descemos do céu – disse o anjinho. – Dona Benta nos havia chamado com um berro: ‘Já para baixo, cambada!’ Os astrônomos estavam aqui neste sítio, se queixando das reinações feitas lá nas alturas. Quando cheguei e vi esses homens tive medo. Umas barbas grandes, óculos no nariz, carecas…”
– “E como vai se dando por aqui?”
– “Otimamente! – respondeu o anjinho. – Todos me querem muito e me tratam na palma da mão. Nastácia faz uns quitutes que não existem lá no céu. É das pipocas que eu gosto mais. Também dos bolinhos…”
– “Bolinhos de estrelas?”
– “Não. Dum pó branco…”
– “Farinha de trigo!” – berrou Emília.
– “Ela amassa esse pó com gema de ovo e gordura – continuou o anjinho. – Enrola os bolinhos entre as palmas brancas de suas mãos pretas e os põe em lata num buraco muito quente chamado forno. Passado algum tempo os bolinhos ficam no ponto – e é só comer.”
– “Que galanteza! – exclamou Alice. – Que amor! Com que graça ele conta uma simples receita de bolinho!… E frutas? Também come?”
– “Se come! – berrou Emília. – Gulosíssimo, até. Para devorar pitangas, não há outro.”
– “Sim – confirmou o anjinho -, gosto muito de pitangas, quando estão com o vermelho já bem escuro. Das verdes, amarelas ou apenas um pouco vermelhas, não gosto. Muito azedas. Outra fruta de que gosto muito são as jatibucabas…”
– “Ja-bu-ti-ca-bas! – emendou Emília. – Não há meio de ele dizer certo…”
– “Também vocês aqui no Brasil arranjam cada nome para as frutas! – observou Alice, que nunca tinha visto jabuticaba. – Essa, a avaliar pelo nome, deve ser do tamanho de uma melancia.”
– “Ao contrário – disse Narizinho. – O nome é grande, mas a fruta é das menores que temos. Pretinha e assinzinha…”
– “E agora é tempo?” – quis saber Peter Pan, já com água na boca.
– “Antes ‘sesse’! – suspirou Emília. – Agora só temos laranja. Gosta de laranja-lima, Peter?”
– “Se gosto! – respondeu ele. – Pelo-me! Qual é o pé?”
– “Aquele baixinho, perto da cerca. Tem canivete?”
Peter Pan correu a apanhar meia dúzia de laranjas, que veio chupar perto do anjinho. Ao verem aquilo as outras crianças também ficaram com água na boca. Foi uma correria.
– “Oranges, oranges!” – gritavam em inglês.
O avanço foi tamanho que não ficou no pomar uma só laranja para remédio. – “Eu quero de cuia!” – dizia uma. – “Eu quero de gomo!” – dizia outra. Um amarelo tapete de cascas recobriu o chão.
– “Que coisa gostosa – murmurou Alice – chupar laranja-lima ao lado de um anjinho do céu que conta as coisas de lá! Estou mudando de opinião, Emília. Estou achando que esse sítio de Dona Benta é ainda mais gostoso que o nosso Kensington Garden lá de Londres…”
– “E é mesmo – observou Narizinho. – Não há lugar no mundo que valha o sítio de vovó. Quem o vê pela primeira vez, com estas árvores velhas, todo espandongado, não dá nada por ele. Mas depois que o conhece não troca nem pela Califórnia, que é um paraíso. O sítio de vovó é gostoso como um chinelo velho.”
E a menina pôs-se a contar as mil coisas passadas ali, as aventuras do pó de pirlimpimpim, o encontro do Burro Falante lá no País das Fábulas, o casamento dela com o Príncipe Escamado, a ida ao País da Gramática e outros episódios aventurescos.
– “Até ao País da Gramática vocês foram?” – exclamou Alice admirada.
– “E saiba que nos divertimos muito. O Visconde raptou um ditongo e Emília desmoralizou completamente uma velha coroca implicantíssima, chamada Ortografia Etimológica. Olhe, Alice, se você passar dois dias aqui conosco, juro que não quer mais saber da Inglaterra.”
– “Estou vendo – respondeu Alice. – Isto aqui parece que vale a pena…”
5 – O Almirante assombra-se com o que vê.
Lá na sua salinha Dona Benta conversava com o Almirante Brown sobre a política do Império Britânico. O Almirante já dormira uma boa soneca e agora, sentado na rede, ia bebendo o uísque mandado vir da venda do Elias Turco. Era falsificado. Mesmo assim o velho inglês o bebia, embora com caretas a cada gole.
– “Pois é isso, minha senhora. Cá estou feito capão de pintos, a atravessar os mares com o meu exército de crianças. A trabalheira que me deram na viagem! Até suo só de lembrar-me disso…”
– “E por falar, Almirante, como há de ser para enchermos tantas barriguinhas? O mantimento que há aqui no sítio não dá para a décima parte.”
O velho inglês sorriu.
– “Não se incomode, minha senhora. Providenciei sobre tudo. Dentro em pouco chegarão os meus marinheiros com um grande carregamento de comedorias. Poderá a senhora ter a bondade de levar-me ao pomar? Preciso ver o anjinho. Mas aqui entre nós: é mesmo um anjinho do céu ou trata-se de alguma reinação dos seus netos, um simples anjo de procissão?”
– “É dos legítimos, Almirante, posso garantir e o senhor o verificará com os seus próprios olhos. Por mais prodigioso que isto seja, não passa da mais pura realidade. Ah, Almirante, Vossa Honra não imagina o que acontece neste sítio! Só vendo. Tanta e tanta coisa, que hoje, como já disse a Vossa Honra, não me admiro de mais nada. Se o Sol aparecer ali na porteira e me disser: – ‘Boa tarde, Dona Benta!’ – eu o recebo como se fosse o Compadre Teodorico. – ‘Entre, Senhor Sol. A casa é sua.’ Positivamente não me admiro de mais nada, nada, nada…”
Os dois velhos saíram de braços dados para a visita ao anjinho. Foi difícil abrir passagem no bolo de crianças apinhadas em redor dele. Ao ver o anjinho, lindo, lindo de não poder mais, o Almirante Brown arregalou os olhos e puxou os óculos. Examinou o anjinho atentamente, sempre desconfiado de algum embuste; apalpou o encontro das asas para ver se não eram asas de anjo de procissão.
Emília advertiu-o:
– “Não pegue com muita força que quebra. Ele é um vidro.”
O Almirante sacudia a cabeça, pensativo.
– “É extraordinário, não há dúvida! Tenho setenta anos e jamais me defrontei com um prodígio assim. Quando chegar a Londres e der ao rei o meu testemunho, é bem possível que Sua Majestade se assanhe e queira vir também, queira vir ver com os seus reais olhos este assombroso prodígio…”
– “Ótimo! – exclamou Dona Benta. – Que venha, que venha sem a menor cerimônia. A única pessoa que ainda não apareceu por aqui foi um rei de verdade. Reis da fábula e dos países maravilhosos, desses que usam coroinhas de ouro, temo-los tido aos montes.”
O Almirante não cessava de assombrar-se.
– “Que coisa extraordinária! Um anjinho caído do céu…”
– “Caído não, Almirante – corrigiu Emília. – Trazido. Quem o trouxe fui eu.”
– “Quem é esta estranha senhorita?” – indagou o Almirante, pondo os olhos na boneca.
– “Pois é a Emília, não vê? – disse Dona Benta. – De fato foi ela quem trouxe o anjinho lá da Via Láctea, onde o ‘caçou’, como costuma dizer.”
– “Ahn! A Emília, sim, a Senhora Marquesa de Rabicó! – disse o Almirante recordando-se. – Sei, sei. Sua Majestade a Rainha Viúva já me falou das proezas desta famosa criaturinha, mostrando até muito desejo de conhecê-la pessoalmente.”
– “Foi pena eu não ter sabido disso antes – volveu Dona Benta. – Já estivemos em Londres, na nossa viagem em torno do mundo para estudar geografia. Se eu soubesse do desejo da rainha, teria feito uma visita a Sua Majestade para a apresentação da Emília…”
Depois de bem visto o anjinho, e de uma prosa com ele, o Almirante afastou-se, sempre de braço dado a Dona Benta. Foram dar uma volta pelo sítio.
– “Estou achando tudo por aqui muito poético – disse o inglês correndo os olhos pelas árvores. – Que lindo este imenso tapete amarelo com que a senhora forrou o pomar!…”
Dona Benta riu-se. O Almirante tinha a vista ainda mais fraca que a dela, de modo que tomou o chão forrado de cascas de laranja por um imenso tapete amarelo.
Nisto uma vaca mugiu.
– “É a Mocha – explicou Dona Benta – uma vaca excelente que temos aqui há já muitos anos.”
– “Meu pai foi criador de vacas Jérsei – disse o Almirante – e eu ainda conservo algumas da sua criação. Quando voltar à Inglaterra hei de mandar para aqui uma de presente. Leiteiras melhores não existem.”
– “Pois ficarei imensamente agradecida – respondeu Dona Benta. – A pobre da Mocha está bastante velha. Mal dá o leite necessário ao consumo da casa.”
No estábulo a Mocha teve a honra de ser apresentada ao Almirante Brown, o qual foi saudado por um Mu! especial, em português, visto que a pobre vaca não sabia uma só palavra de inglês, nem yes. O Almirante gabou os seus enormes olhos cheios de bondade.
– “Vê-se que é uma vaca de muito bons sentimentos mas pouco leite – disse o velho marujo. – Quantos litros dá?”
– “Não chega a três” – respondeu Dona Benta.
O filho do criador de vacas Jérsei riu-se.
– “As de meu pai davam dez vezes isso.”
Dona Benta arregalou os olhos.
– “Ah! Eu aqui com uma assim até montava uma fábrica de queijo…”
– “Há de tê-la, minha senhora. Há de tê-la.”
Nisto um zurro muito discreto soou.
– “Quem é?” – quis saber o Almirante.
– “É o Conselheiro, o nosso Burro Falante – explicou Dona Benta. Nele é que os meninos foram para o céu.”
O Almirante Brown sorriu, pensando lá consigo: – “Pobre velha! Visivelmente está caduca”. Mas quando foi apresentado ao Burro Falante e este murmurou, na sua voz grave de burro da fábula: – “Tenho muita honra em conhecer Vossa Senhoria” – o Almirante quase caiu para trás. Teve de segurar-se no rabo que o burro lhe estendeu.
– “É espantoso, minha senhora! Está aqui um fenômeno que se eu contar ao Rei Eduardo ele julgará que é caduquice minha. Um burro falante! Isto positivamente me deixa com as ideias atrapalhadas…”
Dona Benta gozou o atrapalhamento do inglês.
– “Foi o que me sucedeu no começo, Almirante. Fiquei também atrapalhada, sem saber o que pensar. Depois fui me acostumando. Hoje acho tão natural que esse burro fale, como acho natural que uma laranjeira produza laranjas. Todas as tardes chego até aqui para dois dedos de prosa. Além de falante, o nosso Conselheiro é um puro filósofo.”
– “De que escola?”
– “Um filósofo estóico. Costumo ler-lhe trechos das Meditações de Marco Aurélio. Os comentários que ele faz mereciam ser escritos e publicados.”
O Almirante não conseguia voltar-se do assombro.
– “Mas… mas, Dona Benta, a senhora já refletiu que isto é um fenômeno que contradiz tudo quanto a ciência estabeleceu a respeito da fala e da inteligência dos animais?”
– “Refleti, sim. Eu sei o que tenho em casa, Senhor Almirante.”
Um tropel e uma algazarra interromperam o diálogo. Pedrinho e Peter Pan vinham correndo para ali, acompanhados de mais de cem crianças.
– “O burro que fala! O burro que fala! – gritavam todas. – Vamos conversar com o burro que fala!…”
Chegaram. Em torno do excelente animal formou-se uma roda enorme. Todos falavam ao mesmo tempo, perguntando mil coisas ao pobre Conselheiro, que se via tonto para atender a tantos clientes.
Dona Benta e o Almirante deixaram-nos naquele divertimento que não existia na Inglaterra e recolheram-se à salinha. Estavam lá, ainda comentando o prodigioso caso do Burro Falante, quando Tia Nastácia veio dizer que um grupo de marinheiros se aproximava. O Almirante sorriu.
– “São as comedorias que vêm vindo – disse ele – e não é sem tempo. Com o aperitivo das laranjas que chuparam, as crianças devem estar tinindo de fome.” E assim era. Mal avistaram os marinheiros do almoço, uma gritaria atroadora encheu os ares.
– “O lanche! O lanche!…”
Abandonaram o anjinho, o Burro Falante e as árvores em que estavam trepadas para só cuidarem dos estômagos.
Que suculento lanche foi aquele! Bem se via andar ali o dedo do Rei da Inglaterra. Sanduíches de todas as qualidades, queijos, geleias de frutas, maçãs e peras, cremes e pãezinhos em quantidades enormes.
Tia Nastácia veio espiar. Aquela abundância encantou-a.
– “Ora graças! – murmurou a velha preta. – Se não chegasse esse reforço, isto por aqui ficava como fazenda por onde passou nuvem de gafanhotos. Nem a casca das árvores se salvaria… Credo!”
6 – Onde aparece um famoso marinheiro.
Pedrinho insinuou-se entre os marujos. Pela primeira vez via os famosos mariners da maior esquadra do mundo. Vermelhaços, louros e ruivos, com calças de boca-de-sino. E que caras havia entre eles! De puros lobos-do-mar. Em dado momento, porém, Pedrinho empalideceu. Um dos marujos o impressionara profundamente.
Saiu dali e correu em procura de Peter Pan, que estava atracado com um sanduíche de presunto de York.
– “Tenho uma coisa muito séria a dizer – murmurou-lhe Pedrinho a meia-voz. – Engula isso depressa e apareça lá no pomar” – e foi esperá-lo debaixo da pitangueira.
Peter Pan não tardou.
– “Que há?” – indagou, engolindo o último bocado do sanduíche.
– “Há que descobri uma coisa muito séria: o Capitão Gancho2 está entre os marinheiros que vieram trazer o almoço. Reconheci-o perfeitamente.”
Peter Pan empalideceu.
– “Não pode ser, Pedrinho! Naquela batalha no navio dos corsários bati-me a espada com esse monstro, e o fui apertando de golpes e mais golpes, e ele recuando, recuando até que – tchibum! – caiu n’água, bem dentro da goela do crocodilo. Foi assim que o Capitão Gancho morreu.”
– “Morreu, nada! Essa gente não morre. Com certeza comeu o crocodilo, em vez de o crocodilo comer a ele. E a prova é que o vi no meio dos lobos-do-mar que vieram com o lanche. Vi-o com estes meus olhos, Peter! Cheguei pertinho, cheirei. Ele mesmo, com a mão de gancho calçada numa luva e aquele fedor de pirata…”
Peter Pan permaneceu uns instantes pensativo.
– “E que quererá por aqui?”
– “Certamente que anda atrás de você” – sugeriu Pedrinho.
– “Impossível! Ninguém sabia que eu vinha. Nada contei a ninguém – nem a Wendy. Resolvi embarcar no momento de o navio sair. Basta dizer que fui a última pessoa que se meteu a bordo. Não, Pedrinho. Não foi por minha causa que o Capitão Gancho veio. Foi por causa do anjinho, juro!…”
– “Mas que há de querer com o anjinho?”
– “É boa! Raptá-lo. Você não calcula que negócio é um anjinho desses nas unhas de um explorador. Já não digo para trabalhar em circo, mas no cinema, Pedrinho! No cinema! Em Hollywood! Para entrar nas fitas das Diones, da Shirley, do Jack Cooper! Coisa de render milhões. Nunca houve no mundo uma estrelinha anjo.”
– “Realmente – murmurou Pedrinho. – Até eu já havia pensado nisso…”
– “Pois juro, Pedrinho, que o Capitão Gancho veio com essa idéia na cabeça, e também juro que já está de plano formado para furtar o anjinho.”
– “Acha bom prevenirmos o Almirante?”
– “Nada disso. Eu não dou importância a gente grande. Costumo resolver todas as dificuldades por mim mesmo, com a meninada. Escute. Existem armas por aqui? Espadas, lanças, pistolas?”
Pedrinho suspirou.
– “Ah, Peter Pan! Se você soubesse que boba e medrosa é a vovó… Tem medo de tudo, até das baratas. Não pode ver um revólver. Faca, só admite essas de mesa, de ponta redonda. Em matéria de armas só tenho uma espingardinha de cano de guarda-chuva que eu mesmo fiz, e o meu velho bodoque…”
Peter Pan sorriu com superioridade.
– “Pois lá na Terra do Nunca temos um verdadeiro arsenal. Depois de bater o Capitão Gancho, fiquei com todas as armas dos corsários. Até um canhãozinho do navio pirata eu levei para a Terra do Nunca.”
– “Levou um canhão!?…”
– “Só não levei os grandes por serem muito pesados e consumirem muita pólvora. Você não imagina, Pedrinho, como canhão grande come pólvora! Mas espadas, pistolas, espingardas, lanças, machados e punhais, isso levamos tudo. Lembra-se daqueles lobos que nos rondavam por lá? Pois caímos de tiros neles. Não ficou um! Os que não morreram, fugiram com cem pernas, apavoradíssimos! Nossa caverna lá na Terra do Nunca está hoje como a fortaleza do Gibraltar: inexpugnável!”
Pedrinho fremiu de entusiasmo; depois suspirou, pensando com raiva do pacifismo de Dona Benta.
– “Que pena! – exclamou. – Se vovó deixasse, poderíamos também fazer disto aqui uma fortaleza inexpugnável. Está vendo aquele cupim lá no pasto? Tem um oco ótimo para ninho de metralhadora.”
– “Também pelo alto destas árvores é possível esconderem-se muitos atiradores – observou Peter Pan correndo os olhos pelo pomar. – Você, não sei, mas eu sou capaz de transformar isto aqui numa tremenda fortaleza. Olhe: daquele lado corro uma linha dupla de trincheiras. À esquerda e à direita abro fossos intransponíveis…”
– “Com uma ponte levadiça!” – ajuntou Pedrinho, entusiasmado.
– “Isso só em castelo” – volveu Peter Pan em tom de desprezo ante os conhecimentos militares de Pedrinho.
Nesse instante um vulto atraiu-lhes a atenção – um marinheiro que caminhava disfarçadamente, repetidas vezes olhando para trás.
– “Ele!” – cochichou Pedrinho. Peter Pan, velho conhecedor do Capitão Gancho, concordou.
– “Tem razão, Pedrinho. É ele mesmo! Só que enfiou a mão de gancho naquela luva para disfarçarse. Onde está o anjinho?”
– “No oco da figueira grande, lá onde o escondemos quando a criançada apareceu. Depois que os marinheiros do almoço chegaram, dei ordem à Emília para que o guardasse no oco novamente.”
– “Onde é a figueira?”
– “Aquela grandona, lá. É oca por dentro, como as árvores da Terra do Nunca.”
Os dois meninos ocultaram-se atrás da pitangueira para melhor seguirem os movimentos do ladrão. O infame corsário, sempre na ponta dos pés, olhava em todas as direções, farejando qualquer coisa.
– “Parece que é pelo faro que esses monstros se guiam” – observou Peter Pan.
– “Mas com o anjinho não arranja nada, ele é totalmente inodoro.”
– “Que quer dizer isso?”
– “Inodoro quer dizer sem cheiro nenhum, como a água. A água é incolor, inodora e insípida.”
– “Mas é capaz de descobri-lo por indução” – sugeriu Peter Pan.
Foi a vez de Pedrinho perguntar o que era indução.
– “É uma espécie de adivinhação lógica – disse Peter Pan. – Juro que assim que o Capitão Gancho enxergar a figueira pensará em oco, porque quase todas as figueiras velhas têm ocos; e pensando em oco, pensará no anjinho escondido lá dentro. Isso é que é indução.”
E foi o que se deu. Mal o corsário enxergou a figueira, induziu logo e pôs-se a caminhar na direção dela.
Nisto apareceu, inesperadamente, um segundo vulto.
– “Olhe!… Vem vindo outro. A coisa se complica…”
Pedrinho não tardou a reconhecê-lo.
– “Popeye! O marinheiro Popeye, Peter!
Peter Pan não conhecia esse figurão.
– “Quem é ele?” – perguntou.
– “Um homenzinho terrível, Peter. Não há no mundo quem o vença. Derrota tudo. Será que é cúmplice do Capitão?”
Não era. A conversa entre Popeye e o corsário ia mostrar que não era. Os meninos ouviram tudo perfeitamente.
– “Viva, Senhor Popeye! – exclamou o Capitão Gancho. – Que é que o traz por aqui?”
– “O mesmo que traz a você, Capitão” – respondeu Popeye na sua voz rouquíssima.
– “Acho que podemos nos entender e nos ajudar mutuamente – tornou Gancho. – Vou contar tudo. Vim entre os marinheiros do Almirante Brown com a idéia de levar o anjinho para Londres. Renderá bom dinheiro num circo.”
Popeye sorriu.
– “Pois saiba que tive a mesma idéia e vim dos Estados Unidos para levá-lo a Hollywood. No cinema esse anjo dará mais sorte do que em todos os circos do universo. Não podemos, pois, nos entender, Senhor Capitão Gancho.”
– “Com seiscentos milhões de colubrinas! – urrou o corsário. – Sei que você é valente, mas não tenho medo de caretas. Vim para levar o anjinho e hei de levá-lo.”
Popeye não respondeu. Limitou-se a rir e soltar uma baforada do seu famoso cachimbo de apito – pu! pu!
Ofendido por aquele desprezo, o Capitão Gancho foi descalçando a luva. O horrendo gancho de ferro apareceu, de ponta afiadíssima.
Os dois meninos, atrás da pitangueira, começaram a sentir-se eletrizados. Peter Pan teve dó de Popeye, achou que estava ali, estava escalavrado para o resto da vida. Pedrinho, entretanto, apostou em Popeye.
A luta rompeu. Os dois marinheiros atracaram-se com a maior fúria. Eram golpes e mais golpes, um em cima do outro. Um soco de Popeye na queixada de Gancho o fez bambear, como bêbedo; forte, porém, que era o pirata, logo se firmou nas pernas e avançou, desferindo uma ganchada contra o ombro de Popeye. O que a este valeu foi a agilidade. No momento em que o gancho vinha descendo, Popeye quebrou o corpo. Mesmo assim foi riscado de leve. E a luta prosseguia cada vez mais feroz, com rasteiras, munhecaços, pontapés na barriga. Durante minutos, nenhum levou vantagem. Os dois contendores equivaliam-se em força.
– “Esse Popeye não é homem para medir-se com o Capitão Gancho. Acabará cansado e apanhando” – murmurou Peter Pan ao ouvido de Pedrinho.
– “É que Popeye ainda não engoliu o espinafre” – explicou Pedrinho, deixando Peter Pan na mesma.
Outra ganchada do corsário riscou o ombro do marinheiro. Popeye, então, enfureceu-se, afastando-se dez passos, sacou do bolso a lata de espinafre, cujo conteúdo engoliu a meio.
– “Agora você vai ver!” – cochichou Pedrinho.
E Peter Pan viu. Viu Popeye avançar contra o corsário numa fúria louca, com os músculos dos braços crescidos como bolas. Ao primeiro soco dado nas fuças do Capitão, este cambaleou e foi estatelar-se no chão a oito metros de distância.
– “Está vendo o que é murro?” – murmurou Pedrinho entusiasmado.
Mas o Capitão Gancho levantou-se e investiu mais uma vez. Coitado! Levou tal roda de murros, que ficou como paçoca que sai do pilão. Popeye amassou-o. Mas amassou mesmo, como quem amassa pão. Amassou-o de tal modo que o deixou transformado em pasta de gente.
Peter Pan arregalava os olhos, no maior dos assombros.
– “Irra! – exclamou. – Tenho visto cabras valentes, mas como esse Senhor Popeye, nunca! Cada soco parece pancada de martelo-pilão.
– “Ah, Popeye é assim – disse Pedrinho. – Sem espinafre, não vale nada, apanha de qualquer punga. Mas quando engole uma dose de espinafre, ah, não existe no mundo quem possa com ele!”
O barulho da luta atraíra a atenção da criançada e do Almirante. Vieram todos correndo.
– “Que foi? Que foi?” Pedrinho contou o que se havia passado.
– “Bandidos! – exclamou o Almirante Brown. – Esses dois marinheiros vieram sem ser convidados. Não figuram na minha lista. Vou pô-los a ferros nos porões do Wonderland.”
– “Pô-los é modo de dizer – advertiu Pedrinho. – Só existe um. O outro já virou pasta de gente. O que há a fazer é enterrá-lo, bem fundo.”
O Almirante aproximou-se do marinheiro caído e examinou-o. Viu que de fato era assim. Em seguida voltou-se para Popeye.
– “E vosmecê, Senhor Popeye! Estou reconhecendo-o muito bem. Que história é esta? Como se meteu na tripulação do Wonderland sem ter sido engajado?”
Popeye, que estava bêbedo como uma cabra, riu-se. – “Ah, ah, ah! – e atirou umas baforadas do cachimbo antes de responder. Cada baforada era um apitinho: pu! pu! E na sua voz rouquíssima disse: -I am a sailor man.”
– “Sei disso! – berrou o Almirante. – E sei também que vai passar uns tempos nos porões do Wonderland, com umas pulseirinhas de ferro nas munhecas.”
O ultrabêbedo Popeye respondeu com mais três apitos de barofadas e um – “Ah, ah, ah!” – rouquíssimo.
Indignado com o desrespeito, o Almirante Brown gritou para os marujos:
– “Todos aqui! Agarrem-me este bêbedo e metam-no a ferros!”
Popeye continuava impassível. Fez mais um – pu! pu! – e caiu em guarda.
A luta entre Popeye e os marinheiros do Wonderland foi dessas coisas que só gênios do tamanho de Shakespeare e Dante se atrevem a descrever – e mesmo assim descrevem mal. Nunca houve tanta pancada no mundo. Se fôssemos juntar toda a imensa pancadaria que há no Dom Quixote de La Mancha e com ela formássemos um monte, esse monte ficaria pequeno diante da pancadaria que houve no pomar de Dona Benta. O espinafre ingerido pelo sailor man era do bom, de modo que se tornaria impossível vencê-lo. Um a um os marujos do Wonderland iam sendo postos fora de combate. Quando caiu o último, Popeye deu uma risada grossa e fez -pulpulpulpul…
O Almirante, que esperava tudo menos quatro pus, ficou seriamente atrapalhado. Toda a sua marinhagem estava caída e ele, sozinho. Se Popeye tivesse a idéia de esmoê-lo, seria uma desgraça completa, e também uma enorme afronta para o almirantado britânico. Que fazer?
O Almirante foi aconselhar-se com Dona Benta.
– “Minha senhora – disse ele -, o desenlace desta luta me deixou completamente desarvorado. Positivamente não sei como agir…”
Tia Nastácia apareceu nesse momento para perguntar se fazia bolinhos ou rebentava pipocas.
– “A situação é muito séria, Nastácia – respondeu Dona Benta. – Venha perguntar isso mais tarde, depois de resolvido este horrível incidente.”
– “Vamos, minha senhora! – insistia o Almirante. – Que acha que devo fazer?”
Dona Benta, completamente tonta, mostrou-se incapaz de uma sugestão. Nisto apareceu Emília, muito lampeirinha.
– “Eu sei um jeito de arrumar tudo – disse ela -, e de acabar de uma vez para sempre com a prosa desse Popeye…”
O Almirante, apesar da horrível situação em que se encontrava, não pôde deixar de rir-se.
– “Não se ria, Almirante – tornou Dona Benta. – Vossa Honra não conhece a Emília. Tem feito tanta coisa que não me admirarei se der uma boa sova no Popeye.”
– “Que absurdo, minha senhora! – exclamou o Almirante. – Apesar do muito respeito que a senhora me merece acho que está a abusar de mim. Essas suas palavras ofendem-me, ofendem o almirantado britânico, ofendem Sua Majestade o Rei Eduardo VII…”
Para acalmá-lo Dona Benta contou diversos episódios em que as coisas ficaram em situação de verdadeiro fim de mundo e afinal tudo se resolveu com uma inesperada saidinha da Emília. O Almirante, porém, não quis saber de nada. Emburrou, ofendidíssimo com a hipótese de que uma simples boneca de pano pudesse conseguir o que os seus valentes lobos-do-mar não tinham conseguido.
Emília fungou e disse:
– “Deixe tudo por minha conta, Dona Benta. Juro que dou uma arrumação ótima. Enquanto isso a senhora vá despejando pinga dentro desse bife malpassado” – concluiu ela, olhando com desprezo para o Almirante.
– “Emília! – gritou Dona Benta. – Mais respeito para com os mais velhos.”
Mas Emília não quis saber de nada. Botou meio palmo de língua para o Almirante e lá se foi pisando duro.
Dona Benta suspirou.