Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho

MONTEIRO LOBATO

Caçadas de Pedrinho

Capítulos 3 e 4

 

3 – Os habitantes da mata se assustam

         As cenas da caçada da onça haviam sido presenciadas por muitos animaizinhos selvagens, entre eles um intrometidíssimo sagüi. Ficou tão admirado da proeza dos meninos que levou longo tempo a piscar muito depressa – sinal de que estava pensando alguma ideia de sagüi. Por fim resolveu-se e, pulando de galho em galho, foi em busca duma capivara que morava perto, na beira do rio.

         – Sabe, Dona Capivara, o que aconteceu à onça da Toca Fria? Morreu… – disse ele, fazendo uma carinha muito assustada.

         – Morreu de quê, sagüi? – indagou a capivara. – De morte morrida ou de morte matada?

         – De morte matadíssima. Os meninos do sítio de Dona Benta mataram-na a tiros e facadas e espetadas, e depois a arrastaram com cipós até lá, ao terreiro.

         E contou por miúdo toda a cena a que havia assistido. A capivara abriu a boca.

         Aquela onça era o terror de todos os bichos da redondeza, graças à sua força e ferocidade. Por várias vezes os caçadores das terras vizinhas haviam organizado batidas a fim de dar cabo dela, sem nenhum resultado. A onça escapava sempre.  Como, então, fora vítima dos netos de Dona Benta, simples crianças? Era espantoso, não havia dúvida. E se essas crianças haviam matado a onça dominadora da mata, com muito maior facilidade matariam a qualquer outro filho das selvas, fosse veado, paca, tatu ou mesmo capivara.

         – A situação é bastante grave – disse, por fim, o animalão, depois de muito pensar e repensar. – Vejo que esses meninos constituem um grande perigo para nós aqui. Vou reunir uma assembleia de todos os bichos, para discutirmos o caso e tomarmos as medidas necessárias à nossa segurança.

         Ia passando pelo céu azul um gavião perseguindo dois bem-te-vis. A capivara chamou-os.

         – Parem com essa eterna briga e venham ouvir o que tenho a dizer. A situação de todos os viventes da floresta é muito séria. Quando a vida dos animais selvagens se vê ameaçada de perigo geral, as velhas rivalidades cessam. A jaguatirica deixa de perseguir as lebres. A lontra esquece a fome e pode até conversar amavelmente com os peixes de que se alimenta. O cachorro-do-mato passa perto do porco-espinho sem que este erice as agulhas.

Assim, ao ouvirem as palavras da capivara, tanto o gavião como os bem-te-vis esqueceram a briga e vieram sentar-se diante dela, um ao lado do outro, como se nada tivesse havido entre eles.

         – Os meninos de Dona Benta mataram a onça da Toca Fria – começou a capivara. – Ora, se mataram a onça, que era a rainha da floresta, o mesmo farão, com a maior facilidade, a qualquer outro bicho menos forte do que a onça. Estamos pois com as nossas vidas ameaçadas de grande perigo e temos de tomar providências. Por isso quero convocar uma reunião de todos os animais. Vocês, que voam, sejam meus mensageiros.

         Voem sobre a mata e avisem a todos para que estejam aqui reunidos, amanhã à noitinha, debaixo da Figueira-Brava.

         O gavião e os bem-te-vis obedeceram. Voaram de árvore em árvore, dando uns pios que significavam reunião geral na Figueira-Brava no dia seguinte.

         Essa figueira parecia ter mil anos de idade. Era a maior árvore da zona. Em seu tronco o tempo abrira um enorme oco, no qual dez homens poderiam abrigar-se perfeitamente. Erva nenhuma crescia debaixo dela, porque as ervas não crescem onde não bate sol e ali havia séculos que não batia um raio de sol.

         No dia seguinte, à tarde, os animais foram chegando. Vieram as pacas, tão medrosinhas; vieram os veados ariscos; as antas pesadonas; os quatis sempre alegres e brincalhões; os cachorros-do-mato e as irarás de olhar duro; as jaguatiricas de movimentos macios. Vieram os tatus encapotados em suas cascas rijas; as lontras embrulhadas em suas capas de pele macia como o veludo; as preás assustadinhas. Também vieram cobras – as jiboias enormes que engolem um bezerro taludo; as cascavéis de guizos na ponta da cauda; as lindas corais-vermelhas; as muçuranas que se alimentam de cobras venenosas sem que nada lhes aconteça. E sapos – desde o sapo-ferreiro, cujo coaxo lembra marteladas em bigorna, até a pequenina perereca, que vive pererecando pelo mundo. E aves, desde o negro urubu fedorento, até essa jóia de asas que se chama beija-flor. E ainda insetos – borboletas de todos os desenhos e cores, besouros de todas as cascas, serra-paus de todas as serras. E joaninhas e louva-a-deus e carrapatos…

         Os macacos empoleiraram-se nos galhos da figueira e no rebordo inferior do oco. Enquanto esperavam, divertiam-se fazendo cabriolas das mais complicadas, e caretas.

         Logo que os viu reunidos, a capivara tomou a palavra e expôs a situação perigosa em que se achavam todos.

         – Quem faz um cesto faz um cento – disse ela. – O fato de terem matado a onça vai encher de coragem esses meninos e fazê-los repetir suas entradas nesta floresta a fim de nos caçar a todos. O caso é bastante sério.

         – Peço a palavra! – gritou o bugio, que estava de cabeça para baixo, seguro pelo rabo no seu galho. – Acho que o melhor meio de vocês escaparem à fúria desses meninos é fazerem como nós fazemos: morar em árvores. Quem mora em árvores está livre de todos os perigos do chão.

         – Imbecil! – resmungou a capivara, furiosa de tamanha asneira. – Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens. Esta reunião foi convocada para discutir-se a sério, visto que o caso é muito sério. Quem tiver uma ideia mais decente que a deste idiota pendurado, que tome a palavra e fale.

         Um jabuti adiantou-se e disse:

         – O meio que vejo é mudar-nos para outras terras.

         – Que terras? – replicou a capivara. – Não há mais terras habitáveis neste país. Os homens andam a destruir todas as matas, a queimá-las, a reduzi-las a pastagens para bois e vacas. No meu tempo de menina podíamos caminhar cem dias e cem noites sem ver o fim da floresta. Agora, quem caminha dois dias para qualquer lado que seja dá com o fim da mata. Os homens estragaram este país. A ideia do jabuti não vale grande coisa. Impossível mudar-nos, porque não temos para onde ir.

         – Amor com amor se paga – disse uma jaguatirica. Matando a nossa rainha esses meninos nos declararam guerra. Paguemos na mesma moeda. Declaremos guerra a eles. Reunamos todos os animais de dentes agudos e garras afiadas para um assalto ao sítio de Dona Benta.

         A capivara ficou pensativa. Isso de assaltar um sítio era realmente coisa que só onças e jaguatiricas podiam fazer, porque são animais guerreiros.

         – Sim – disse a capivara -:, a ideia não me parece de todo má, mas semelhante guerra só poderá ser feita por vocês, onças, ajudadas pelos cachorros-do-mato e irarás. Eu, por exemplo, e também as pacas e veados e lontras e borboletas e serra-paus e carrapatos, não entendemos nada de guerra.

         – Pois que fique a luta a nosso cargo – disse a jaguatirica. – Encarregar-me-ei de reunir todas as onças e jaguatiricas e cachorros-do-mato e irarás da floresta para um ataque ao sítio de Dona Benta. Havemos de vencer aqueles meninos e comer a todos da casa – inclusive as duas velhas.

         A assembleia aprovou a lembrança. “Muito bem!”, pensaram os animais. As onças fariam a guerra. Se vencessem, a bicharia inteira das selvas estaria salva de novas incursões dos meninos. Se não vencessem, a vingança deles iria recair sobre as onças, não sobre os outros. Ótimo!

         – Está aprovada a ideia – disse a capivara. – A Senhora Jaguatirica encarregar-se-á de falar com as suas companheiras, com as onças grandes, as irarás e cachorros-do-mato, combinando do melhor modo os planos estratégicos. E nós, animais pacíficos, comedores de ervas, ficaremos de lado, ajudando os guerreiros com as nossas “torcidas”.

         A assembleia dissolveu-se. Cada qual foi para sua casa, enquanto a jaguatirica disparava em procura das companheiras a fim de combinar os meios de conduzir a guerra.

 

4 – Os espiões da Emília

         Entre os animais da floresta que iam atacar o sítio de Dona Benta havia traidores. Eram os espiões da Emília. A terrível bonequinha fizera amizade com um casal de besouros cascudos, muito santarrões, que viviam fingindo estar a dormir mas que não perdiam coisa nenhuma do que se passava na floresta. Na reunião dos animais também eles estiveram presentes, vendo e ouvindo tudo lá do seu cantinho.

         Em seguida foram dar parte do acontecido à boneca.

         – Eles vão atacar a casa e comer toda a gente do sítio – disse o besouro com voz cautelosa.

         – Eles quem? – indagou Emília.

         – As onças, as irarás e os cachorros-do-mato.

         – Elas, então – disse Emília, que implicava muito com a regra de gramática que manda pôr pronome no masculino quando há diversos sujeitos de sexos diferentes. – Elas vão atacar o sítio, não é? Pois que venham. Serão muito bem recebidas. Tenho lá um espeto próprio para espetar onça, irará, jaguatirica e cachorro-do-mato.

         Mas os besouros contaram minuciosamente tudo quanto tinham ouvido na assembleia da capivara e a boneca viu que o caso não era de brincadeira. Resolveu lá consigo ir incontinenti avisar Pedrinho, mas para não dar a perceber os seus receios fez-se de valentona.

         – Veremos! – disse aos besouros, muito admirados daquele sangue-frio. – Veremos! Nós matamos há pouco uma onça-pintada, a maior que existia por aqui, e faremos a mesma coisa até para leões e hipopótamos, se aparecerem. A bicharia há de convencer-se de que conosco ninguém brinca. Atacar o sítio! Desaforados… E para quando é a guerra?

         – O dia ainda não está marcado. A jaguatirica anda a correr a mata para reunir os atacantes.

         – Muito bem – concluiu Emília, sem pestanejar. – Continuem espionando e avisando-me de tudo quanto souberem. Vou prevenir Pedrinho.

         Emília voltou para casa de carreira e, já de longe, foi gritando pelo menino. Encontrou-o na varanda, a fazer uma arapuca de talos de folhas de embaúva para apanhar rolinhas.

         – Largue disso – gritou Emília, ao galgar a escada. – Temos novidade grande. O sítio vai ser assaltado pelas onças, cachorros-do-mato e irarás. Pedrinho olhou para ela com os olhos arregalados.

         – Que bobagem está você dizendo, Emília? Assaltado, por quê? Como? A boneca desfiou toda a conversa tida com os besouros e concluiu:

         – Temos guerra, é isso. Matamos a onça e agora a onçaiada inteira quer a desforra.

         Pedrinho refletiu por alguns instantes. Depois recomendou:

         – Não diga nada a vovó, nem a Tia Nastácia, pois são capazes de morrer de medo. Vou estudar o caso e organizar a defesa. Vá depressa ver Narizinho e o Visconde. Diga-lhes que me esperem no pomar, debaixo da jabuticabeira grande. Aqui na varanda não podemos tratar disso. Vovó descobriria tudo.

         Minutos depois realizava-se, debaixo da jabuticabeira grande, uma segunda assembleia, menos numerosa que a dos bichos. Compareceram todos, inclusive o Marquês de Rabicó. Pedrinho pediu à boneca que repetisse a sua conversa com os besouros espiões. Emília repetiu-a, terminando assim:

         – É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do sítio, exceto os de pena.

         O Marquês de Rabicó sorriu. Se as onças iam devorar todos os bípedes, ele, na sua nobre qualidade de quadrúpede, estaria fora da matança. “Que felicidade ser quadrúpede!”, refletiu, lá consigo, o maroto.

         Pedrinho começou a estudar a defesa.

         – Sabem do que mais? – disse ele. – Vou abrir uma linha de trincheiras em redor da casa.

         – Inútil isso, Pedrinho – objetou a menina. – As onças são umas danadas para saltar. Pulam qualquer trincheira.

         Pedrinho achou razoável a observação e refletiu um pouco mais. Depois disse:

         – Nesse caso, podemos rodear a fazenda duma cerca de paus-a-pique, bem pontudos. Construir uma estacada, como faziam os índios.

         – Impossível – objetou outra vez Narizinho. – Para fazer semelhante estacada teríamos de contratar vários homens para cortar os paus e fincá-los – e vovó desconfiaria e viria a saber de tudo. Com estacada não vai. Temos de descobrir outro meio.

         E, voltando-se para o Visconde que ainda não pronunciara uma só palavra:

         – Qual a sua opinião, Visconde?

         Como tivesse corpo de sabugo, o Visconde jamais mostrou o menor medo de onça, ou de qualquer outro animal carnívoro. Só tinha medo de vaca, bezerro, cavalo e outros animais comedores de sabugo. Por isso, caçoou:

         – Ataque de onça! Ora, ora. Que valem onças? Se fosse um ataque de vacas, sim, compreendo que estivéssemos assustados. Mas de onças…

         – E você, Rabicó, que acha? – perguntaram ao Marquês.

         O Marquês nunca achava coisa nenhuma. Sua preocupação única era descobrir coisas de comer. Quando lhe pediam opinião sobre abóboras, chuchus, cascas de bananas ou mandioca, ele dava opiniões ótimas. Mas sobre onças…

         – Eu acho que… que… que… – e engasgou.

         – Quequerequeque… Para achar isso não valia a pena ter aberto a boca – disse Pedrinho. – Temos que achar qualquer coisa. Temos que resolver. O caso é dos mais sérios. Nossas vidas correm perigo, bem como as vidas de vovó e Tia Nastácia. Vamos! Venham ideias. Deem tratos à bola e resolvam.

         – Tenho uma ideia excelente! – gritou Narizinho, batendo palmas.

         – Qual é? – exclamaram todos, voltando-se para ela.

         – É deixarmos isto para amanhã. As grandes coisas devem ser bem pensadas e não podem ser decididas assim, do pé para a mão. A guerra não é para já, pois que a jaguatirica ainda anda a avisar as companheiras. Até que fale com todas e organizem o plano de ataque, passar-se-ão alguns dias. Para agora tenho uma coisa excelente a fazer. Uma surpresa…

         Disse e ergueu-se, correndo para a margem do ribeirão, onde na véspera Tia Nastácia havia escondido qualquer coisa. Todos a seguiram, curiosos.

         – Que é, que é, Narizinho? Que surpresa é essa?

         Em vez de responder, a menina espalhou um montinho de folhas secas que havia junto às pedras do rio e revelou, aos olhos do bando, um lindo cacho de brejaúvas.

         – Viva! Viva! – gritou Pedrinho, que se pelava por brejaúvas. – Como arranjou isto, Narizinho?

         – Foi o Antônio Carapina que nos mandou de presente ontem à noite. Tia Nastácia recebeu o cacho e veio escondê-lo aqui para que não acontecesse como da outra vez, que sujamos de cascas a varanda.

         – E por que não me disse nada?

         – Para fazer uma surpresa. Não acha que foi melhor assim?

         Sentaram-se todos em redor do cacho de brejaúvas e começaram a partir os cocos sobre uma grande laje que havia ali.

         – Ótimas! – exclamou o menino, comendo com gula a deliciosa polpa branca e macia daqueles cocos no ponto. – O Antônio Carapina tem as melhores lembranças do mundo. Prove, Emília, este pedacinho…

         Minutos depois estava o chão coberto de cascas, por entre as quais passeava o focinho de Rabicó, lambiscando o que podia. Enquanto isso, as onças lá na mata marcavam o ataque ao sítio para o dia seguinte. Felizmente os dois besouros encapotados estiveram presentes à reunião e tudo ouviram dum galhinho seco.

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