Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 36, 37, 38, 39, 40, 41 e 42

 

36 – A mosca e a formiguinha

         – Sou fidalga! – dizia a mosca à formiguinha que passava carregando uma folha de roseira. – Não trabalho, pouso em todas as mesas, lambisco de todos os manjares, passeio sobre o colo das donzelas – e até me sento no nariz. Que vidão regalado o meu…

         A formiguinha arriou a carga, enxugou a testa e disse:

         – Apesar de tudo, não invejo a sorte das moscas. São malvistas. Ninguém as estima. Toda gente as enxota com asco. E o pior é que têm um berço degradante: nascem nas esterqueiras.

         – Ora, ora! – exclamou a mosca. – Viva eu quente e ria-se a gente.

         – E além de imundas são cínicas – continuou a formiga. – Não passam de umas parasitas – e parasita é sinônimo de ladrão. Já a mim todos me respeitam. Sou rica pelo meu trabalho, tenho casa própria onde nada me falta durante o rigor do mau tempo. E você? Você, basta que fechem a porta da cozinha e já está sem o que comer. Não troco a minha honesta vida de operária pela vida dourada dos filantes.

         – Quem desdenha quer comprar – murmurou ironicamente a mosca.

         Dias depois a formiga encontrou a mosca a debater-se numa vidraça.

         – Então, fidalga, que é isso? – perguntou-lhe.

         A prisioneira respondeu, muito aflita:

         – Os donos da casa partiram de viagem e me deixaram trancada aqui. Estou morrendo de fome e já exausta de tanto me debater.

         A formiga repetiu as empáfias da mosca, imitando-lhe a voz: “Sou fidalga! Pouso em todas as mesas… Passeio pelo colo das donzelas…”, e lá seguiu o seu caminho, apressadinha como sempre.

          Quem quer colher, planta. E quem do alheio vive, um dia se engasga.

                                                           *****

            – Seria muito bom se fosse assim – disse o Visconde. – Mas muitas e muitas vezes um planta e quem colhe é o outro…

            Emília fuzilou-o com os olhos. Aquilo era indireta das mais diretas. O Visconde, amedrontado, encolheu-se no seu cantinho.

 

37 – Os dois burrinhos

         Muito lampeiros, dois burrinhos de tropa seguiam trotando pela estrada além. O da frente conduzia bruacas de ouro em pó; e o de trás, simples sacos de farelo. Embora burros da mesma igualha, não queria o primeiro que o segundo lhe caminhasse ao lado.

         – Alto lá! – dizia ele. – Não se emparelhe comigo, que quem carrega ouro não é do mesmo naipe de quem conduz farelo. Guarde cinco passos de distância e caminhe respeitoso como se fosse um pajem.

         O burrinho do farelo submetia-se e lá trotava na traseira, de orelhas murchas, roendo-se de inveja do fidalgo.

         De repente…

         – Oah! oah!…

         São ladrões da montanha que surgem de trás de um toco e agarram os burrinhos pelos cabrestos.

         Examinam primeiramente a carga do burro humilde:

         – Farelo! – exclamam desapontados. – O demo o leve! Vejamos se há coisa de mais valor no da frente.

         – Ouro, ouro! – gritam, arregalando os olhos. E atiram-se ao saque.

         Mas o burrinho resiste. Desfere coices e dispara pelo campo afora. Os ladrões correm-lhe atrás, cercam-no e dão-lhe em cima, de pau e pedra. Afinal saqueiam-no.

         Terminada a festa, o burrinho do ouro, mais morto que vivo e tão surrado que nem se suster em pé podia, reclama o auxílio do outro que muito fresco da vida tosava o capim sossegadamente.

         – Socorro, amigo! Venha acudir-me, que estou descadeirado…

         O burrinho do farelo respondeu zombeteiramente:

         – Mas poderei por acaso aproximar-me de Vossa Excelência?

         – Como não? Minha fidalguia estava toda dentro da bruaca e lá se foi nas mãos daqueles patifes. Sem as bruacas de ouro no lombo, sou uma pobre besta igual a você…

         – Bem sei. Você é como certos grandes homens do mundo que só valem pelo cargo que ocupam. No fundo, simples bestas de carga, eu, tu, eles…

         E ajudou-o a regressar para casa, decorando, para uso próprio, a lição que ardia no lombo do vaidoso.

                                                           *****

            – Eis aqui, meus filhos, outra fábula bem boa – disse Dona Benta. – O mundo está cheio de orgulhosos deste naipe…

            – Que é “naipe”? – quis saber Narizinho.

            – É um termo usado para as cartas de jogar. Há quatro naipes – ouro, espadas, copas e paus.

            – Então naipe quer dizer “qualidade”, “tipo”? “Do mesmo naipe” quer dizer “do mesmo tipo”?

            – Exatamente.

            – E “igualha”, vovó?

            – É sinônimo de naipe.

            – Então por que a senhora não diz logo “qualidade” em vez de “naipe” e “igualha”?

            – Para variar, minha filha. Estou contando estas fábulas em estilo literário, e uma das qualidades do estilo literário é a variedade.

            Pedrinho observou que o Coronel Teodorico fizera tal qual o burrinho do ouro. Quando se encheu de dinheiro, arrotou grandeza; mas depois que perdeu tudo nos maus negócios ficou de orelhas murchas e convencido de que era realmente uma perfeita cavalgadura.

 

38 – O cavalo e as mutucas

         Um cavaleiro vinha chicoteando as mutucas pousadas no pescoço da cavalgadura. Volta e meia, plaf!, uma lambada e era um inseto de menos.

          Mas o homem só chicoteava as mutucas pesadonas, já empanturradas de sangue.

         Em certo ponto o cavalo perdeu a paciência e disse:

         – Julgas que me prestas um serviço e no entanto…

          – No entanto quê, cavalo! Pois livro-te das mutucas e ainda não estás contente?

         – Benefício seria se matasses as magras e poupasses as gordas. Porque as gordas, fartas que estão, nenhum malefício me fazem, ao passo que as outras, famintas, me torturam sem dó. Matando só as inofensivas, o bem que me queres fazer transforma-se em mal, porque sofro a dor da lambada e nada lucro com a morte dos bichinhos.

         Quantos benefícios assim, benefícios só na aparência!…

                                                           *****

            – De quem é esta fábula, vovó? De Monsieur de La Fontaine ou de Esopo?

            – De nenhum dos dois, meu filho. É minha…

            – Sua?… Pois a senhora também é fabulista?

            – Às vezes… Esta fábula me ocorreu no dia em que o compadre esteve aqui montado naquele pampa. Ele não apeou. E enquanto falava ia chicoteando as mutucas gordas, só as gordas. Ao ver aquilo, a fábula formou-se em minha cabeça.

            – Pois acho que ele fazia muito bem – berrou Emília. – As gordas, as já cheias de sangue, voam dali e vão botar ovos de onde saem mais mutucas. E as magras, as ainda vazias, podem falhar. O cavalo não pensou nisso.

            – Falhar como, Emília?

            – Podem, por qualquer motivo, não se encherem e não porem ovos.

            Dona Benta riu-se e explicou que o cavalo falava do seu ponto de vista de vítima das mordidelas. Se a vítima das mutucas fosse Emília, o mais certo era ela pensar exatamente como o cavalo. Tudo neste mundo depende do ponto de vista.

 

39 – O ratinho, o gato e o galo

         Certa manhã um ratinho saiu do buraco pela primeira vez. Queria conhecer o mundo e travar relações com tanta coisa bonita de que falavam seus amigos. Admirou a luz do sol, o verdor das árvores, a correnteza dos ribeirões, a habitação dos homens. E acabou penetrando no quintal de uma casa da roça.

         – Sim senhor! É interessante isto!

         Examinou tudo minuciosamente, farejou a tulha de milho e a estrebaria. Em seguida notou no terreiro um certo animal de belo pelo que dormia sossegado ao sol. Aproximou-se dele e farejou-o sem receio nenhum.

         Nisso aparece um galo, que bate as asas e canta. O ratinho por um triz que não morreu de susto. Arrepiou-se todo e disparou como um raio para a toca. Lá contou à mamãe as aventuras do passeio.

         – Observei muita coisa interessante – disse ele –, mas nada me impressionou tanto como dois animais que vi no terreiro. Um, de pelo macio e ar bondoso, seduziu-me logo. Devia ser um desses bons amigos da nossa gente, e lamentei que estivesse a dormir, impedindo-me assim de cumprimentá-lo. O outro… Ai, que ainda me bate o coração! O outro era um bicho feroz, de penas amarelas, bico pontudo, crista vermelha e aspecto ameaçador. Bateu as asas barulhentamente, abriu o bico e soltou um có-ri-cócó tamanho que quase caí de costas. Fugi. Fugi com quantas pernas tinha, percebendo que devia ser o famoso gato que tamanha destruição faz no nosso povo.    

         A mamãe-rata assustou-se e disse:

         – Como te enganas, meu filho! O bicho de pelo macio e ar bondoso é que é o terrível gato. O outro, barulhento e espaventado, de olhar feroz e crista rubra, o outro, filhinho, é o galo, uma ave que nunca nos fez mal nenhum. As aparências enganam. Aproveita, pois, a lição e fica sabendo que:

         Quem vê cara não vê coração.

                                                           *****

            Emília fez cara de piedade. – Coitadinho! Era de uma burrice sem par. Farejou o gato! Um ratinho a farejar gato! Acho isso um absurdo. Só se era um gato morto…

            – Por que absurdo, Emília?

            – Porque o Visconde diz que os animais do “naipe” dos ratos já nascem sabendo o que é gato. Adivinham gato pelo cheiro. Por isso digo: ou o gato estava morto, ou o ratinho estava endefluxado…

            Dona Benta explicou que os fabulistas não têm o rigor dos naturalistas e muitas vezes torcem as coisas para que a fábula saia certa.

            – Boa moda! – exclamou Emília. – Errar de um lado para acertar do outro…

            Narizinho disse que os poetas usam muito esse processo, chamado “licença poética”. Eles sacrificam a verdade à rima. Os fabulistas também são poetas ao seu modo.

 

40 – Os dois pombinhos

          Eram felizes. Queriam-se muito e contentavam-se com o que tinham. Mas um deles perdeu a cabeça e, farto de tanta paz, encasquetou na cabeça a ideia de correr mundo.

         – Para quê? – advertiu o companheiro. – Não é tão sossegado aqui neste remanso?

         – Quero ver terras novas, respirar novos ares.

         – Não vá! Há mil perigos pelo caminho, incertezas, traições. Além disso, o tempo não é próprio. Época de temporais.

         De nada valeram os bons avisos. O pombinho assanhado beijou o companheiro e partiu.

         Nem de propósito, uma hora depois o céu se tolda, os ventos rugem. O imprudente viajante aguenta o temporal inteiro fora de abrigo, encolhido numa árvore seca. Sofre horrores, mas salva-se, e quando veio a bonança pôde continuar a viagem. Dirigiu-se a um lindo arrozal, pensando:

         – Que vidão irei passar neste mimoso tapete de verdura! Ai!… Nem bem pousou e já se sentiu preso num laço. Uma hora de desespero, a debater-se… Foi feliz ainda.

         O laço, apodrecido pelas chuvas, rompeu-se e o pombinho safou-se. E fugiu, exausto, com várias penas de menos e um fio de barbante aos pés, a lhe embaraçar o voo.

         Nisso um gavião surge e se precipita sobre ele com rapidez de flecha. O mísero pombinho, atarantado, mal tem tempo de abrigar-se no terreiro de um casebre de lavradores. Desse modo livrou-se do rapinante, mas não pôde se livrar de um menino que de bodoque em punho correu para cima dele e espeloteou-o.     Corre que corre, perereca que perereca, o mal-aventurado pombinho conseguiu ainda uma vez escapar, oculto num oco de pau. E ali, curtindo as dores da asa quebrada, esperou pacientemente que o inimigo se fosse. Só então, com mil cautelas, pôde fugir para o ninho.

         Ao vê-lo chegar, arrastando a asa, depenado, moído de canseira, o companheiro beijou-o por entre lágrimas e disse: “Bem certo o ditado:

         boa romaria faz quem em casa fica em paz”.

                                      *****

            – Não concordo, vovó! – disse Pedrinho. – Se toda gente ficasse fazendo romaria em casa, a vida perderia a graça. Eu gosto de aventuras, nem que volte de perna quebrada.

            – Eu também! – berrou Emília. – E hei de escrever uma fábula o contrário dessa.

            – Como?

            – Assim que o pombinho viajante partiu, um caçador aparece e dá um tiro no que ficou fazendo romaria em paz. Quando o viajante volta, todo estropiado, vê as penas do companheiro no chão, manchadas de sangue. Compreende tudo e diz: “Quem vai, volta estropiado; mas quem não vai cai na panela”.

            Dona Benta explicou que a sabedoria popular é uma sabedoria de dois bicos. Muitos ditados são contraditórios.

            – Há um que diz: “Quem espera sempre alcança”, e outro diz: “Quem espera desespera”. Conforme o caso, a gente escolhe um ou outro – e quem ouve elogia a sabedoria da sabedoria popular.

 

41 – As duas cachorras

         Moravam no mesmo bairro. Uma era boa e caridosa; a outra, má e ingrata. A boa, como fosse diligente, tinha a casa bem arranjadinha; a má, como fosse vagabunda, vivia ao léu, sem eira nem beira.

         Certa vez a má, em véspera de dar cria, foi pedir agasalho à boa.

         – Fico aqui num cantinho até que meus filhotes possam sair comigo. É por eles que peço…

         A boa cedeu-lhe a casa inteira, generosamente. Nasceu a ninhada, e os cachorrinhos já estavam de olhos abertos quando a dona da casa voltou.

         – Pode entregar-me a casa agora?

         A má pôs-se a choramingar.

         – Ainda não, generosa amiga. Como posso viver na rua com filhinhos tão novos? Conceda-me um novo prazo.

         A boa concedeu mais quinze dias, ao termo dos quais voltou.

         – Vai sair agora?

         – Paciência, minha velha, preciso de mais um mês.

         A boa concedeu mais quinze dias, e ao terminar o último prazo voltou; mas desta vez a intrusa, rodeada dos filhos já crescidos, robustos e de dentes arreganhados, recebeu-a com insolência:

         – Quer a casa? Pois venha tomá-la, se é capaz…

         Para os maus, pau!

                                                        *****

            – Ótima, vovó! – exclamou a menina. – Gostei. Esta fábula merece grau dez.

            – E me faz lembrar o mata-pau – disse Pedrinho. – O mata-pau é assim. Nasce numa árvore, todo humildezinho e fraquinho; mas vai crescendo, crescendo, e um dia estrangula a árvore que o acolheu.

            Dona Benta explicou que aquela fábula punha em foco a ingratidão, sentimento muito comum entre os homens. E citou vários ingratos ali das redondezas.

            – Em matéria de dinheiro há muita ingratidão assim. Um sujeito vem pedir um empréstimo. Vem de chapéu na mão, humilde como essa cachorra. Assim que se pilha servido, dá o coice.

            Emília achou ótima a moralidade da fábula: “Para os maus, pau!”. – Isso mesmo! Pau no lombo deles!

            – A dificuldade, Emília, está em conhecermos quem é o mau. Eles sabem disfarçar-se. Apresentam-se como essa cachorra, todos cheios de diminutivos – um “cantinho”, uma “comidinha”, um “dinheirinho”… E como havemos de adivinhar que isso é um disfarce, um preparo do terreno?

            – Como? – disse Emília. – É boa!… Pelo diminutivo. Assim que um freguês vier com “inhos”, é a gente ir pegando no pau e lascando…

 

42 – A cabra, o cabrito e o lobo

                Antes de sair a pastar, a cabra, fechando a porta, disse ao cabritinho:

            – Cuidado, meu filho. O mundo anda cheio de perigos. Não abra a porta a ninguém antes de pedir a senha.

            – E qual é a senha, mamãe?

            – A senha é: “Para os quintos do inferno o lobo e toda a sua raça maldita”.       

            Decorou o cabritinho aquelas palavras e a cabra lá se foi, sossegada da vida.   Mas o lobo, que rondava por ali e ouvira a conversa, aproximou-se e bateu. E disfarçando a voz repetiu a senha.

            O cabritinho correu a abrir, mas ao pôr a mão no ferrolho desconfiou. E pediu:

            – Mostre-me a pata branca, faça o favor…

            Pata branca era coisa que o lobo não tinha e portanto não podia mostrar. E, assim, de focinho comprido, desapontadíssimo, o lobo não teve remédio senão ir-se embora como veio – isto é, de papo vazio. Desse modo salvou-se o cabritinho porque teve a boa ideia de

            confiar desconfiando.

                                                                       *****   

            – Esse cabritinho – disse Emília – é como eu e o marechal Floriano Peixoto. Nós três confiamos desconfiando. Lobo nenhum nos embaça. Esse cabritinho aprendeu comigo.

            – Como aprendeu com você, Emília, se você nunca o encontrou?

            – É que ele adivinhou que eu penso assim…

            Tia Nastácia, lá na copa, murmurou “Ché!…”.

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