Monteiro Lobato

Memórias de Emília

 Capítulos 13, 14 e 15 (último)

  

13 – Minha viagem a Hollywood

            Fomos para Hollywood no Wonderland, com toda a criançada inglesa, Peter Pan e o Almirante. E Alice também. Fugi do sítio. Eu já andava enjoada de bolinhos, de pitangueira, de países-da-gramática. Fugi – fugi – fugi com o anjinho e o Visconde.

            A viagem foi ótima, exceto para o Visconde, que enjoou a ponto de deitar ao mar metade da sua ciência. Vomitou logaritmos, ângulos e triângulos, leis de Newton – uma trapalhada. Eu não enjoei coisa nenhuma, nem o anjinho. Em vez disso, aproveitei o tempo para estudar com o Almirante a língua de Alice. No fim da primeira semana o velho declarou a Peter Pan:

            “É extraordinária a inteligência desta criança! Já está falando inglês sem o menor sotaque!”

            Não era elogio, não. De fato assimilei com tal perfeição aquela língua que cheguei até a corrigir muitos erros de Alice.

            Em Nova York desembarcamos. Houve briga. O Almirante queria levar-me para Washington, a fim de apresentar-me ao tal Presidente Roosevelt. Eu só queria saber do cinema. Queria Hollywood, que é a cidade do cinema. Não discuti. Fingi que ia para Washington e fui parar em Hollywood, de avião.

            – Como isso? – perguntará alguém; e eu responderei: “Não me amolem com comos. Comigo não há como. Fui e acabou-se.”

            Lá chegando, com o anjinho por uma das mãos e o Visconde pela outra, fui logo em procura da Shirley Temple. Bati na porta da casinha dela. Veio uma criada.

            – “Dona Shirley está?” – perguntei.

            Quando a criada nos viu, arregalou os olhos e abriu uma boca deste tamanho.

            – “Shirley, corra!… Venha ver três fenômenos – gritou ela. – Um anjinho, uma boneca e um sabugo de cartola…”

            Shirley veio de galope. Mas não mostrou o menor espanto. Abraçou-me, dizendo:

            – “Eu sabia que você acabava chegando até aqui. Ainda ontem disse à mamãe: ‘Qualquer coisa está me dizendo que Emília não tarda’.”

            Quem se admirou daquelas palavras fui eu. – “Então… então já me conhecia?” – perguntei.

            – “Ora, Emília! Quem não conhece a Marquesa de Rabicó? Fiquei sabendo que em Hollywood todos sabemos de corzinho aqueles livros onde vêm contadas as suas histórias. O caso da pílula falante, da viagem ao País da Fábula, onde Dona Benta se sentou em cima do dedo do Pássaro Roca pensando que era raiz de árvore… Quem não sabe essas histórias?”

            – “Pois então, minha cara Shirley, estamos mais do que pagas – disse eu -, porque no Brasil não há quem não conheça você. Aquela sua fita do tempo da guerra, quando você foi pedir ao Presidente Lincoln que soltasse o prisioneiro, e começou a comer maçã no colo dele – ‘Este pedaço é meu’ – ‘Este agora é o seu’ – não há por lá quem não conheça. Sabemos você de cor, Shirley.”

            – “Ótimo! – disse ela. – E que pretendem fazer por aqui?”

            – “Que pergunta! Pretendemos virar estrelas. Minha ideia é empregar-me na Paramount, eu e estes companheirinhos. Formaremos o mais estupendo trio que ainda houve. Que acha?” – “Acho que vai ser um sucesso louco, Emília! Nunca apareceu no cinema um anjo de verdade, nem uma boneca falante, nem um sabugo científico.”

            – “Já não é mais” – murmurei olhando para o Visconde com o meu ar compungido.

            – “Não é mais o quê?”

            – “Científico. Na viagem por mar o Visconde enjoou e vomitou toda a ciência. Está vazio…”

            – “Que pena! – exclamou Shirley. – E agora?”

            – “Havemos de dar um jeito. Tenho ideia de levá-lo a uma universidade para enchê-lo de novo. Talvez haja por lá alguma bomba de ciência, como as de gasolina.”

            Shirley refletiu uns instantes.

            – “Não é preciso – declarou por fim. – Conheço grandes artistas do cinema que não possuem ciência nenhuma. Rin-tin-tin, por exemplo. Qual a ciência dele? Nenhuma. Não sabe nem o que é verbo. E quantos outros! Mas, olhe, antes de vocês se apresentarem à Paramount, podemos fazer um ensaio de fita aqui em casa. Tenho tudo o que é necessário. Enredo, inventaremos um. Quer?”

            – “Ótimo, Shirley! – exclamei entusiasmada. – E enredo já tenho um excelente na cabeça. A bordo vim todo o tempo pensando nisso.”

            – “Qual é?”

            – “Uma fitinha tirada do Dom Quixote de La Mancha. Conhece a história?”

            – “Se conheço! É de todos os livros o de que gosto mais. Já o li três vezes.”

            – “Pois muito bem – disse eu. – O Visconde será Dom Quixote. Eu serei o moinho de vento. O anjinho será Sancho Pança…”

            – “Que judiação! – exclamou Shirley com os olhos em Flor das Alturas. – Fazer de um encantinho destes um gorducho daqueles…”

            – “Tudo por brincadeira, Shirley. Quanto mais maluco, mais engraçado. E você fará o papel do cura da aldeia.”

            – “Não! – gritou Shirley. – Quero fazer o papel de Rocinante! Que amor de cavalo aquele!…”

            Pronto! Estava tudo resolvido. Arranjar vestuários foi um instante. Shirley tinha um quarto cheio de brinquedos e coisas que lhe davam. Primeiro vestimos de Dom Quixote o Visconde, com uma tampa de lata na cabeça – o elmo de Mambrino. Com a lata de uns vagõezinhos quebrados fizemos a couraça; e com outra tampa de lata, o escudo. Ficou faltando a lança.

            – “E lança, Shirley? – perguntei, não vendo por ali nada que pudesse espetar.”

            – “Cabo de vassoura serve?”

            – “Muito grande, muito pesado para ele.”

            – “Cabo de vassourinha – explicou logo Shirley. – Tenho uma de um tamanho que serve perfeitamente – e logo achou uma vassourinha sem vassoura, só cabo. Fez ponta. – Está aqui uma lança boa para um espirro de gente – disse ela dando-a ao Visconde. – Vamos agora ‘san-char’ o nosso anjo.”

            Eu rolei de rir quando Shirley acabou de arrumar o anjinho com um pequeno travesseiro amarrado na barriga para servir de pança. E pendurado no ombrinho dele um alforje. Ficou um amor de Sancho Pança. Só faltava o burrinho.

            – “E o burrinho?” – perguntei.

            – “Cavalos temos aqui em quantidade – disse Shirley, remexendo num monte de brinquedos onde havia de tudo.

            Achou logo um cavalo sem rabo, que ficou sendo burro. O anjinho montou.”

            – “Viva, viva Sancho Pança! – gritamos as duas dando um beijo naquela galanteza barriguda. Flor das Alturas fez bico. Estava assustado de ver-se gordo daquela maneira.”

            – “E como vai você fazer o moinho de vento?” – perguntou Shirley.

            – “Nada mais simples – respondi. – Fico plantada ali naquele lugar, que é a estrada, fico girando o braço direito como asa de moinho, assim…”

            – “Ótimo! – exclamou Shirley. – Podemos então começar.”

            E começamos.

            Plantei-me à beira da estrada, muda como um peixe, a girar o braço, zunnn…

            Lá longe apareceu Dom Quixote, montado no Rocinante-Shirley, com o anjinho-Sancho atrás. Assim que me viu, Dom Quixote parou e disse:

            – “Olha lá, amigo Sancho! Estou vendo à beira do caminho um terrível gigante. Vou atacá-lo.”

            O anjinho-Sancho, que havia decorado mal o que tinha de dizer, respondeu:

            – “Não é gigante, meu senhor. É a Emília fingindo de moinho.”

            – “Tu és o rei dos patetas, Sancho! – disse Dom Quixote. – Juro que é o tremendo gigante Milarrobas, o maior comedor de crianças que existe. Espera-me neste ponto. Vou atacá-lo. Depois de vencido, poderás recolher os despojos.”

            E Dom Quixote atacou, de lança em riste, fazendo Rocinante disparar na minha direção num galope louco. O Rocinante-Shirley teve de segurar as perninhas dele, para que não caísse cem tombos.

            Quando vi aproximar-se de mim aquele cavaleiro andante de tampinha de lata na cabeça e lança apontada, regirei os braços com mais força. E quando ele chegou ao meu alcance dei-lhe tal peteleco que ele voou pelos ares, indo cair de ponta-cabeça dentro de uma caixa de bombons vazia. Ficou lá de pernas para o ar, mudo, sem poder dizer o que tinha de dizer. Rocinante-Shirley foi tirá-lo da caixa. Só então Dom Quixote exclamou:

            – “Acuda, Sancho! O maldito gigante deixou-me em pandarecos.”

            O anjinho-Sancho veio correndo, a puxar o seu burrinho-cavalo, que era de rodas. Chegou e esqueceu a falação ensinada.

            – “Que é que eu digo agora? – perguntou ele a Rocinante-Shirley com aquela carinha linda de anjo caído do céu.”

            Rocinante-Shirley repetiu-lhe ao ouvido a réplica, isto é, o que ele tinha de dizer. E ele:

            – “Senhor meu amo, bem feito! Eu não disse que era moinho? Não quis acreditar, não é? Pois agora fomente-se…”

            Dom Quixote respondeu:

            – “Não era moinho, não, Sancho! Era o gigante! Mas o maldito mágico Freston o transformou em moinho no momento em que o ataquei. Agora estou aqui com as costelas quebradas, sem poder levantar-me…”

            – “Sua alma, sua palma – disse Sancho. – Quem vai buscar lã, sai tosquiado. Boa romaria faz, quem em casa fica em paz. Agüente-se…”

            Dom Quixote gemia no chão. Rocinante-Shirley também devia estar caído, a gemer, mas pulou esse pedaço. Estava, sim, a rir-se doidamente da atrapalhação de Sancho com o travesseirinho da pança.

            – “O travesseiro está caindo!” – murmurava Sancho muito aflito.

            – “Deixe que caia! – gritei. – Faz de conta que você emagreceu da dor de ver o seu amo espandongado. Vamos agora conduzir Dom Quixote para a aldeia da Mancha.”

            Shirley largou de ser Rocinante e eu larguei de ser moinho. Levantamos Dom Quixote do chão para o arrumarmos em cima do burrinho-cavalo de Sancho – e lá fomos para a aldeia. Ao atravessarmos a sala de jantar, vimos a mãe de Shirley arrumando a mesa para o lanche.

            – “Que maluquice é essa, minha filha? – perguntou a boa senhora, que não sabia de nada. E vendo-me ali, mais o anjinho: – E que crianças esquisitas, Shirley! Onde descobriu isso?”

            – “Não são crianças, mamãe. Esta é a Emília, a famosa boneca que faz coisas do arco-da-velha no sítio de Dona Benta, e este é o anjinho de asa quebrada que ela caçou nas estrelas.”

            A mãe de Shirley abriu tamanha boca que tive medo que me engolisse. A coitada não entendeu patavina, pois nunca tinha ouvido falar de mim, nem do sítio, nem do anjinho. Quis mais explicações.

            – “Impossível, mamãe! – respondeu Shirley. – Estamos com pressa de chegar à aldeia da Mancha onde mora este cavaleiro andante…”

            – “Que cavaleiro andante, minha filha?” – interrompeu a boa senhora espantada.

            – “Dom Quixote, mamãe, este de costelas quebradas que segue no burrinho-cavalo. E para mim: – Depressa, moinho! Não temos tempo a perder. O nosso doente está desenganado.”

            Atravessamos a sala no trote e saímos para a rua, deixando a mãe de Shirley ainda de boca aberta e olhos arregalados, sem entender coisíssima nenhuma.

            Na rua chamamos um táxi. Entramos. Pusemos dentro o pandareco.

            – “Depressa! – gritou Shirley. – Toque para a aldeia da Mancha onde mora este freguês.”

            O homem do táxi não sabia onde era a tal aldeia.

            – “É em qualquer parte! – gritou Shirley. – Toque depressa antes que ele morra.”

            O táxi saiu na volada.

 

14 – Dona Benta descobre as Memórias da Emília. Pedrinho e Narizinho aparecem no quarto. Fim da aventura de Hollywood.

           Uma batida na porta veio interromper o trabalho de Emília em suas Memórias. Era Dona Benta.

            – Estou estranhando a sua quietura aqui neste quarto, Emília, e vim saber o que há – disse a boa velha.

            – Não há nada, Dona Benta. É que estou escrevendo as minhas Memórias e acabo de chegar a um ponto muito interessante. O táxi vai numa volada louca para a aldeia da Mancha. O cavaleiro andante geme com três costelas quebradas. Sancho perdeu a barriga de travesseiro. Rocinante-Shirley deixou a mamãe na sala de jantar com uma cara igualzinha à sua.

            De fato, a cara de Dona Benta estava igualzinha à cara que a mãe da Shirley fez na sala de jantar, quando viu aquele bando de louquinhos passar por lá. –

            Mas… – começou Dona Benta. – Não estou entendendo nada de nada de nada, Emília. Explique-se.

            – São as minhas Memórias, Dona Benta.

            – Que Memórias, Emília?

            – As Memórias que o Visconde começou e eu estou concluindo. Neste momento estou contando o que se passou comigo em Hollywood, com a Shirley, o anjinho e o sabugo. É o ensaio de uma fita para a Paramount.

            – Emília! – exclamou Dona Benta. – Você quer nos tapear. Em Memórias a gente só conta a verdade, o que houve, o que se passou. Você nunca esteve em Hollywood, nem conhece a Shirley. Como então se põe a inventar tudo isso?

            – Minhas Memórias – explicou Emília – são diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o que devia haver.

            – Então é romance, é fantasia…

            – São memórias fantásticas. Quer ler um pedacinho?

            – Agora, não. Tenho de ir escolher a franga que Tia Nastácia vai matar. Quando o seu trabalho estiver concluído, então o lerei. Estou deveras curiosa de ver o que sai dessa cabecinha…

            – Piolho é que não é!

            Dona Benta retirou-se e Emília continuou. Antes disso esteve uns instantes com os olhos no forro, pensando lá consigo: “Estas velhas só servem para atrapalhar a vida da gente. Não me lembro mais onde estava. Ah, sim… Na volada do táxi. íamos para a aldeia da Mancha”.

            – “Depressa, driverl” – gritou Shirley para o chofer.

            – “Já chegamos – disse ele – e parou.”

            – “É aqui então a aldeia da Mancha?” – perguntou Shirley.

            – “Perfeitamente. A senhorita não disse que era em qualquer parte? Logo, é também aqui.”

            – “Está certo” – aprovou Shirley, saltando do táxi comigo e o anjinho.

            Nesse momento…

            – Aí, Senhora Emília! – exclamaram duas vozes atrás dela. Escrevendo suas Memórias, hein?

            Eram Narizinho e Pedrinho, aos quais Dona Benta havia contado tudo.

            – Quero ler um pedaço – disse a menina.

            Emília escondeu a papelada.

            – Não pode ainda. Só depois que forem publicadas.

            – Para que esse enjoamento? Tem medo que eu coma a sua literatura? – e Narizinho foi agarrando nas Memórias à força. Leu um pedaço. Gostou.

             – Estão engraçadas, sim, Pedrinho. Venha ver.

            Pedrinho leu junto com ela mais um pedaço e a conseqüência foi ficarem também assanhadíssimos para escrever memórias.

            – Vou começar as minhas já – disse Narizinho, jogando a papelada e saindo a galope.

            – E eu também! – gritou o menino, saindo noutro galope.

            – Invejosos! – murmurou Emília. – Assim que me vêem fazendo uma coisa, querem fazer o mesmo.

            Juntou a papelada do chão. Bocejou. Examinou os dedos.

            – Como cansa escrever! Estou com a mão doendo. O melhor é continuar com a munheca do Visconde.

            Foi à janela. Chamou:

            – É hora, Visconde! Venha correndo!

            O Visconde veio correndo.

            – Já estou com os dedos doídos de tanto escrever – disse ela. – Continue as Memórias.

            – Em que ponto está?

            – Estou com a Shirley e o anjinho em Hollywood, levando Dom Quixote para a aldeia da Mancha, que pode ser em qualquer parte. Continue.

            O Visconde abriu a boca, espantado. Não estava entendendo coisa nenhuma.

            – Vamos, escreva! – disse ela.

            – Como poderei escrever uma história que não sei? Nunca estive em Hollywood, nem nunca você me contou essa passagem.

            – E que tem isso, bobo? Eu também não estive lá e estou contando tudo direitinho. Quem tem miolo não se aperta.

            O Visconde leu o pedaço escrito.

            – Que horror, Emília! Eu transformado aqui em Dom Quixote, com três costelas quebradas, moribundo… Isto é abusar da humanidade.

            – Pois abuse da humanidade e termine a história.

            – Da maneira que eu quiser? – indagou o Visconde, já com um plano na cabeça.

            – Sim. Da maneira que quiser – respondeu Emília.

            – Jura que de qualquer modo serve?

            – Juro!

            Ao ouvir o juro, o Visconde fincou com tanta força um ponto final na história que até furou o papel.

            – Pronto! Está concluída.

            Emília plantou-se diante dele, de mãozinhas na cintura, danada.

            – Sim, senhor! Já é desaforo. Pregou-me uma peça, fazendo-me jurar. Olhe, Visconde, se me prega outra assim, juro que cumpro a minha palavra. Depeno-o, sabe?

            Emília já ameaçara o Visconde de o “depenar”, isto é, de lhe arrancar as perninhas e os braços, e o Visconde ficava branco de cera ao lembrar-se disso. Eis por que se apressou a pôr um rabinho naquele ponto final, transformando-o em vírgula.

            – Eu estava brincando, Emília – disse ele. – Não concluí com ponto, e sim com vírgula. Quer dizer que a coisa continua. Vou contar o resto da história, pode ficar sossegada.

            – Isso! E quando acabar me chame. Estou na salinha de costura de Dona Benta. Emília saiu e o Visconde continuou as Memórias do ponto em que Emília parará, assim:

            “…Nesse momento, vírgula, Dom Quixote aproveitou-se dum instante em que o Moinho se havia afastado e disse para Rocinante-Shirley:

            – Amigo Rocinante-Shirley, este Moinho é uma peste, vive atropelando a humanidade e sobretudo a mim, que sou a maior das vítimas. Ameaça-me sempre dum castigo tremendo: depenar-me.”

            – “Como, senhor cavaleiro da Mancha? Como pode o Moinho depenar Vossa Senhoria, se Vossa Senhoria só possui penas lá no seu escritório, que é longe daqui, na aldeia da Mancha?”

            – “Quando o Moinho fala em depenar-me, tem na cabeça uma ideia horrenda, qual a de arrancar-me estas duas pernas e estes dois braços que Tia Nastácia me deu.”

            Rocinante-Shirley horrorizou-se com tamanha crueldade e disse:

            – “Não tenha medo que tal aconteça, Senhor Dom Quixote. Se o Moinho tentar fazer isso, encarrego-me de pregar-lhe uma valente parelha de coices. Confie em mim e não tenha medo de nada.”

            Nisto apareceu o Moinho, dizendo:

            – “Estamos extraviadas, Shirley! Falei com o polícia da esquina, com um vendedor de jornais e com o homem do armazém. Ninguém sabe da tal aldeia da Mancha.”

            Dom Quixote cochichou baixinho para Rocinante-Shirley:

            – “Sabem, sim. O Moinho está mentindo. Eu, se fosse você, pregava-lhe já a parelha de coices.”

            – “Paciência, Dom Quixote! – respondeu Rocinante-Shirley, fingindo ter ouvido outra coisa. – Bem sei que costela quebrada dói muito, mas quem manda Vossa Senhoria andar se pegando com moinhos? Quem moinhos apetece é isso o que acontece.”

            Dom Quixote lançou um olhar de ódio contra o Moinho malvado que o tinha reduzido àquela triste situação.

            Nisto passou um auto, com um homem conhecido da Shirley.

            – “Viva Mr. John! – gritou ela. – Foi ótimo que nos encontrássemos. Eu ia justamente à sua procura, para apresentar três novos artistas vindos da América do Sul.”

            – “Não me fale em artistas novos – respondeu Mr. John, que era o governador da Paramount. – Estou farto. Tenho mais de mil propostas de artistas novos. O mundo inteiro quer entrar para o cinema.”

            – “Mas estes são especiais” – disse Shirley.

            – “Todos são especiais – replicou o homem. – Não há um que não diga de si as maiores maravilhas.”

            Nesse momento o homem deu comigo, Visconde. Ficou logo de olho arregalado.

            – “Quem é esta estranha e interessante figurinha?” – indagou.

            – “Pois é justamente um dos artistas novos sobre que falei – respondeu Shirley. – Estivemos ensaiando uma fita tirada do Dom Quixote. Este Visconde faz o papel do herói, e já levou o tranco da asa do moinho. Está em pandarecos, todo moído por dentro, com três costelas partidas.”

            Mr. John assombrou-se. Examinou-me de todos os lados, fez-me perguntas e acabou dizendo:

            – “Pois, minha cara Shirley, acho que você acertou. Este freguesinho dá uma estrela de cinema de primeiríssima ordem. As fitas em que ele aparecer vão causar um sucesso tremendo.”

            – “E nas em que este aparecer?” – perguntou Shirley apresentando o anjinho.

            Mr. John tonteou. Começou a gaguejar.

            – “Quem… quem é… esta… maravilhosa criança?”

            – “Um anjo de verdade, Mr. John! O único que já desceu do céu à terra. Quer ver? – e tirou o capotinho que escondia as asas de Flor das Alturas. – Pode examinar as asinhas dele. Veja que são naturais e não amarradas, como as dos anjos de procissão.”

            Mr. John examinou, pegou, apalpou, pôs os óculos, examinou outra vez e por fim nem pôde falar de tanta gagueira. Um anjo de verdade, ali em Hollywood, positivamente era coisa de revolucionar o mundo.

            – “E temos ainda o terceiro – continuou Shirley apresentando o Moinho. – Esta é a famosa Emília, que nasceu no célebre sítio de Dona Benta.”

            – “Não interessa – respondeu Mr. John imediatamente, sem gagueira nenhuma. – Bonecas de pano não valem nada.”

            – “Mas esta é falante, Mr. John!” – alegou Shirley.

            – “Pior ainda – disse ele. – Podemos fazer negócio com Dom Quixote e o anjinho. Mas a tal boneca de pano pode limpar as mãos às paredes. Vade retro!…”

            O Visconde estava nesse ponto, quando Emília entrou. Apavorado, escondeu as tiras.

            – Quero ver isso! – gritou a boneca. – Já!…

            – E eu não quero mostrar – respondeu o Visconde. – Não passa de simples borrão. Está cheio de erros. Vou passar a limpo. Depois mostrarei.

            Emília deu-lhe um peteleco e tomou-lhe as tiras. Leu-as. Ficou vermelhinha como as romãs.

            – Com que então, Senhor Visconde, está me sabotando as Memórias, hein? Risque já todas as impertinências e escreva o que vou dizer.

            O Visconde pegou da pena e com toda a humildade foi pondo no papel o que Emília quis.

            – “E então – ditou ela – o tal Mr. John aceitou como estrela da máxima grandeza no céu de Hollywood, primeiro Emília, Marquesa de Rabicó, depois o anjinho. Ao último, o tal Visconde de Sabugueira ou Sabugosa, recusou imediatamente, dizendo:

            – ‘Isto aqui não é cocho de vacas. Que ideia, Senhora Shirley! Era lá possível eu contratar para a Paramount um sabugo de perninhas? Sabugos, minha cara, temos cá na Califórnia aos milhões. Não é preciso que venha nenhum de fora’.

            – “E jogando dali para bem longe aquele sabugo bolorento, levou-nos em seu lindo automóvel para os estúdios da Paramount.”

            Emília parou nesse ponto, com os olhinhos duros fisgados no Visconde.

            – Agora, sim. Agora a coisa está direita, exatinho como se passou.

            – Passou, nada! – disse o Visconde num resmungo. – Você nunca esteve em Hollywood…

            – Estive, sim – em sonho. E tudo quanto vi em sonho foi exatamente como acabei de ditar. Eu e Flor das Alturas viramos estrelas da tela. Você foi para uma lata de lixo.

            – Isso não escrevo! – protestou o Visconde.

            – Escreva ou não, foi o que aconteceu. Agora, rua! Ponha-se daqui para fora, seu pirata…

            O Visconde fugiu no trote, muito feliz de ter escapado ao depenamento.

 

15 – Últimas impressões de Emília. Suas ideias sobre pessoas e coisas do sítio de Dona Benta.

            Emília sentou-se e escreveu:

            “Acabo de contar as folhas de papel já escritas e vejo que são muitas. Vou parar. Este livro fica sendo o primeiro volume das minhas Memórias. O segundo escreverei depois que ficar velha.

            Antes de pingar o ponto final quero que saibam que é uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu coração. Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só que não é de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou convencida de que o maior mal deste mundo é a injustiça.

            Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu coração dói. Quando vejo trancarem na cadeia um homem inocente, meu coração dói. Quando ouvi Dona Benta contar a história de Dom Quixote, meu coração doeu várias vezes, porque aquele homem ficou louco apenas por excesso de bondade. O que ele queria era fazer o bem para os homens, castigar os maus, defender os inocentes. Resultado: pau, pau e mais pau no lombo dele. Ninguém levou tanta pancadaria como o pobre cavaleiro andante – e estou vendo que é isso que acontece a todos os bons. Ninguém os compreende. Quantos homens não padecem nas cadeias do mundo só porque quiseram melhorar a sorte da humanidade? Aquele Jesus Cristo que Dona Benta tem no oratório, pregado numa cruz, foi um. Os homens do seu tempo que só cuidavam de si, esses viveram ricos e felizes. Mas Cristo quis salvar a humanidade e que aconteceu? Não salvou coisa nenhuma e teve de aguentar o maior dos martírios.

            Quando falo assim, Narizinho me chama de filósofa e ri-se. Não sei se é filosofia ou não. Só sei que é como sinto e penso e digo.

            Eu era uma criaturinha feliz enquanto não sabia ler e portanto não lia os jornais. Depois que aprendi a ler e comecei a ler os jornais, comecei a ficar triste. Comecei a ver como é na realidade o mundo. Tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanta miséria, tanto sofrimento…

            Por isso acho que o único lugar do mundo onde há paz e felicidade é no sítio de Dona Benta. Tudo aqui corre como num sonho. A criançada só cuida de duas coisas: brincar e aprender. As duas velhas só cuidam de nos ensinar o que sabem e de ver que tudo ande a hora e a tempo. Quindim só quer saber de capim e de recordar os tempos atormentados que passou em Uganda, em lutas constantes com as feras e os homens caçadores. Se ele escrevesse memórias, juro que seriam mil vezes mais interessantes que as minhas.

            A Vaca Mocha também vive bem quieta no seu pasto e na cocheira, onde nunca lhe faltam boas palhas de milho. Vai tendo seus bezerrinhos e vai dando leite para todos nós. Leite como o dela não há no mundo. A Mocha capricha.

            O Burro Falante está bem velho, coitado. É do tempo de La Fontaine, aquele homem que passeava no País das Fábulas, tomando nota do que ouvia aos animais, para escrever livros. Está tão velho e filosófico que só Dona Benta o compreende bem. Conversa altas filosofias.

            Rabicó, esse não vale nada. A gula o perdeu. Não sendo coisa de comer, não se interessa por nada mais no mundo. Nem vale a pena falar nele.

            Os outros personagens do sítio são inanimados, embora excelentes pessoas. Existe aquele João Faz-de-Conta que por uns tempos foi animado, falou, agiu e soube portar-se tão heroicamente nas nossas aventuras com Capinha Vermelha. Mas quebrou-se por dentro e emudeceu. Ficou um pedaço de pau à-toa.

            Entre os personagens inanimados gosto muito da porteira e da pitangueira.

            A porteira só sabe fazer uma coisa: abrir-se e fechar-se. Para abrir-se espera que as pessoas animadas a ajudem. Abre-se, a pessoa animada passa e ela fecha-se por si mesma, com o peso, fazendo nhem, nhem. Boa pessoa. Dali não vem mal ao mundo.

            A pitangueira, essa é importante. Está enorme. Bate em altura todas as árvores do pomar, exceto a figueira do oco, e tem casca sem nenhum musgo, lisa. Cada ano se enche de pitangas, das bem doces, divididas em gomos. Não gomos como os de laranja, separados uns dos outros; os gomos das pitangas são apenas para enfeite, grudadinhos. E outra excelente pessoa, de onde também não vem mal ao mundo.

            Considero todas as árvores do pomar como excelentes criaturas. Não falam, não saem do seu lugarzinho, não se intrometem na vida alheia, só tratam de preparar as flores e as frutas de todos os anos. Cada qual fabrica uma qualidade de fruta – e é o que mais admiro, visto que a terra do pomar é a mesma para todas. Apesar disso, uma faz laranjas-de-umbigo, outras fazem laranjas-tangerinas, ou limas, e há até as que fazem os tais limões azedíssimos, que Tia Nastácia corta em rodelas para enfeitar os leitões assados.

            A que eu acho mais interessante é a jabuticabeira. Enorme e com uma copada bem redondinha em cima. As folhas, muito juntas, não deixam atravessar o menor raio de sol. Quando chega certo mês, os seus galhos cobrem-se de botõezinhos brancos, que vão engrossando e se abrem em pequenas flores. Depois as flores secam e caem e ficam umas bolotinhas verdes do tamanho de grãos de chumbo. Esse chumbinho verde vai crescendo até ficar aí do tamanho de uma noz. Começam então a mudar de cor. Perdem o verde, ficam pretas como Tia Nastácia.

            Ah, que festa é aqui no sítio quando as jabuticabas pretejam! Narizinho, Pedrinho e Rabicó mudam-se para debaixo da jabuticabeira. Mas essas frutas duram pouco. Duas semanas no máximo. Quando acabam, é preciso que a gente espere mais um ano para virem outras.

            Cada árvore dá a sua fruta; mas sombra, todas dão da mesma qualidade. Que coisa gostosa uma sombra! Nos dias quentes é na sombra da jabuticabeira que nos reunimos para ouvir as histórias e lições de Dona Benta.

            Tenho de dizer umas palavras sobre esta senhora. Dona Benta é uma criatura boa até ali. Só isso de me aturar, quanto não vale? O que mais gosto nela é o seu modo de ensinar, de explicar qualquer coisa. Fica tudo claro como água. E como sabe coisas, a diaba! De tanto ler aqueles livros lá do quarto, ficou que até brincando bate o Visconde em ciência.

            Tia Nastácia, essa é a ignorância em pessoa. Isto é… ignorante, propriamente, não. Ciência e mais coisas dos livros, isso ela ignora completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sábia. Para um tempero de lombo, um frango assado, um bolinho, para curar uma cortadura, para remendar meu pé quando a macela está fugindo, para lavar e passar roupa – para as mil coisas de todos os dias, é uma danada!

            Eu vivo brigando com ela e tenho-lhe dito muitos desaforos – mas não é de coração. Lá por dentro gosto ainda mais dela do que dos seus afamados bolinhos. Só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta como carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que a tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há essas diferenças de cor. Se houvesse, como havia de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas?

            Narizinho eu quero muito bem, porque é uma espécie de minha mãe. Brigamos bastante, é verdade, e ela implica deveras comigo quando ‘me excedo’. Mas já vi que briga é prova de amor.

            Quem não ama não briga. Gosto dela no fundo do coração, e não admito que haja outra menina que a valha. Nem Alice. Nem Capinha Vermelha. Para mim, a primeira menina do mundo é Narizinho.

            E Pedrinho? Um excelente rapaz. Muito sério, de muita confiança, menino de palavra. Também temos brigado bastante, e havemos de brigar ainda; mas que ele é um menino que vale a pena isso é. E bem valente. Só que ficou um pouco prosa demais depois da surra que deu no Popeye, esquecido de que se não fosse eu, com a minha ideia da couve, quem levava a surra era ele, e das grandes. Mas eu perdoo essas coisinhas. Peter Pan também era gabola e vaidoso – e Wendy lhe perdoava o defeito.

            Bom. Vou acabar com estas Memórias. Já contei tudo quanto sabia; já disse várias asneiras, já dei minhas opiniões filosóficas sobre o mundo e as minhas impressões sobre o pessoal aqui da casa. Resta agora despedir-me do respeitável público.

            Respeitável público, até logo. Disse que escreveria minhas Memórias e escrevi. Se gostaram delas, muito bem. Se não gostaram, pílulas! Tenho dito.”

            EMÍLIA, Marquesa de Rabicó

            Sítio do Picapau Amarelo, 10 de agosto de 1936.

 1936.

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